Visita à Nikka Miyagikyo – Shinkansen

Quando entrei pela primeira vez na Estação de Tóquio, fiquei mesmerizado. Dezenas de lojas – de grifes internacionais a especialidades locais. Um andar inteiro de restaurantes, alguns dedicados exclusivamente aos bentôs: essas lancheirinhas que os japoneses levam para comer enquanto viajam de trem. Pensei, sarcástico “calma galera, é só um trem, não precisa construir uma cidade autossuficiente ao redor dos trilhos“. Entretanto, ao cabo de quinze dias, minha impressão inicial se esvanescera.

Os japoneses são obcecados por trens. Tanto que tem dezenas de palavras diferentes para definir precisamente a obsessão férrea de cada um. O clássico trainspotter é “tori-tetsu”. Mas tem também “sharyo-tetsu”, que são os que gostam do design dos trens. E “oto-tetsu”, que gravam o barulho que eles fazem. Tem também “yomi-tetsu”, que é quem gosta de ler sobre trens, e “nori-tetsu”, que gostam de viajar de trem. Por fim, tem a categoria que me encaixo: “ekiben-tetsu”, o maluco que viaja de trem pra comer os bentôs mais esquisitos de cada estação. Pra voce ver, eu, um gaijin, nem sabia que eu sou essa coisa. Realmente, o japão é um país inclusivo!

E quando embarquei em Tóquio para Sendai, com objetivo de visitar a Nikka, eu nem sabia, Mas realizara o sonho de muitos nori-tetsus. Experimentar uma viagem no Hayabusa – um dos mais modernos shinkansens do mundo. Shinkansen, caso você não saiba, é o nome do trem-bala por lá. Mas antes de subir na plataforma, como um bom ekiben-tetsu, escolhi, cuidadosamente, meu bentô. Atum com ovas de salmão e arroz por baixo, com um clássico highball. Meu passatempo pelas próximas três horas de viagem.

Cheguei na estação de Sendai. De lá, podia pegar um trem local para uma viagem de trinta minutos, ou ir de táxi. Escolhi a segunda opção, mais por teimosia que conveniência. O taxista, que não falava inglês, no final das contas, se comunicou muito bem comigo. Apontou que havia neve – algo difícil naquela época do ano. E fez uma mímica elaborada, explicando sobre sua alergia ao pólen dos pinheiros, informação que será importante numa futura publicação aqui no Cão.

Enfim, cheguei à Miyagikyo. O tour, em japonês, contava com um audioguide, que explicava, razoavelmente bem, como a destilaria fora concebida. Por sorte, estava com uma guia que também falava inglês, e tive a oportunidade de entender um pouco mais sobre o lugar. A Miyagikyo é a segunda destilaria do grupo Nikka, fundada por Masataka Taketsuru depois de sair da Suntory. Sua localização foi escolhida por dois motivos: clima e água. Sendai está mais ao sul que Hokkaido, onde está localizada a primogênita Yoichi. Mas não tão ao sul assim a ponto de sacrificar o clima semelhante ao escocês, que Masataka tanto estimava.

O centro de visitantes da Miyagikyo

A Miyagikyo fora concebida para auxiliar sua irmã Yoichi a dar conta da demanda de whiskies, em 1969. Inicialmente, deveria ter uma vez e meia o tamanho da predecessora. No final, ficou três vezes maior, contando com a destilaria de grão. Aliás, isso é curioso – é tudo Miyagikyo, mas numa mesma localização, dois tipos distintos de whisky são produzidos. Single malts e single grains. Os single malts teriam, inicialmente, um perfil sensorial mais leve do que os da Yoichi. Mais herbais e menos enfumaçados – algo que, hoje, ainda é aplicado na maioria das vezes, ainda que haja exceções.

Atualmente, a Miyagikyo produz em torno de quatro tipos diferentes de malte. Os declarados são turfado, levemente turfado, turfado e um cuja tradução seria algo como “carnudo”, que, suspeito, seja “estery“, ou sulfúrico. A maioria avassaladora, no entanto, é de malte não turfado. Os mash tuns são de aço inox, assim como os washbacks. A fermentação leva entre 48 e 60 horas – a última, mais frequente.

Mash Tun

Entre o espaço dos mash tuns e dos washbacks há uma sala misteriosa, que mais parece o centro de comando de um gundam. Dezenas de telas, dispostas lado a lado e uma sobre as outras, com gráficos, imagens e escalas. Ainda que o espaço fosse todo transparente, ninguém permitia foto. A razão é óbvia: este é o cérebro da Miyagikyo. A destilaria é, hoje, totalmente informatizada. A transferência do wort para o washback e a carga dos alambiques é toda feita ao toque de um – ou alguns – botão. É inclusive, daí, que se comanda também a produção dos whiskies de grão nos coffey stills.

Os alambiques tradicionais da Nikka são dispostos em bases diferentes, em pares. Uma das duplas, inclusive, denota claramente ser mais idosa do que as demais, com seu cobre já meio opaco, e os rebites do lyne arm escurecidos. Todos os alambiques têm o mesmo formato: têm base larga, com bulbo , e lyne arm levemente voltado para cima, para incentivar o refluxo. Indaguei, corajosamente, sobre o aquecimento e os condensadores. Vapor e shell-and-tube. Tudo para produzir um whisky leve.

Alambiques com Shimenawa – símbolo xintoísta que afasta maus espíritos.

Visitamos, por fim, um dos armazéns da destilaria. Uma dunnage house, com barris dispostos em duas camadas apenas. Estranhei. A guia, entretanto, esclareceu: aquele espaço era dedicado a visitantes. Nos outros armazéns clássicos, havia quatro fileiras de barris. Mas havia também rickhouses, com barris dispostos em mais de sete andares. Todo o whisky de malte é maturado na própria Miyagikyo. O single grain, entretanto, matura em outra instalação.

Na volta ao centro de visitantes, passamos, rapidamente, pelos prédios que abrigam os destiladores contínuos. São coffey stills, com desenho clássico de Aeneas Coffey. Há o tradicional analyzer o rectifier. Este último contém vinte e quatro pratos. Mas o que é mais extraordinário, aqui, é o seu uso. A Miyagikyo produz diferentes estilos de whisky nestes destiladores, inclusive, usando cevada maltada. Algo bastante incomum, mesmo para padrões escoceses. Aliás, por muito tempo, antes de introduzir um “Miyagikyo” no mercado, seus dois produtos de prateleira mais comuns eram, justamente, os “Nikka Coffey Malt” e “Nikka Coffey Grain”.

Voltamos ao centro de visitantes, onde uma pequena bandeja com três copinhos de dose – não glencairns – nos aguardavam. Malte, grão e o produto finalizado. Aproveitei a oportunidade, também, para provar outros whiskies só disponíveis por lá. As destilarias do grupo Nikka, ao contrário da Suntory, possuem distillery-exclusives em seu portfólio. Eram três, que demonstravam toda a versatilidade da Miyagikyo. De “leve e herbal” a “vínico e intenso”.

Visita concluída, mas o dia estava longe de acabar. Aliás, um dos pontos altos ainda estava no futuro. Embarcar de volta no Hayabusa e encarar – na verdade, me divertir – as próximas três horas de volta a Tokyo. Mas antes, havia uma coisa mais importante a fazer. Escolher meu bentô. Afinal, além de entusiasta de whiskies, sou um “ekiben-tetsu”.

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