Hoje vou falar sobre autocontrole. Autocontrole – ou melhor, a ausência dele – é o que te faz comer aquele quarto (ou quinto) pedaço de pizza. Ou tomar a terceira saideira no bar. Ou mesmo continuar comendo aquele rodízio de sushi até acabar, ainda que o correspondente à fauna inteira do oceano pacífico já esteja, lentamente, se liquefazendo em seu estômago.
A vida moderna oferece uma infinidade de oportunidades áureas para se despir totalmente do autocontrole. Maratonas da sua série preferida, rodízios infinitos de comida, lojas com descontos progressivos, smartphones e internet quando se está bêbado. E, finalmente e fatalmente, bares.
Bares são uma espécie invertida de videogames de autocontrole. Porque toda vez que você perde – ou seja, toma mais uma – fica mais difícil de exercer o autocontrole para a próxima. E, assim como videogames, existem bares mais difíceis do que outros. Para meu azar – e iminente insolvência – um dos meus preferidos provavelmente seria classificado “hard as hell”.
É que naquele bar, ao invés do garçom te servir uma dose, ele deixa a garrafa na sua mesa, com umas marcações. E você mesmo deve ser o juiz de seu bom senso, e colocar o quanto quiser – e considerar prudente – no copo. Para piorar, ele deixa a garrafa lá, o que atrapalha bastante a tarefa de permanecer com o copo vazio. Ao final da noite, basta medir quantas doses foram consumidas e surpreender seu cliente.
Da ultima vez que fui, combinei de encontrar a Cã lá, para que depois fossemos ao shopping comprar alguns presentes para conhecidos. Cheguei adiantado e resolvi que – numa tentativa de pagar menos – escolheria uma dose mais em conta. Minha escolha foi óbvia: o Black Grouse. Um whisky suave e muito equilibrado, com final intenso e esfumaçado. Defumados são mesmo meu ponto fraco. Aquela provavelmente era uma das minhas expressões favoritas da marca do tetraz. Logo que desci o conteúdo da garrafa no copo (com certa parcimônia) pude sentir o aroma turfado e, ao mesmo tempo, cítrico e frutado do whisky. Sentia que estava no caminho certo.
Tomei o primeiro gole lentamente. Era um whisky mais adocicado no paladar do que no aroma, com defumado também mais presente no olfato. Havia ainda um leve sabor cítrico e de vinho jerez. Muito bom. Os segundo, terceiro e quarto goles se sucederam rapidamente.
Olhei para o relógio. Meia hora e nada de minha melhor metade. Vi-me obrigado a, novamente, encher o copo. Sorte que a dose não era cara, e a garrafa que havia me sido cedida já estava na metade. Esforcei-me um pouco para lembrar o que sabia sobre aquele whisky. Lançado em 2007, o Black Grouse é produzido pela Famous Grouse, empresa pertencente ao Erdington Group, que também detém os single malts The Macallan, Highland Park e Glenturret.
O blend do Black Grouse seria composto, principalmente, de The Macallan e Glenturret. Ou seria Glenturret e Highland Park? A nova garrafa, do Smoky Black, categoricamente diz que “contem um raro Glenturret turfado, proporcionando a oportunidade de experimentar algo ímpar da mais antiga destilaria da Escócia“. Tomei mais alguns demorados goles, na vã tentativa de identificar e isolar os single malts. Apesar de ser claramente defumado, o equilíbrio dos demais sabores (ou será que era efeito do primeiro copo?) tornou a tarefa um pouco complicada.
Pelo fundo do copo seco podia ver um borrão que provavelmente correspondia ao garçom. O borrão então me perguntou se eu queria algo. Apoiando lentamente o copo vazio na mesa e constatando que era, de fato, o garçom, respondi que uma garrafinha de água seria uma ideia prudente. Poderia, assim, experimentar o whisky também com água. Enchi novamente o copo. Mas, dessa vez, fui bem mais generoso e auto-indulgente. Vi-me obrigado a equilibra-lo para evitar que o líquido derramasse ao beber.
Comecei a divagar sobre aquela garrafa e seu rótulo. Lembrei-me que aquele whisky havia mudado de visual e nome em 2015. De lá pra cá, o Black Grouse passou a chamar-se Famous Grouse Smoky Black. No entanto, a identidade visual da garrafa não havia mudado muito. Continuava a portar aquela ave, que, segundo uma rápida consulta à Wikipedia, era um Tetrao tetrix. Também conhecido como Black Game, blackcock (juro que não estou inventando) ou Galo-Lira.
Tomei mais alguns goles e notei que meu celular tocava. Era a querida Cã, dizendo que preferia fazer as compras outro dia. Ela se deixara levar jogando um novo jogo de videogame, e agora estava atrasada e com preguiça de se arrumar. E, além disso, a Cãzinha acabara de chegar, e estava pronta para mais uma maratona de algum desenho insuportável. Pelo jeito, autocontrole era um traço genético na família.
Fiz o sinal universal da conta para o garçom, que, com um discreto salto, fez que entendera meu gesto. Tomei meu último gole daquela dose enquanto ele removia a garrafa da mesa e, com um olhar ao mesmo tempo surpreso e sádico, calculava minha conta com base nas marcações da garrafa. Com desgosto e igual surpresa recebi a conta. R$ 150,00. O preço médio de um Black Grouse nas prateleiras de lojas!
Um pouco cambaleante e desnorteado – talvez pela conta, talvez pelas doses de whisky – entrei no táxi e liguei para a Cã. Perguntei a ela se queria que levasse algo para jantarmos. Respondeu-me que não, não precisava, pois pediria pizza. Respondi que tudo bem, mas que era para pedir duas, não uma só. Só para garantir.
Afinal, o quinto pedaço é sempre o melhor.
BLACK GROUSE (FAMOUS GROUSE SMOKY BLACK)
Tipo: Blended Whisky sem idade definida (NAS)
Marca: Famous Grouse
Região: N/A
ABV: 40%
Notas de prova:
Aroma: fumaça, frutado, levemente cítrico. Mais defumado do que medicinal.
Sabor: Frutado, cítrico, especiarias. Café, talvez? Final progressivamente defumado.
Com Água: Adicionar agua reduz o sabor frutado, deixando o whisky mais seco.
Preço: em torno de R$ 150,00 (cento e cinquenta reais)
Haha o autocontrole é realmente muito difícil. Principalmente quando o que estamos degustando tem a capacidade de levar nosso discernimento embora, tal qual o bom e velho álcool.
É uma estratégia tão simples e eficaz que vc percebe que eles já deixam a garrafa com o cliente, já sabendo o resultado haha.
Black Grouse era meu alvo inicial, quando fui provar um defumado e a oportunidade acabou me levando ao Double Black, mas sem problemas. Ele está na lista!
Grande abraço!
Muito bom. Mesmo. Você é um grande cronista.
Parabéns e obrigado
Olá meu caro amigo, muito bom seus textos, a cada dia me surpreendo. Na sua opinião seria o Black Grouse melhor que Double Black ? Espero um texto seu sobre o Jameson Select Reserve, estou muito curioso sobre tal Whiskey, gostaria de saber sua notas….
Fala Luiz. Olha, é diferente, um deles é mais seco (Black Grouse) o outro é mais rico (Double Black). O Double dá também a impressão de ser pouco mais defumado. Sinceramente, não sei qual gosto mais. Acho que o que estiver mais perto da minha mão! rs
Sempre excelente textos com inspiradas metáforas. Gostei especialmente da comparação entre o Black Groose e o Double Black, com suas semelhanças defumadas! Valeu!
Valeu, Gustavo!
Grande Cão, novamente um belo texto. Vou experimentar o Black Grouse. Acho que estou desenvolvendo um gosto pelos defumados. Influência sua!!!
Abração.
Influência boa, hopefully! 🙂
Já havia comprado garrafas do Smokey Black (sempre de 750ml) e é um blend bem simpático, com leve fumaça e equilibrado. Me lembra o Single Malt Tamnavulin… Só que mais barato. Recentemente achei uma garrafa perdida na loja Planeta Sonho, do Black Grouse, de 1 litro, a um bom preço. Perguntei se era o mesmo do Smokey, fiquei curioso e comprei. Achei Infinitamente melhor, mais fumaça, mais vínico, olioso. Não é o mesmo whisky, achei importante dizer. Abraço, sou fã do blog!
Gosto é algo que muda com o tempo, mas acho que hoje, a Galinha Preta é meu favorito!
show de bola comprei um agora por 89 reais 1lt uma bela promoção em uma loja aq em jundiai showwww.
Saudações.
Tenho apreciado seus textos. São informativos e espirituosos. O que faz da leitura algo agradável. Fico grato por isso.
Comecei recentemente minha aventura no mundo dos wiskies. E esse princípio de jornada tem sido dispendioso, curioso e estimulante.
Mas, sobre o Black Grouse… adquiri recentemente por R$99,00 aqui em Curitiba. Ainda estou aprendendo a apreciar, portanto meu vocabulário ainda é simplista e tenho dificuldades em identificar aromas e sabores. Mas… “work in progress”.
Gostaria de compartilhar minha impressão e saber se estou ficando maluco com o que percebi: tanto no aroma quanto no paladar, percebi primeiramente um leve defumado, seguido de > algo medicinal > remédio > pomada? > iodo? > até que defini como “bandagem médica”. Estou viajando?
Fala Marcio! Não está viajando não. Aliás, pelo contrário – voce tem um olfato bem aguçado para essa brincadeira. O que você pegou é o aroma que chamamos de “medicinal”. Ele normalmente vem acompanhado do enfumaçado de alguns whiskies, mas é diferente. Não é um aroma muito fácil de pegar para um iniciante, porque ele está lá atrás, mascarado pela fumaça. Você mandou muito bem.
Alguns whiskies tem esse medicinal bem pronunciado. O Lagavulin 16 é o exemplo clássico disso!
Certamente, e o Prezado Sr. Cão, se permite assim reportar–me à vossa pessoa, concordará, que a experiência de degustar toda esta infinidade e diversidade de “ouro líquido” – alusão óbvia à melhor bebida do mundo – é insuperável.
Mas, vossas narrativas, pelo alto grau – alcoólico – de criatividade, polidez e correção ortográfica beiram à experiência propriamente dita, de estar in loco, apreciando tanto a cena na sua forma teatral, com gestos, movimentos e a vinda do “borrão” trazer a conta, tanto quanto “sentir” os sabores, aromas e efeitos – também alcoólicos – do que está sendo degustado.
Congratulações.
Caro Adriano, muito obrigado!! Fico feliz que tenha gostado da narrativa! Reconheço que a experiência, em primeira mão, de uma forma mais frequente do que eu gostaria de admitir, é que produz essa espécie de, diremos, precisão descritiva! rs
“Pelo fundo do copo seco podia ver um borrão que provavelmente correspondia ao garçom. O borrão então me perguntou se eu queria algo. Apoiando lentamente o copo vazio na mesa e constatando que era, de fato, o garçom . ”
Excelente forma de escrever ! Tão bem escrita que parece que estamos na mesa com o Cão Engarrafado ! Tão real estavamos na espera com o autor dividindo a mesma garrafa !
Caro Marcelo, muito obrigado!
A ideia é justamente essa. Mas ai nem precisa rachar a conta! rs!
Convenceu ! Na minha próxima ida ao supermercado vou procurar o Famous grouse smoky black ! Vou conhecer o Whisky da “galinha preta defumada” ! Já tive excelente experiência de degustação do whisky da marca do “andarilho” doble black, mesmo não gostando dos Walker. Nunca bebo da garrafa do “joãozinho comunista” !
Hahahahahhaa as definições foram otimas!
Boa tarde,
Sei que estou comentando em um post já antigo, mas gostaria muito de saber se o bar em questão realmente existe e, se existe, qual o nome.
Parabéns pelo site.
Abraço!
Hahahaha! Yago, tudo bem?
Ele existe e não existe. Ele é uma mistura entre o falecido Admiral’s Place, o querido Empório Alto dos Pinheiros e o Esch Café. Cada um por um motivo – carta (Admiral’s) e o lugar que costumo “matar tempo” (Empório). Mas acho que você perguntou por conta do serviço de deixar a garrafa com a régua na mesa. Isso era feito no Esch Café de SP. Mas, sinceramente, não sei se continua assim.
Sim, perguntei por causa do serviço hahaha. E imaginei que fosse o Esch, quis matar a dúvida rs. Abraço!
Nossa, adoro seus textos! A respeito dos enfumaçados, acha que o JW Double Black é um bom começo para quem nunca provou um desses?
Cristina, CERTAMENTE é um excelente começo. Depois, procure Talisker, ou vá no tranco e pegue de uma vez um Ardbeg. Vai que é paixão ao primeiro gole!
Sou um veterano na “beberagem” de diversos destilados e produtos etílicos, mas um pequeno iniciante na degustação do líquido da vida! E iniciei minha experiência no mundo dos turrados com esse excelente whisky.
De cara digo que se tornou um dos meus favoritos, partirei agora para um double black e talisker para ver quais deles terão um espaço vitalício em meu bar.
Ainda sinto o sabor enfumaçado e levemente doce em minha boca e é simplesmente maravilhoso.
Obrigado Cão por partilhar esse gosto pelos turfados.
Comprei o Smoky Grouse juntamente com o blended whisky da Union na loja virtual da Caledonia, onde comprarei novamente. Muito obrigado pela indicação, é um ótimo lugar para comprar whiskys
Opa, que fantástico, caro Guilherme! Depois me conta como foi a experiencia pelo site? Estamos começando!
Já havia comprado garrafas do Smokey Black (sempre de 750ml) e é um blend bem simpático, com leve fumaça e equilibrado. Me lembra o Single Malt Tamnavulin… Só que mais barato. Recentemente achei uma garrafa perdida na loja Planeta Sonho, do Black Grouse, de 1 litro, a um bom preço. Perguntei se era o mesmo do Smokey, fiquei curioso e comprei. Achei Infinitamente melhor, mais fumaça, mais vínico, olioso. Não é o mesmo whisky, achei importante dizer. Abraço, sou fã do blog!