O Cão Geek – Fermentação no whisky

Para quem não sabe, sou advogado. Trabalhei por mais de dez anos em direito societário e financeiro. Então, digo com conhecimento de causa. Direito é chato. Na verdade, deixe-me ser mais específico. O Direito é aquela área de conhecimento capaz de tornar enfadonha até a mais instigante atividade.

Fórmula 1 por exemplo. Tudo é empolgante: alta velocidade, competitividade, tecnologia de ponta. Mas o contrato de locação da pista é chato. Ninguém quer ler o contrato de locação da pista por puro prazer. Música também, não importa seu gosto. É uma enorme satisfação ver uma apresentação de seu artista ou compositor preferido, seja Arvo Paart, Korn, Maiara & Maraísa ou Lady Gaga. Mas, o contrato de cessão de direitos de imagem é chato.

Se você discorda de mim, peço que responda de forma cândida. Quando foi a última vez que você leu tudo antes de clicar no quadradinho de “eu concordo com os termos do contrato” ao baixar algum software ou jogo, ou aderir a alguma promoção no shopping? Ninguém le os termos do contrato, e eu sei disso, porque por três anos, eu escrevi mais de vinte termos do contrato, e ninguém – nem meu chefe, que devia revisá-los – leu. E eu nem repreendo, porque eu sei que é insuportável.

Mentira.

No mundo do whisky, fermentação é um pouquinho assim, também. Falar de fermentação é chato. Porque, em whisky, tem assunto bem mais legal. Tipo quanto o corante caramelo influencia no sabor do seu whisky. Ou como as destilarias malvadas, comercialmente vendidas, passaram a fazer filtragem a frio para ganhar clientes, e esqueceram de seus entusiastas esclarecidos. Fermentação é chato. Não tem emoção, é só fungo, bactéria, cheiro ruim e espuma – uma descrição perfeitamente aplicável também ao banheiro da loja de conveniencia do posto mais próximo de sua casa.

Mas, fermentação é um passo necessário para a produção de whisky. E há nuances, também. Processos, escolhas. Fermente seu mosto de forma equivocada, e terá um whisky terrível. Escolha bem sua levedura e a gravidade de seu wort. Este post é para você, querido entusiasta, que está com insônia, e quer saber mais sobre este desprezado estágio de produção. Se você não dormir, sairá um pouquinho mais sábio. Ou não.

Malteação

A Malteação é a primeira parte do processo de fermentação. Ela não é obrigatória, mas, ao mesmo tempo, é. Aqui, o grão é molhado para que parcialmente germine. Qualquer grão pode passar por este estágio, mas, tradicionalmente, usa-se cevada maltada. Há várias razões para isso. A primeira, é histórica – a cevada maltada era o grão predominante onde se produzia whisky nos tempos antigos. Mas é também científica. Durante o processo de malteação, há a liberação das enzimas que convertem o amido nos grãos em açúcares. E serão estes açúcares que, mais tarde, serão fermentados.

Por isso, ela é e não é obrigatória, tipo ler os termos do contrato. Se não maltear o grão, poderá substituir o processo por uma torra por exemplo. É o que destilarias de grain whisky e bourbon fazem. O grão é torrado e depois moído, para que o amido se torne mais acessível.

Mash Tun da The Macallan

Depois, este pó é misturado à cevada maltada. As enzimas da cevada maltada se encarregarão de quebrar o amido dos demais grãos não maltados. E há grãos que, naturalmente, já possuem uma boa quantidade de açúcares – basta que sejam cozidos. O milho é um exemplo. Seja como for, as enzimas contidas na cevada maltada auxiliarão na atalização da conversão de amido em açúcares.

Há whiskies que não usam cevada maltada em nenhum estágio? Sim. Mas o processo de fermentação é bem mais difícil, e, por isso, são casos excepcionais e raríssimos.

Mostura

A mostura já foi parcialmente explicada acima. O grão é moído e cozido, até que se torne uma espécie de xarope bem ralo, ou talvez um mingau. É esse líquido que contém os açúcares dos grãos, que mais tarde será fermentado. A temperatura e o tempo de cozimento dependerá, essencialmente, do grão utilizado. Em alguns casos, há mudança de pressão, para acelerar o processo.

O processo de mostura acontece em um recipiente ou equipamento, conhecido como Mash Tun. É nele que água quente induzirá as enzimas da cevada a transformar o amido em açúcares fermentáveis, principalmente maltose. A água quente é adicionada em em três ou quatro estágios diferentes, com temperaturas cada vez mais elevadas. A primeira tipicamente é de 62ºC, e a última. 85ºC – para destruir as enzimas que já converteram o amido em açúcar. A cada estágio, a água é drenada.

Por fim, o líquido – conhecido como wort – é drenado por meio de um fundo falto na base do mash tun. As cascas e frações maiores dos grãos funcionam como uma espécie de filtro. Essa parte é importante. O líquido drenado, Wort, que será fermentado. O nível de filtragem afetará o sabor do whisky. Um wort mais opaco, contendo cascas e farinha, produzirá um destilado mais apimentado e maltado. Um mosto mais clarificado – como é o caso da Mortlach – produzirá um whisky mais leve.

Se você ainda está acordado, talvez seja hora de falar de mash tuns. Nem todos os mash tuns são feitos igualmente. Há três tipos principais. Os tradicionais rake-and-plough, os lauter e semi-lauter. A maior diferença está em como o líquido é agitado em seu interior. Rake-and-Ploughs lembram uma enorme haste com braços mecanizados, que emergem e submergem da mistura, para evitar que a farinha mais grossa se deposite no fundo. Como revolvem toda a mistura, o wort produzido é mais opaco.

Rake-and-plough da Bruichladdich

Lauters e semi-lauters são parecidos. Num semi-lauter, há uma enorme haste metálica com barbatanas que descem, e chegam até o fundo do mash tun. Essas barbatanas são fixas, e a haste gira em um pivô central. Em palavras mais simples, há um movimento de rotação da haste, mas não das lâminas. No lauter, ou full-lauter, a haste e as barbatanas giram. A ideia é que esse movimento promova a drenagem sem agitar demais a mistura, produzindo um wort mais claro. No full lauter, as lâminas podem subir ou descer, controlando a agitação no fundo do mash tun. A Glenmorangie, por exemplo, usa full-lauters. A Glenfiddich, mash tuns com hastes rake-and-plough tradicionais.

O Bourbon é um caso curioso. Água é adicionada aos cereais, que são cozidos numa espécie de panela de pressão gigante – ou, se você preferir, um ofurô com lâminas mortais – que são diferentes de rake and plough, lauters e semi-lauters. Cada grão exige um tempo diferente de cocção e de pressão. Incrivelmente, um dos períodos mais longos é o do milho – em torno de uma hora, reduzido para vinte e cinco minutos graças à pressão. Essa mistura – agora chamada de mosto – é resfriada, e transferida para os tanques de fermentação.

Fermentação

Antes da fermentação, o wort é passado por um trocador de calor, que reduz sua temperatura para 34ºC. Isso é importante, porque é nessa temperatura que a levedura trabalhará melhor para fermentar o líquido. Esta fermentação ocorre em outro recipiente, conhecido como washback. Assim como os mash tuns, há diferentes tipos de washbacks.

Os tradicionais, são feitos de madeira, especialmente pinho. Outros, mais modernos, utilizam aço inoxidável. Aqui, há um enorme debate sobre as implicações disso no destilado final. Então, talvez, fermentação seja um assunto mais interessante do que Direito. Mas, enfim.

Washbacks da Auchentoshan

Os que preferem washbacks de madeira argumentam que estes possuem um papel no controle de temperatura do mosto. Madeira esfria e esquenta muito menos do que aço inox. Por isso, criam um ambiente mais favorável para que a levedura transforme o açúcar em álcool. Além disso, washbacks de madeira preservam a micro-fauna de bactérias e fungos que podem auxiliar no processo de fermentação, trazendo complexidade ao wash, que será destilado.

Aço inoxidável, por outro lado, é bem mais prático. É mais fácil de limpar, e exige bem menos manutenção. As almas práticas, partidárias dos washbacks inoxidáveis dizem que eles também podem ser lar de microorganismos. Basta ser relapso na limpeza e deixar uns cantinhos propositalmente sujos. O que às vezes pode parecer meio nojento, mas faz todo sentido. Destilarias que produzem um whisky mais leve tendem a preferir washbacks de madeira. É o caso da Aberfeldy, por exemplo. Mas, há exceções para ambos os lados.

Washbacks de inox da Ben Nevis

O processo de fermentação em si ocorre quando levedura – que é um fungo – é adicionada ao wort dentro dos washbacks, junto com um pouco de água. A levedura imediatamente começa a trabalhar, convertendo os açúcares do líquido em álcool e gás carbônico.

Há variações infinitas neste estágio também. Muito do sabor do new-make do whisky vêm da fermentação e seus componentes. Como o tipo de levedura usado, o tempo de fermentação, temperatura e a gravidade do wash. Vamos falar de cada um deles, e depois, eu prometo que sua noite de sono será tão agradável quanto a de um tartígrado em hibernação.

Primeiro, a levedura. Até 2003, as destilarias escocesas eram obrigadas a usar uma úncia cepa de levedura, a DLC M, de saccharomyces cerevisiae. Atualmente, a destilaria poderá usar a variação que quiser. Algumas das mais usadas são Mauri, Kerry e MX. Essas leveduras podem ser adquiridas em diferentes formas. Líquida, semi-seca e seca. A escolha depende, na verdade, da durabilidade versus custo. Maioria dos produtores escoceses preferem a versão líquida, ainda que mais frágil.

O tempo de fermentação é a variação mais conhecida e alardeada pelas destilarias. Uma fermentação de até 50 horas é curta. De 60 a 75 horas, média, e acima de 75 horas, longa. A Aberfeldy é uma das destilarias com o processo fermentativo mais longo da Escócia. São mais de 120 horas. Em tese, quanto mais longa, mais floral e menos maltoso será o new-make final, porque aproveita-se o período de hibernação das leveduras, e a ação de bactérias oportunistas no wash. Este é um assunto bem discutível.

O processo de fermentação, convertendo açúcares em gás carbônico e álcool pelas leveduras aumenta a temperatura do tanque. Por isso, boa parte das destilarias utiliza processos de resfriamento, para manter a temperatura da mistura numa faixa favorável à produção de álcool da levedura. A escolha da temperatura de fermentação será importante porque poderá ou não dar espaço para microorganismos oportunistas. Uma bactéria, por exemplo, que trará mais acidez ao mosto, será vitoriosa em temperaturas mais altas, onde a levedura não está mais tão ativa.

Por fim, a gravidade do wash não tem nada a ver com a força que nos puxa para o centro da terra. Mas, tão somente, à proporção entre wort e água que é adicionada aos washbacks. Um wash com maior “gravidade” é mais concentrado, com mais wort e menos água. O rendimento aqui é menor – porque as leveduras teríam muito trabalho para converter todos os açúcares em álcool. O resultado é um new-make mais puxado para o malte, como é o caso de Cragganmore.

Seja como for, o próximo passo do processo é a destilação. O mash, depois da fermentação, é transferido para os alambiques, onde é aquecido e destilado, produzindo os low-wines. Mas, essa parte, todo mundo já conhece e ama. Todo mundo quer discutir sobre altura dos alambiques, angulo do Lyne Arm e operação do alambique. É tipo jogar videogame. Apertar start é sempre uma delícia. Dureza é ler os termos e condições do contrato.

3 thoughts on “O Cão Geek – Fermentação no whisky

  1. Prezado Cão, parabéns pelo espaço de divulgação (e divagação!) de whisky. Seus textos são ótimos. E esse leitor aqui é justamente um dos que aprecia…a levedura. Trabalho com essa senhora e ela tem lá seus encantos, embora por vezes apronte suas peripécias. Tem um livro legal, não acadêmico que sugiro: A Ascensão da Levedura (Como um simples fungo moldou a nossa civilização). Abraço!

  2. Sou exceção, adorei o assunto, acho fascinante estes detalhes e você sempre explica muito bem!

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