Você já reparou como às vezes dois filmes praticamente idênticos estreiam quase ao mesmo tempo? Às vezes, isso é maravilhoso, porque os dois são ótimos. Tipo Failsafe e Doctor Strangelove. Outras vezes, um é melhor que o outro, como Braveheart – que é um clássico – e Rob Roy. Que não é realmente ruim. Mas podia focar menos no Liam Neeson satisfazendo sua esposa na grama, e mais na história da Escócia.
E em outras situações, todos são ruins mesmo. Muito provavelmente porque a ideia era péssima já no começo, e a turma entrou numa espécie de delírio e esforço coletivo para tornar a vida dos cinéfilos um pouco mais miserável. Como com O Inferno de Dante com Volcano. Ou Striptease e Showgirls (desculpa, Verhoeven, você é ótimo!). Ah, e aqueles quatro – sim, gente, quatro – filmes sobre meteoros que ameaçam acertar a Terra. Num deles todo mundo morre, no outro o Bruce Willis explode o asteroide por causa da Liv Tyler e nos outros eu nem lembro o que acontece. Só vem, meteoro.
O fenômeno, aliás, tem nome. Twin Movies, ou, Filmes Gêmeos. E não é coincidência, transmissão de pensamento ou uma espécie de reiki aplicado ao cinema. Mas o resultado de espionagem, conversas entre pessoas de diferentes estúdios ou distribuição de um mesmo roteiro para várias empresas. O que resulta em uma corrida para produzir e distribuir o filme para o público. Ou, simplesmente, são filmes iguais baseados no mesmo filme anterior. Porque o que mais tem na indústria do cinema é originalidade.
O coquetel Affinity é, de certa forma, como um desses filmes. Ele é parecido com uma porção de outras misturas, como o Rob Roy e o Perfect Manhattan. Aliás, é bem provável que você, querido leitor e entusiasta de coquetelaria, tenha numa noite de ébria criatividade reinventado o Affinity. Eu sei, porque eu já fiz isso. Lá, depois do segundo coquetel, a gente fica criativo, e começa a pensar poxa, e se eu fizer um Perfect Manhattan com um scotch docinho, deve ficar bom. Em nome de Thomas, Baker, Coleman e Dale, vou virar uma lenda quando divulgar isso daqui.
Acontece que – assim como o cara que em 2018 resolveu filmar a história de Robin Hood pela enésima vez – estamos pouco mais de um século atrasados. O primeiro registro é uma matéria do Washington Post de 1907, que dizia “Há um novo coquetel na Broadway. Eles o chamam de Affinity. Depois de beber um, os provadores sobreviventes declararam que o horizonte adquire um tom rosado; já o segundo traz Wall Street para frente e para o centro, oferendo a você uma quantidade de lã reluzente de cordeiro (seja lá o que significar isso…); e quando você termina o terceiro, a grama cresce ao seu redor, passarinhos começam a cantar nas árvores de figo e a afinidade aparece.“
Mas, a parte mais interessante vem depois. Que é a receita original “esta nova ambrosia contém os seguintes ingredientes: uma colher de chá média de açúcar de confeiteiro, uma pitada de bitters de laranja, uma dose de uísque escocês e meia dose de vermute italiano. Estes são batidos em gelo picado, como um coquetel, até ficarem bem misturados e resfriados, então coados e servidos rapidamente.” Essa receita – e perdão pela ironia cretina – tem pouca afinidade com a atual. Que, se baseia naquela divulgada por Harry Craddock no clássico The Savoy Cocktail Book de 1930. E que, por sua vez, deve ter bebido (gente, estou muito criativo hoje mesmo!) da mesma fonte, ou inspirado, a receita de David Embury, divulgada em seu “The Fine Art of Mixing Drinks“.
A diferença principal entre a receita de Craddock e Embury é a proporção. O primeiro sugere partes iguais dos três ingredientes principais. Já o segundo, uma (caprichada) prevalência de scotch. O que sugere, na realidade, que o equilíbrio deve ficar por conta do paladar do bartender por impromptu. Caso prefira um coquetel com a base mais aparente, aumente a proporção do whisky, como fez Embury. Entretanto, se preferir navegar para longe dos dois clássicos e testar algo mais vínico e licoroso, vá de partes iguais – à moda de Craddock.
Bem, sem mais plot twists, vamos à receita. De Craddock – porque ninguém precisa de mais uma versão filmada de Guerra e Paz.
AFFINITY COCKTAIL
INGREDIENTES
- 30ml de scotch whisky – escolha um scotch adocicado, como um Chivas Regal 12 anos.
- 30 ml de vermute tinto
- 30 ml de vermute seco
- 2 dashs de angostura
- zest de laranja (isso é uma fatia da casquinha da laranja)
- Parafernália para misturar (mixing glass, bailarina etc.); ou
- parafernália para bater (shaker, strainer etc.)
PREPARO
Batido, e não mexido? Aqui a máxima do espião menos secreto do mundo (aliás, quanto filme que copia ou satiriza Bond, não?) faz sentido. O Affinity pode ser batido ou mexido. A técnica usada dependerá, essencialmente, de seu gosto. Ainda que faça mais sentido mexer – afinal, você vai aerar bebidas que não se beneficiam muito disso – talvez, apenas para dar contraponto, faça sentido batê-lo. Só para ficar um pouquinho diferente. Este é o conselho também dado pelo Difford’s Guide.
- Batido: adicione tudo na coqueteleira (menos a parafernália para misturar) e bata com bastante gelo. Desça em uma taça coupé previamente refrigerada e decore com o zest de laranja.
- Mexido: adicione tudo num mixing glass (menos a coqueteleira, gênio) e mexa, com bastante gelo. Com o auxílio de um strainer, ou coador, desça em uma taça coupé previamente refrigerada e decore com o zest de laranja.
Caro Maurício,
Um espetáculo! Sua crônica é tão boa que pode ser péssima.
Dificilmente você conseguirá cravejar em outra crônica a frase “em outras situações, todos são ruins mesmo”. Isso é uma pérola! No meu modo de ver, a essência da vida.
Vamos ao que todos estão interessados. Não sou do doce, para dizer o mínimo, e ataquei de Embury. De cara, é melhor que o Rob Roy, o cocktail e o filme.
Forte Abraço
PS: A capa do DVD pode ter alterado meus hormônios.
Caro Sócrates, estou contigo em tudo nessa. Na verdade creio que exceto pelos filmes realmente antigos e o drink de Embury, pouca coisa salva.