De onde vem o sabor defumado do whisky

Tenho umas memórias engraçadas de quando era criança. Como certa vez, que disse pro meu pai que queria andar de trem, e ele me levou num vagão da antiga FEPASA lotado no horário do rush. Nunca mais pedi pra andar de trem na vida. Mas hoje, estranhamente, adoro.

Teve outra vez que disse que queria comer peixe. Aí ele aproveitou a oportunidade, e me levou num restaurante bem chique, daqueles que demoram duas horas. E aquilo poderia ter sido outra experiência traumática – ou talvez simplesmente fadada ao oblívio – não fosse o prato que, sem querer, escolhi. Um gratinado de hadoque defumado.

Tenho que confessar aqui que não foi pelo hadoque. Foi pelo gratinado. Na lógica do meu eu de dez anos, comida boa era comida gorda. E seria difícil ganhar de um gratinado com creme de leite e três queijos. Mas, no final do dia, não fora o queijo que me encantara. Mas o peixe. Havia lá um sabor que eu jamais sentira – ou atentara – e que me apaixonei.

Meu pai me perguntou se havia gostado, o que, obviamente, era uma pergunta retórica quase, porque quando ele me perguntou, já estava quase lambendo o fundo do prato. Disse que sim, e perguntei o que tinha de diferente. Ele explicou que era defumado. Aí, com dez anos, senti que quando fosse mais velho, realmente ia gostar muito desse negócio de defumado. Minhas suspeitas se confirmaram depois uma dezena de vezes. Bacon, salmão defumado, embutidos. E claro, um certo Lagavulin 16 anos, que despertou minha paixão por whisky.

Talvez você seja como eu, e adore tudo que tem sabor defumado. Especialmente whisky. E talvez tenha curiosidade de saber como é que a fumaça foi parar lá no whisky e torná-lo tão bom. Se esse é o caso, esta matéria especial é para você.

Vou começar devagar. O sabor defumado pode vir de dois estágios diferentes da produção. Na maltagem do grão de cevada ou maturação do new-make spirit. Se for o primeiro caso – maltagem – o sabor enfumaçado e muitas vezes medicinal vêm da turfa. O que nos leva para o primeiro capítulo:

1. SECAGEM DA CEVADA COM TURFA

Atenção aqui, é turfa. Não trufa. Trufa pode ser de chocolate, ou pode ser aquele fungo que os porcos encontram. Não é nenhum dos dois, ainda que agora tenha sentido uma certa curiosidade inconsequente de colocar trufas no meu coquetel de whisky. A dos porcos, não o bombom. Mas voltemos ao assunto.

Turfa é, basicamente, solo encharcado. Ou, mais detalhadamente, um acúmulo de matéria orgânica – fungos, musgo e e vegetação – em decomposição. Mas uma decomposição incompleta por falta de oxigênio, com bastante umidade e a baixas temperaturas. Turfa, em outras palavras, é pré-carvão, mas mais nojento que carvão, porque tem uns pedacinhos de coisas que você não sabe bem o que são. E, assim como o carvão, a turfa é inflamável.

Se me permitem uma digressão, me fascina como isso pode ter sido descoberto. Alguém, em algum ponto da história humana, decidiu que seria uma ideia razoável pegar um bocado de terra e botar no fogo, pra ver o que acontecia. A era antiga realmente deve ter sido muito entediante. Mas, aí, mesmerizado, percebeu que aquele perdigoto alimentara o fogo, ao invés de apagá-lo.

Exagerou na turfa da lareira.

Há abundância de turfa na Escócia. Boa parte do território do país é coberto de turfa. O local de onde a matéria é extraída é conhecida como (adivinhem só) turfeira. Turfeiras sedimentam a mais ou menos um milímetro por ano – o que é bem pouco. Imagine que para crescer um metro, é necessário um milênio inteiro.

A extração da turfa é tradicionalmente feita a mão, ainda que, atualmente, existam processos mecanizados. Na forma tradicional, a parte superior da turfeira – onde há vegetação – é retirada. Blocos retangulares são então cortados utilizando ferramentas especiais, retirados e empilhados, para que sequem, o que pode levar semanas. Depois de secos, os blocos podem ser usados para diversos fins, como produção de energia, aquecimento de lares e, claro, secar a cevada que se tornará whisky.

Deixe-me explicar isso com mais cuidado. Em um dos processos iniciais da produção da bebida, a maltagem, o grão de cevada é molhado, para que comece a germinar. Essa germinação, porém, deve ser interrompida (leia mais sobre isso aqui). Neste processo, conhecido como kilning, as destilarias podem empregar duas técnicas diferentes. A primeira é pela temperatura. Aumentando a temperatura do galpão onde a cevada germina, o grão acaba desidratando, secando e – consequentemente – deixando de germinar.

A segunda é aquecendo a cevada em fase de germinação com a fumaça quente de um forno alimentado por turfa. Além de interromper o processo de germinação, essa fumaça impregna a cevada com um delicioso aroma que varia entre o enfumaçado e o medicinal. Dependendo do tempo de secagem no forno e da quantidade de turfa utilizado, pode-se criar um malte mais ou menos turfado.

kilning na Laphroaig

O nível de defumação é medido em partes por milhão de fenóis – que são os compostos responsáveis pelo sabor medicinal e enfumaçado. Destilarias que terceirizam o processo de kilning – que são muitas – podem então especificar o nível de defumação pretendido para seu malte. Basta que solicitem, por exemplo, malte turfado a 30 ppm de fenóis. Para ilustrar, o excelente Ardbeg 10 anos, por exemplo, possui em torno de 55-65 ppm de fenóis. Já o Talisker 10, apenas 16-22 ppm.

O single malt mais turfado do mundo, atualmente, é o Bruichladdich Octomore 08.3, com 309 ppm. Para atingir este nível, a Bruichladdich utiliza uma técnica tão genial quanto contra-intuitiva. Durante o kilning, ela resfria a fumaça proveniente dos fornos de turfa, para que o processo de secagem da cevada leve mais tempo, e mais fumaça entre em contato com o grão até que ele esteja completamente seco.

Mas o assunto da turfa não é tão simples assim. Não é como colocar o pão na torradeira, e quanto mais tempo ele ficar lá dentro, mais queimadinho vai ficar. Porque há outras variáveis no processo, como, por exemplo, de onde a turfa é retirada. E aí, entramos num assunto que merece um capítulo só dele, chamado de:

1.1. TERROIR DE TURFA

Talvez, aqui, o emprego da palavra “terroir” esteja incorreta. Mas, por falta de algo melhor, vou utilizá-la assim mesmo, à revelia e para o desespero dos enólogos que chegaram a este ponto do texto. Me desculpem, mas “terroir” é a palavra que mais se aproxima do conceito que explicarei a seguir, ainda que inexata.

Três fatores influenciam na composição química da turfa: o tipo de vegetação que compõe a turfeira, o clima e a profundidade de extração da turfa – afinal, há menos oxigênio em profundidades maiores, e mais nitrogênio. Porém, este Cão não saberia afirmar o que cada um destes fatores traria para o nariz de um belo single malt turfado.

Em 2006, um cientista chamado Barry Harrison estudou a composição química de diferentes turfeiras na Escócia. Barry analisou turfa retirada de Hobbister Moor em Orkney, Gartbreck, Glenmarchie e Castlehill em Islay, Tomintoul em Speyside e St. Fregus na parte norte da porção continental escocesa. O estudo mostrou que havia diferenças bastante acentuadas nas amostras. A turfa de Orkney apresentava mais urze do que a de Islay, por exemplo. St. Fergust possuía mais lignina, enquanto Tomintoul, mais musgo (sphagnum).

Composição de diferentes turfeiras (fonte: whiskyscience.com)

Harrison concluiu que “a implicação é que turfas de diferentes origens podem contribuir com diferentes características químicas para o malte turfado e, portanto, para o whisky escocês turfado“. O que, para nós, entusiastas do whisky, parece fazer todo sentido. Os whiskies de Islay apresentam aroma mais medicinal, de esparadrapo, e um defumado seco. Já a fumaça de whiskies como a finada Brora e Ardmore são mais adocicados e menos medicinais.

Mas eu disse lá em cima que o sabor enfumaçado poderia vir também da torra de barricas. Então, vamos à segunda parte:

2. QUEIMA DO BARRIL

A queima do barril é outro fator que traz um certo aroma queimado para o whisky, ainda que bastante distinto daquele da turfa. Se você em algum momento sentiu certo aroma queimado ao provar um bourbon whiskey, esta sensação quase certamente veio da torra do barril.

Um barril de carvalho possui diversos compostos. Como, por exemplo, hemicelulosa, ligniga, taninos e lactonas. A queima do barril afetará estes compostos. A hemicelulose, por exemplo, quando queimada, se quebrará em açúcares, trazendo uma certa caramelização no interior da barrica – um certo caramelo queimado, parecido com aquele da calda de pudim que ficou muito tempo no fogão e grudou no fundo.

Tradicionalmente, há quatro níveis de torra dos barris. O nível 1 é o mais suave. O nível 4 é conhecido como “alligator char”, por tornar a superfície da madeira com uma textura áspera, reminiscente da pele de um crocodilo. Quanto mais alta a torra, maior será a sensação de caramelo queimado ao provar a bebida.

Alligator Char (fonte: Diffordsguide.com)

Mas a queima do barril não é utilizada apenas na indústria do whiskey americano. Alguns single malts turfados se aproveitam disso para parecerem ainda mais enfumaçados – O Talisker Dark Storm, por exemplo, é bem pouco turfado, mas a utilização de barricas altamente tostadas acentua a impressão de fumaça.

CONCLUSÃO

Assim, caros leitores, da próxima vez que sentirem aquele sabor de cinzeiro, mesclado com couro em chamas, esparadrapo, remédio e carne queimada (é, eu sei é melhor do que soa), você já sabe a razão. Pode vir da caramelização da madeira, ou da secagem da cevada com turfa – um processo mais ou menos nojento e cheio de nuances. Mas cujo resultado é absolutamente e incrivelmente delicioso.

21 thoughts on “De onde vem o sabor defumado do whisky

  1. Parabéns pelo artigo, muito bem escrito e recheado de informações interessantes. Na minha humilde opinião, o seu melhor até o momento.

  2. Talvez o senhor tenha percebido que gosto de whisky. Em especial os defumandos. E o responsável foi justamente um Ardbeg 10yo. Este whisky resignificou toda minha paixão por whiskys, sobretudo single malts.
    Em relação a queima do barril, eu notei que tenho conseguido pegar mais notas de tostado em meus whiskys tradicionais como Chivas e Dewars 12yo. Será que estou aprendendo hahaha?
    Mestre, existe alguma possibilidade da turfa acabar? =O
    Excelente texto e q conclusão foi genial!

    1. Mestre, certamente aprendendo! Mas o sr já é um entusiasta experiente!

      Nenhuma possibilidade. Não durante nossa vida, então, fique tranquilo! rs

  3. Muito bom o artigo. Toda vez que leio algum artigo seu sobre whiskys defumados fico com mais vontade de provar todos.
    Eu tenho duas perguntas:
    Onde você encontrou a informação sobre concentração de fenóis?
    Alguma indicação de whiskys defumados com preços mais acessíveis?

    1. Opa, fala Vinicius, tudo bem?

      Estas infos tiramos de livros – Malt Whisky Yearbook e Peat Smoke & Spirit. Mas algumas destilarias divulgam “na cara”, tipo a Bruichladdich.

      Aqui no Brasil, o defumado mais barato é o Talisker. Depois, creio que seja o Arran Machrie Moor, à venda na lojadewhisky.com.br, que é a importadora exclusiva deles. Depois, Laphroaig e Ardbeg. Mas, nenhum deles é exatamente acessível, se me perguntar.

  4. Opa, tudo bom Ana? Nosssa, tão TANTOS!! Sou especialmente fã de Bowmore. Laphroaig e Bruichladdich são incríveis também, e mais fáceis de se comprar no Brasil 🙂

  5. Li seu artigo degustando um Laphoaig 10 anos. Senti um gosto totalmente medicinal, ou estou equivocado? Parece engraçado o “cheio de esparadrapo” mas é exatamente o que se sente quando paramos pra pensar, entre outras notas de cheiro e no sabor. Não sei se é exatamente o tipo de whisky que mais gosto, ainda estou descobrindo, mas a história que esses whiskies contam é algo fora do comum.
    Só te peço uma coisa: Nunca pare de escrever. Mas pode ser menor irônico com os novatos la no facebook, tá? kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
    Brincadeiras, amigo! Abraço!

    1. HAHAHAHAH! Fala Rafael, tudo bem, meu caro? É isso aí, esparadrapo foi uma definição perfeita! O medicinal é justamente isso – hospital.

      Olha, fiquei curioso sobre o irônico, me conta? (sem ironia, rs!)

  6. Fala mestre! Mais uma vez, parabéns pelo texto e todo conteúdo produzido!

    Qual whisky recomenda para entrar no mundo dos defumados? Os citados anteriormente, Talisker, Laphroaig, Ardbeg, Arran Machrie Moor, ou algum blended que tenha sabor e aroma defumados, como JW Double Black e Black Grouse?

    Já que a distância e o momento atual impossibilita uma visita ao Caledônia para degustá-los, a próxima compra será um defumado! Slàinte Mhath!

    1. Fala mestre! Muito obrigado!!

      Olha, eu sou partidario de pegar no tranco. Então, iria de Laphroaig. Que é bem intenso e medicinal. Mas, se voce quiser ser mais conservador, Talisker é um whisky que não vai assustar tanto, nem financeiramente quanto sensorialmente.

  7. Boa noite Mestre Cão, preciso de um conselho seu : um amigo meu, irredutível apreciador de Blended Scotch, me perguntou quais eram os Blended mais turfados/defumados que existem. Conheço um pouco a respeito de Single Malt e de Blended Malt, mas como não sou muito fã de Blended Scotch não sei quais indicar para ele. Para dar-lhe uma ideia, ganhei uma garrafa de Dewar’s 15 anos no Natal de 2019, provei puro, gostosinho sem mais nada e logo estava eu colocando umas generosas gotas de Ardbeg 10 anos no copo… e um milagre aconteceu !!! Ao ponto de ter comprado uma garrafa deste mesmo Dewar’s 15 quando apareceu em Fevereiro do ano passado pelo incrível preço de R$89,00 no supermercado. Agradeço antecipadamente a sua ajuda e a sua paciência. Boas descobertas e parabéns sempre pelos belos e sofisticados textos. Slàinte Mhath !

    1. Caro Patrick, tudo bom?

      Aqui no Brasil, os mais turfados: Laphroaig (qualquer um), Ardbeg, Port Charlotte. Talisker está um tom abaixo de fumaça, mas é uma delícia. Estou com a impressão de ter esquecido algum, mas, creio que não.

      1. Boa noite prezado Mestre Cão, agradeço a sua resposta mas o meu amigo perguntou a respeito de Blended , não de Single Malt (sim, na ordem, Octomore, Ardbeg, Port Charlotte, Laphroaig, Lagavulin) ou de Blended Malt (por exemplo o ótimo JW Green Label de 15 anos, os Compass Box, Rock Oyster, Smokehead, Big Peat, Peat Monster e tantos outros…).
        Como não entendo quase nada de Blended Scotch, só me lembro de alguma coisa tipo Logan 12 Anos no qual se sentia um defumado no retrogosto (Nem sei se ainda existe…).
        Por isso, agradeço indicações suas de Blended Scotch mais turfados/defumados.
        Agradeço e aprecio muito os seus comentários, sempre objetivos, bem estruturados e fundamentados, verdadeiras análises científicas que tanto incentivam nossos vírus de COWISKED-21(perdão pelo horrível trocadilho de extremo mau gosto, porém irresistível hoje em dia quando nunca se falou tanto em álcool).
        Saudações de um coyote carioca, também gafanhoto em certas horas.

        1. Caro gafanhoto Patrick (que de gafanhoto tem nada – sempre comentários muito bem vindos).

          Blends defumados, você está certo. Logan usa Lagavulin como base, assim como White Horse. Mas, hoje, há mais. Teacher’s é defumado, com Ardmore em seu coração. Black Label leva Talisker e Caol Ila. Sâo alguns, e para todos os gostos e bolsos. Mas nenhum tão enfumaçado como um single enfumaçado.

  8. Excelente artigo e excelentes colaboradores contribuindo de forma educada (infelizmente ocorrência rara no mundo atual).Encontrei o blog casualmente.
    Estava lendo um conto de Hemingway, onde um parceiro de bebida (Nick,alter ego do autor),pergunta sobre se acrescenta a turfa em uísque (irlandês).
    O personagem (Bill responde que “não prejudica em nada”).
    Parabéns ao autor e leitores.
    Quem sabe,possamos avançar no tema e até criar uma confraria (viagem minha ?).
    Saudações turfadas e fraternas a todos !

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