Algumas memórias são mais perenes que outras. Para whiskies também. Há rótulos que nem lembro de ter bebido – o que, na verdade, é ótimo e não é. Porque, por um lado, é uma desculpa pra beber de novo. Por outro, se eu não lembro, então é porque não era nada demais. Então é só uma desculpa pra beber de novo algo medíocre.
Mas enfim, há outros tão arraigados em nossa memória que se tornam quase marcos etílicos. Um deles, para mim, é o Octomore – conhecido como o whisky mais defumado do mundo. Experimentei o Octomore (a edição 3.1) quando fui para a Escócia há uns bons anos. Vou contar como foi.
Como um apaixonado por whiskies defumados, quando estive por lá, procurei o Octomore por toda parte, mas sem sucesso. Comentei isso com um rapaz de uma loja de roupas – não me pergunte por que entrei no assunto de whiskies com um vendedor de uma loja de vestuário masculino, talvez por ser a Escócia – que se compadeceu com meu ébrio sofrimento e recomendou um bar que possuía uma garrafa – o The Abbotsford. Corri tanto que quase me teleportei para lá.
Apontei para o Octomore na prateleira. O bartender, então, num misto de descrença e masoquismo, me serviu uma dose, enquanto atentamente observava minha reação. Notei que meu vizinho de balcão – um senhor que devia ter visto a construção do palácio de Holyrood – também ficara interessado por meu pedido aparentemente insólito, e coçava a barba em expectativa. Sorri – nada poderia ser mais forte do que um Aberlour A’Bunadh, por exemplo. Eu estava resoluto. Tomei um gole.
A medida que o defumado descia pela minha língua em direção ao esôfago, senti que ruborizava. Meus olhos encheram de lágrimas, mas não de alegria. Meu deus do céu, aquele whisky era absurdamente enfumaçado e alcoólico. Era uma delícia, mas, prová-lo pela primeira vez fez meu corpo discordar de meu paladar. Me segurei para não franzir a testa. Apertei os lábios e, passando a língua pelo céu da boca, acenei com a cabeça. O senhor, ao meu lado, levantou seu copo num misto de surpresa e orgulho. Fiquei contente – aquilo foi praticamente um rito de passagem para mim.
E ainda que aquela experiência tenha sido um tanto desconcertante, acabei amando o Octomore. Tanto que se tornou um de meus rótulos preferidos. Quando voltei para a Escócia, bons cinco anos depois, tive a oportunidade de visitar a destilaria. E lá encontrei uma garrafa de algo que me fez novamente suar. Mas de expectativa. O Octomore 8.2 Masterclass, insanamente defumado, e maturado em barris de vinho. Tive que levar uma.
Logo que cheguei em casa, resolvi experimentá-lo. E novamente, meus olhos marearam. Mas, dessa vez, não pela força do whisky. Mas porque ele era fantástico. O turfado era latente. Tão enfumaçado que a dose que descansava no copo podia ser sentida há metros de distância. Mas, no paladar, além da fumaça, iodo, esparadrapo e couro, havia um adocicado floral delicioso, que amarrava todo aquele material em chamas. Era ainda melhor do que a lembrança que tinha do outro Octomore. Resolvi pesquisar sobre ele.
O Octomore 8.2 Masterclass possui 167 PPM de fenóis (a medida que indica o quão defumado é o whisky). Em comparação, um Ardbeg possui em torno de 50. E sua maturação é bem mais complexa do que imaginava, ainda que breve – 8 anos. Primeiro, partes de seu new-make são maturados em três diferentes barris de vinho. Mourvèdre (um vinho tinto bastante terroso), Sauternes (adocicado e floral) e um certo vinho doce austríaco. Depois, as três partes são reunidas, e passam mais dois anos em barris de Amarone – um vinho tinto italiano bastante intenso, de Corvina Rondinella.
Os Octomore são edições limitadas anuais da destilaria Bruichladdich, localizada em Islay, na Escócia. São sempre whiskies extremamente turfados – utilizando, inclusive, métodos inovadores para atingir tais marcas – que desafiam convenções do mundo do whisky. De acordo com a destilaria “Uma série esotérica de lançamentos numerados, experimentais, na maioria muito limitados, enfraqueceu fatalmente a suposição de que a qualidade do uísque escocês single malt é simplesmente uma função de sua idade.“
Se você gosta de desafios, é apaixonado por whiskies defumados – mas apaixonado mesmo – ou aprecia single malts extremos, o Octomore 8.2. é para você. Pra falar a verdade, ele é para você mesmo que você não goste de nada disso. Se puder, prove o Octomore 8.2. Uma coisa é certa – este criará uma memória difícil de ser olvidada.
BRUICHLADDICH OCTOMORE 8.2 MASTERCLASS
Tipo – Single Malt com idade definida (8 anos)
ABV – 58,4%
Região: Islay
País: Escócia
NOTAS DE PROVA
Aroma: fumaça, couro, esparadrapo. Há um certo alcaçuz de fundo, com frutas vermelhas. Mas a turfa é a nota predominante.
Sabor: Turfa, com couro, carvão, pimenta do reino, couro, bacon e esparadrapo. O frutado fica mais evidente do meio para o final. Floral, mas sem ser enjoativo, framboesa.
Parabéns pelo trabalho! Sou um entusiasta do blog e não posso deixar de fazer um pequeno comentário em relação à uma das uvas: acabou saindo mouverde, mas o correto seria mourvèdre. Sou do RJ mas estou aguardando passar esse período de pandemia para visitar o restaurante em São paulo! Abçs
Opaa!! Obrigado Thiago, erro nosso. Corrigido! Valeu pelo toque
Só achei o 08.1 por 1.000 reais, como comprei uma caixa do Bolivar Belicosos Finos, estou balançando para comprar essa garrafa… Que harmonização perfeita deve ser! Ansioso, mas não achei nada do 08 1…
Que harmonização!!