Nada como um programa cultural no domingo para escapar um pouco da rotina. Como, por exemplo, o Museu da Casa Brasileira, em São Paulo. Caso você more ou esteja de passagem pela (progressivamente) cinzenta capital paulista, vale a pena conhece-lo.
A ideia do Museu – um casarão de estilo neoclássico construído na década de quarenta – é mostrar a arquitetura e design brasileiros, tanto do passado quanto contemporâneo. Há, inclusive, um prêmio de design criado por eles, para justamente incentivar a produção de peças de mobiliário autorais e arquitetura.
E apesar de mobiliário e arquitetura serem assuntos bacanas, a real razão pela qual o Cão visitou o museu foi outra. É que ocorreu no fim de semana do dia 08 de dezembro a Feira Sabor do Brasil – uma feira gastronômica com alguns dos melhores produtores brasileiros de quase tudo que é comestível ou bebível: queijos, embutidos, pipoca, pães, queijos (e que queijos!), doces, gim (Virga, que já esteve nestas páginas caninas) e, claro, cachaça – a ótima Sebastiana, que o Cão teve a oportunidade de conhecer e provar.
Se você está se perguntando por que o Cão está falando de cachaça, a explicação é simples. A Sebastiana é uma cachaça, mas inspirada no melhor do mundo do whisky. Isso fica bem claro na descrição que acompanha uma de suas expressões, batizada de Duas Barricas, que ilustra este drops“A associação dos conhecimentos adquiridos na Escócia (terra dos Single Malts) e do Kentucky (terra do Bourbon nos Estados Unidos), foram base para a criação desta bebida de sabor inigualável no mercado.”. Pronto, agora que tiramos isso da frente, podemos continuar.
A Sebastiana é uma cachaça super-premium, produzida no Alambique Santa Rufina, localizado em Ibaté, no interior de São Paulo. Há quatro expressões: Cristal (sem maturação), Castanheira (maturada em barricas de castanheira), Single Barrel (no melhor estilo small-batch whisky, uma cachaça maturada em barricas virgens de carvalho, e engarrafada a partir de um único barril) e Duas barricas (um verdadeiro Doublewood brasileiro – maturada por 18 meses em barril de Castanheira brasileira e mais 18 em barril de Carvalho americano – absolutamente genial).
Museu ao fundo
As cachaças da Sebastiana já receberam tantos prêmios internacionais quanto alguns dos melhores whiskies. Nas orgulhosas palavras da própria marca “Em 2014, a Sebastiana Castanheira foi medalha de ouro no San Francisco World Spirits Competition e no New York World Wine & Spirits Competition, enquanto que a Sebastiana Carvalho recebeu medalha de prata no New York World Spirits e Wine & Spirits Competition e medalha de bronze no International Spirits Challenge de Londres.”
A feira infelizmente já acabou. Mas se você ficou curioso com a Sebastiana, pode experimentá-la em bares como Cão Véio, Sal Gastronomia, Bar Baronesa e Empório Sagarana ou comprar a garrafa nas lojas do Eataly, Empório Santa Maria e St. Marché em Sâo Paulo, ou online na Single Malt Brasil. No interior de São Paulo, ela está a venda no Empório Santa Therezinha e Museu da Gula, em Ribeirão Preto e Campinas.
Ah, e se gosta de cerveja, há também a Jupiter Sebastiana, uma cerveja maturada nas barricas que foram usadas para maturar a cachaça. Porque claro, whisky é a melhor bebida do mundo. Mas as vezes a gente quer escapar da rotina.
Este é o terceiro texto de uma série sobre como whisky – com ênfase em single malts – é produzido. Já abordamos assuntos tão diferenciados quanto crianças curiosas, fabricação de automóveis e nuggets de frango. Falamos de notícias indigestas, cevada, fermentação, destilação, turfa e maturação. Caso você tenha perdido, clique aqui para a primeira parte, ou aqui para a segunda. Senão, fique aqui comigo.
Hoje falarei um pouco de botânica – afinal, barricas são feitas de carvalho, que são árvores – e um pouco de química (esteres, aminoácidos, proteínas e tudo aquilo que sua professora ou professor falavam enquanto você dormia, vandalizava a sua mesa como um entalhador-mirim-fora-da-lei ou desenhava).
Preparem-se para a derradeira parte de um déja-vu acadêmico. Mas, dessa vez, sobre um assunto bem mais legal. Whisky.
MATURAÇÃO 2/2
Scotch whiskies normalmente são maturados em barricas que já foram utilizadas por alguma outra bebida, ainda que haja exceções – o delicioso Laphroaig An Cuan Mór sendo uma delas. A maior parte dos scotch whiskies é envelhecida em barricas de carvalho americano que antes continham Bourbon whiskey, ainda que a frequência de whiskies maturados em barricas que envelheceram Jerez tenha aumentado bastante nos últimos anos.
O tempo de maturação para atingir certo resultado nem sempre é o mesmo. Há uma série de fatores que pode influenciar – acelerando ou atrasando – o processo de envelhecimento do whisky.
O primeiro deles é o tamanho da barrica. De acordo com as Scottish Whisky Regulations, scotch whiskies devem necessariamente passar três anos em barricas de carvalho com volume máximo de setecentos litros. Entretanto, barricas menores podem ser utilizadas (e maiores, após estes três anos). Novamente, utilizando nosso costumeiro simplismo, quanto menor o barril, mais rápida será a maturação de um whisky.
O segundo fator é a quantidade de vezes que a barrica foi usada. Já expliquei isto por aqui, mas vale a pena relembrar, com uma autocitação. “Barris podem ser utilizados várias vezes, mas cada vez que são reutilizados, perdem um pouco da capacidade de transferir seus sabores para o destilado. Assim, talvez um whisky de trinta anos maturado em uma barrica de terceiro uso – ou melhor, reuso – não seja tão saboroso quanto um doze anos que passou sua breve vida em carvalho de primeiro uso.”
“A influência de um barril de ex-bourbon de carvalho americano de segundo uso é – mais ou menos – setenta por cento inferior àquela de um de primeiro uso. No caso de terceiro uso, ou reuso, o percentual cai para dez. Aí vai um gráfico desenhado sem qualquer esmero no paint, para ilustrar:”
Por fim, e talvez pareça bem óbvio, a bebida que antes fora envelhecida na barrica influencia em seu sabor. Whiskies maturados em barricas de ex-bourbon retém parte dos sabores de mel e baunilha característicos dos whiskeys americanos. Já aqueles que passam por barricas de Jerez ou vinho do porto, por exemplo, adquirem certo sabor de vinho fortificado.
A maioria das destilarias matura seus whiskies em mais de uma espécie de barrica. É comum que sejam combinados whiskies maturados em ex-jerez e bourbon, ou que se transfira um whisky que passou algum tempo em carvalho americano para caravalho europeu. Essa prática busca combinar os sabores provenientes das diferentes barricas, resultando num produto mais complexo e equilibrado.
O processo conhecido como “finalização” ou “finish”, alardeado pela Glenmorangie, Balvenie, Glenfiddich, Laphroaig e tantas outras, não é muita coisa além disso – a transferência de um whisky de uma barrica para outra, para complementá-lo e refiná-lo, conferindo-lhe características especiais da segunda barrica. Até mesmo a Johnnie Walker lançou, recentemente, um blended whisky com finalização: o Blender’s Batch Rye Cask Finish.
ENGARRAFAMENTO
Neste ponto, o whisky está quase pronto para ser engarrafado. No entanto, antes disso há três processos, que podem ou não acontecer.
O primeiro deles é a filtragem a frio, ou chill-filtration. Neste processo, o whisky recém retirado do barril passa (ou melhor, é bombeado usando aumento de pressão) por filtros – normalmente de celulose – a temperatura baixa. Essa temperatura pode variar de acordo com a destilaria, mas normalmente está lá entre os cinco e dez graus, ainda que algumas utilizem temperaturas bem mais baixas. Compostos maiores ficam retidos no filtro, enquanto os menores o atravessam.
A função da filtragem a frio é evitar que seu whisky fique feio. Ou melhor, opaco. É isso mesmo. Whiskies não filtrados a frio tendem a desenvolver uma certa turbidez, ou opacidade, se resfriados, ou se sua graduação alcoólica é reduzida de alguma forma (adicionando-se água ou gelo, por exemplo). Isso acontece porque há compostos pesados – ésteres, proteínas, aminoácidos – que tornam-se insolúveis em temperatura baixa ou graduação alcoólica reduzida, que precipitam.
Há uma certa polêmica sobre filtragem a frio. Muitos alegam que os componentes retidos no filtro até poderiam dar uma aparência feia ao whisky, mas são um importante componente de sabor. Assim, filtrando-se a frio, a destilaria estaria retirando parte da principal razão pela qual as pessoas deveriam comprar whisky – beber algo gostoso.
O segundo processo é a redução da graduação alcoólica. O whisky geralmente sai do barril com graduação alcoólica entre 50% e 75%. Assim, adiciona-se água, para que sua graduação alcoolica seja reduzida para valores mais modestos. O valor mínimo para engarrafamento de um scotch whisky é 40%. Há, no entanto, alguns whiskies que são engarrafados com a graduação original de sua barrica. São os conhecidos Cask Strength. Geralmente, estes são whiskies mais caros, e com tiragem mais limitada.
A’bunadh. Quase 60% de delícia.
O terceiro processo é a adição de corante caramelo, ou E150. O propósito aqui é mais ou menos semelhante àquele da filtragem a frio. Maturação não é um processo com resultados exatos. Algumas barricas maturam whisky mais rapidamente do que outras. Assim, whiskies de diferentes barricas podem ter tonalidades diferentes, ainda que a mesma idade. Além disso, convencionou-se – por alguma loucura que este Cão custa a entender – que whiskies devem ter coloração cobre ou amarronzada. A adição do corante caramelo possui, então, dois propósitos. O primeiro é corrigir eventuais variações de tonalidade de lote para lote ou barrica para barrica. O segundo é de tornar o whisky com a cor que algum louco disse que whisky deveria ter.
Nem todos os whiskies levam corante caramelo. Alguns especialistas alegam que ele traz sabor para a bebida. Porém, ao contrário da crença geral, e na contramão da lógica, o corante caramelo não é adocicado, mas amargo. Além disso, muito pouco corante é adicionado por barrica. Seja como for, este é um ponto que até hoje divide opiniões, e é tema de acalorados – e normalmente ébrios – debates.
Após todos estes processos – ou não – o whisky está pronto para ser engarrafado. O engarrafamento pode ocorrer a mão (algo reservado a whiskies bem exclusivos) ou numa linha de engarrafamento. Seja como for, aqui – literalmente – coloca-se um lacre sobre o processo de fabricação da melhor bebida do mundo.
Esta não é uma prova. Nem um drops, para ser sincero. É um relato. É que meu primeiro encontro com o Ardbeg Corryvreckan não foi meu.
Pois é. Eu estava lá apenas de figurante. Um coadjuvante em uma curiosa cena que havia pouquíssimas vezes tido o prazer de presenciar. Na verdade, a protagonista foi a querida Cã, durante um jantar de nossa viagem à Escócia há alguns anos.
Estávamos há algumas quadras do hotel em um restaurante que tínhamos – por muita sorte – conseguido uma mesa. Um daqueles lugares concorridos, que você precisa usar a lanterna do celular para ler o cardápio, e que serve pequenas porções de coisas com ruibarbo e espuma. Mas estávamos animados e com fome. E eu ansioso para provar algum whisky que não conhecia. Afinal, estava na Escócia.
Sério, qual sabor disso?
Havia uma considerável carta de single malts. Decidi que escolheria algo ao mesmo tempo familiar e estranho. Uma destilaria conhecida por mim, mas uma expressão diferente. Fui pela graduação alcoolica. O Ardbeg Corryvreckan, com 57,1%. Quando a taça chegou, mesmo antes de experimentar, notei o olhar interessado da Cã. Que cheiro bom, o que é? É um Ardbeg forte. Deixa eu provar – pausa, gole – nossa, você precisa comprar uma garrafa disso!
Argumentei que já tinha comprado algumas outras coisas, e que, Ardbeg por Ardbeg, havia o dez anos no Brasil. Não, você vai comprar um deste, amanhã cedo a gente procura. Aí senti que a paixão era séria e resolvi – sem muita dificuldade, claro – obedecer. Levamos duas garrafas. E, já de volta à nossa terra natal, quando aquelas acabaram, encomendamos mais uma com um incauto amigo viajante.
O Corryvreckan é um daqueles whiskies hiperbólicos em tudo. Muito defumado e com altíssima graduação alcoólica. E até parece que a combinação destes dois elementos acaba os potencializando. Ele parece ainda mais defumado por conta do álcool, e ainda mais alcoólico por conta do aroma enfumaçado. Porém, apesar de ser um pouco desafiador, é um single malt absolutamente fantástico.
Seu lançamento ocorreu em 2009, quando veio substituir o aclamado Airigh Nam Beist (Ardbeg, por favor, nomes mais fáceis no futuro!), produzido de 2006 a 2008. A intenção inicial é que ele fosse apenas um lançamento limitado – ainda que cinco mil garrafas não me pareça exatamente uma tiragem pequena. No entanto, o whisky fez tanto sucesso que a destilaria resolveu transferi-lo para seu portfólio permanente, junto com o Ardbeg 10 anos e o Uigedail. E este sucesso permanece até hoje. A World Whisky Awards, um dos mais importantes campeonatos, elegeu o Corryvreckan como o melhor whisky de Islay em 2017.
O impronunciável Corryvreckan é batizado em homenagem a um dos maiores redemoinhos perenes do mundo, localizado no golfo de Corryvreckan, entre as ilhas de Jura e Scarba, na Escócia. A corrente de água produzida por ele pode atingir até dez nós (algo como 18km/h), com ondas de até nove metros. Segundo a própria Ardbeg “aromas em turbilhão e torrentes de sabor profundo, turfado, apimentado espreitam sob a superfície deste whisky belamente equilibrado. Como o próprio redemoinho, Corryvreckan não é para os fracos de coração“.
Corryvreckan
A maturação do Corryvreckan é curiosa. O lote inicial de cinco mil garrafas utilizava barricas de carvalho francês que antes contiveram vinho da borgonha (limpos com pressão e re-tostados). No entanto, por conta da impossibilidade de conseguir mais daquelas barricas, a Ardbeg – ou melhor, seu master distiller Bill Lumsden – decidiu utilizar algo incomum. Carvalho europeu virgem. Assim, o Corryvreckan é uma combinação de barricas de carvalho americano de ex-bourbon (de primeiro e segundo uso) e barricas virgens de carvalho europeu.
O Corryvreckan infelizmente não está à venda no Brasil. E provavelmente jamais estará, já que sua graduação alcoolica é superior àquela permitida por lei em nosso país para que algo possa ser considerado whisky. No entanto, se cruzar com este redemoinho em alguma viagem internacional, não perca a chance de prová-lo. Ou nas palavras – um pouco exageradas – da Ardbeg, mergulhe no redemoinho e experimente a profundidade misteriosa do Corryvreckan.
ARDBEG CORRYVRECKAN
Tipo: Single sem idade declarada (NAS)
Destilaria: Ardbeg
Região: Islay
ABV: 57,1%
Notas de prova:
Aroma: Defumado e adocicado (abacaxi?). Há um aroma subliminar de menta, muito suave.
Sabor: Adocicado e apimentado no começo, rapidamente evoluindo para um sabor bastante defumado e apimentado. Cítrico, com um final com um pouco de baunilha e menta. Bastante apimentado.
Com água: a água ressalta o adocicado e reduz a impressão de apimentado. Fumaça em equilíbrio.
Tendo acompanhado as notícias das últimas semanas acabei concluindo que, às vezes, não vale a pena sabermos como as coisas são feitas. Para um apaixonado por churrasco ou um entusiasta dos alimentos processados, as manchetes são, no mínimo – perdão pela ambiguidade cretina – difíceis de engolir.
Porém, incentivado por aquelas notícias indigestas (hoje estou genial), tomei coragem para escrever algo que há muito planejava. Um (nem tão) pequeno texto, explicando sobre alguns detalhes e curiosidades sobre a produção da melhor bebida do mundo.
Esta é a segunda parte de um especial sobre como o whisky é feito. Na primeira parte, expliquei um pouco sobre a cevada, sua fermentação, o uso da turfa e o processo de destilação. O texto inicial terminou com reticências, no exato momento em que a primeira gota de destilado cintilava no ar, antes de cair dentro de uma barrica.
Hoje falarei um pouco mais sobre destilação e maturação. Continuem com este Cão.
Destilação 2/2
Single malts costumam ser destilados duas vezes em alambiques de cobre. Normalmente, os alambiques de primeira destilação – chamados wash stills – são um pouco maiores do que os de segunda destilação – os spirit stills – e possuem formatos diferentes.
A destilação não é muito além de um processo controlado de evaporação e condensação. Os alambiques são aquecidos em sua base, o que faz com que os componentes mais voláteis do produto (seja wort ou low wine) subam por seu pescoço na forma de vapor. Este vapor então entra em contato com a superfície fria do topo do alambique e condensa. O produto condensado escorre por seu pescoço, passa pelo spirit safe (um equipamento que auxilia na separação das partes do destilado) e é armazenado em um reservatório separado.
Spirit Safe – televisão de bêbado
A primeira destilação produz um destilado com percentual alcoolico entre 20 e 25, que normalmente é misturado com a cabeça e a cauda da destilação anterior (calma, chegaremos lá). Este produto é então novamente destilado, mas nos spirit stills. Essa segunda destilação é fracionada. Os produtos mais voláteis evaporam antes, e são chamados de cabeça. Depois vêm o coração, e, por último, a cauda. Definir exatamente onde começa uma coisa e termina a outra depende da destilaria. Cada uma possui seu próprio corte. Na The Macallan, por exemplo, a cabeça corresponde aos 37,5% iniciais, o coração aos 25% centrais – sendo que apenas 16% vão para os single malts – e a cauda a 37,5%% finais. Cabeça e cauda são descartados ou recebem outros usos, por conterem substâncias tóxicas.
Mas nada é tão simples e direto. Assim, há um conjunto de fatores que influencia no resultado final do destilado. Por isso – e ainda bem – alguns whiskies são leves, enquanto outros são mais oleosos. Alguns são mais sulfúricos, enquanto outros mais neutros. É como a vida, a graça está mesmo na variedade.
A altura do pescoço do alambique e seu formato é uma das mais conhecidas variações. Quanto mais alto o pescoço, maior o espaço que terá que ser vencido pelos vapores. Assim, apenas os componentes mais leves costumam chegar ao topo de alambiques muito altos. É o caso da Glenmorangie, por exemplo. Alambiques mais baixos costumam produzir destilados mais oleosos, como são os The Macallan.
Desenho técnico dos alambiques da Glenmorangie (a parte de baixo é a serpentina de aquecimento)
Outro fator é a forma de aquecimento destas peças. Os alambiques tradicionalmente eram aquecidos por fogo direto. Atualmente, a maioria das destilarias prefere utilizar vapor. Diz-se que o fogo direto produz um destilado mais “carnudo”, enquanto que o vapor contribui para uma bebida mais neutra. O fogo direto aumenta o custo de manutenção dos alambiques e exige que seja instalado um equipamento especial do lado de dentro da base dos alambiques, chamado rummager (uma espécie de corrente com cabo, que gira e evita que o material queime e grude nas paredes de cobre).
Por fim, o refluxo também pode influenciar no caráter do destilado. Ao atingir o topo, parte do produto condensado escorre de volta para o alambique. A quantidade de destilado que retorna à sua base depende, principalmente, do tamanho e da posição do pescoço. Alambiques com pescoço voltado para baixo possuem menos refluxo do que aqueles que apontam para cima. Além disso, podem haver purificadores – um tubo que faz com que parte do destilado volte à base do equipamento. É o caso da Ardbeg, por exemplo. De uma forma simplista, podemos dizer que quanto maior o refluxo, mais leve será a bebida.
Purificador, porcamente desenhado por este Cão
Blended whiskies levam também whiskies de grão, além de single malts. Estes whiskies de grãos são produzidos em destiladores contínuos, também conhecidos como column stills. Em benefício do tempo e do bom-humor do leitor, deixarei este assunto para o futuro.
MATURAÇÃO 1/2
Atualmente, a maturação de scotch whiskies deve ocorrer, necessariamente, em barricas de carvalho – é o que define as Scotch Whisky Regulations, um conjunto de regras que rege a produção e comercialização da bebida.
Acontece que a mudança nas regras que definiu o uso obrigatório de carvalho é de 1990. O que significa – com certo estranhamento – que scotch whiskies poderiam ser maturados em outras madeiras antes disso. Assim, estranha e incrivelmente, antes daquela data, podia-se maturar whisky em qualquer madeira. De fato, no passado houveram alguns poucos whiskies maturados em barricas de castanha, além de uma lenda sobre um certo Glenmorangie Cherrywood, maturado em cerejeira. Porém, a vasta maioria sempre foi envelhecida em barris de carvalho.
Há dois tipos principais de carvalho. Carvalho Americano (Quercus Alba) e Carvalho Europeu (Quercus-qualquer-coisa, dependendo da subespécie, sendo a mais comum Quercus Robur). Barricas de carvalho americano costumam ser mais torradas por dentro do que barricas de carvalho europeu. Sem ser muito técnico, essa torra ou tosta libera substâncias que influenciam na maturação do whisky. Barricas mais tostadas podem trazer ou intensificar a impressão de defumação de um whisky. É o que ocorre com o Talisker Dark Storm, por exemplo.
O carvalho americano traz sabores mais adocicados e de baunilha para a bebida, enquanto que o carvalho europeu é responsável por trazer taninos, frutas cristalizadas e especiarias. Carvalhos americanos crescem mais rápido – atingem a idade de corte após mais ou menos setenta anos – enquanto carvalho europeu leva mais tempo para amadurecer, chegando a quase um século.
Mas não é só isso. Há outros fatores que influenciam na maturação, como a bebida que antes fora armazenada nas barricas usadas. Mas, para não tornar este texto um martírio, por hoje ficarei por aqui. Mas se quiser continuar lendo, veja a terceira parte aqui.
Você desvia de escadas na rua? Anda por aí como um chaveiro, com olho grego, pimenta e pé de coelho pendurados no pescoço ou na bolsa? Coloca o sal na mesa para a outra pessoa pegar, e, se porventura o saleiro cai, rapidamente joga um pouco para trás, por cima do ombro? E paraskevidekatriaphobia, você tem?
Se você não entendeu essa última, eu explico. Paraskevidekatriaphobia é o medo de sexta-feira treze. A palavra foi criada por um psicoterapeuta norte-americano, o Dr. Donald Dossey, e é formada por três elementos – “paraskevi”, “dekatria” e “phobia”, que em grego significam, respectivamente “sexta-feira”, “treze” e “medo”. E como você já deve ter adivinhado pela explicação etimológica, define o medo da sexta-feira treze. Segundo ele, de uma forma bem humorada, quem conseguisse pronunciar a palavra estaria magicamente curado daquela fobia.
O Cão Engarrafado, no entanto, tem outra cura. Uma que não exige qualquer habilidade léxica e que também envolve o amaldiçoado número. Tomar uma dose do Craigellachie 13 anos, à venda nos Duty Frees dos aeroportos brasileiros, no embarque e desembarque de voos internacionais.
O Craigellachie 13 anos é a espinha dorsal dos single malts da destilaria Craigellachie, localizada em Speyside, e pertencente à Bacardi. Junto dos demais single malts do grupo – Aberfeldy, Aultmore, The Deveron e Royal Brackla – temos a coleção autointitulada “The Last Great Malts” ou “os últimos excelentes maltes”. A modéstia realmente passou longe aqui.
Last Great Malts
A Craigellachie foi fundada por Peter Mackie – o mesmo criador da Lagavulin e do blended whisky White Horse – em 1890. Seu principal papel era o de fornecer maltes para blended whiskies. Foi apenas em 2014, que o Craigellachie passou a ser comercializado como single malt pela própria destilaria. Apesar disso, grande parte da produção ainda é destinada aos blends, em especial à linha Dewar’s.
A Craigellachie é uma das unicas destilarias da Escócia que utiliza worm tubs, um sistema de resfriamento e condensação dos vapores provenientes da destilação. Worm tubs são serpentinas submersas em água fria. O vapor proveniente do alambique passa por dentro desta serpentina e vagarosamente é resfriado e condensado. O resultado é um destilado mais pesado e sulfuroso. A impressão ainda torna-se mais clara por conta do malte utilizado pela Craigellachie.
O Craigellachie 13 anos é um single malt oleoso, amargo e com um curioso aroma de enxofre. Mas em um sentido bom. Há uma certa defumação, mas apenas em segundo plano. O final é longo e sulfuroso. Se você gosta de whiskies mais oleosos e agressivos, o Craigellachie 13 anos não irá decepcioná-lo. Paraskevidekatriaphobia ou não, o Craigellachie é um treze da sorte.
A fama pode ser enganosa. Não apenas com pessoas, mas com todo tipo de coisa. Vamos falar de fast-food. McDonald’s todo mundo conhece, que tem aquele clássico sanduíche que leva dois hambúrgueres, alface, queijo, molho especial e mais alguns acepipes. Além daquela batata frita fininha e crocante, que algumas pessoas sem costume tem o hábito de enfiar no sorvete.
Por outro lado, você nunca deve ter ouvido falar da Yum!. Acontece que ela é talvez a segunda onomatopéia mais poderosa do mundo corporativo, logo depois do Yahoo!. A marca é uma das mais importantes do mundo no ramo dos fast-foods. Só que você não a conhece porque seus acionistas tem vergonha do nome cretino que escolheram. Ou talvez porque a fama resida em suas subsidiárias. A Yum! é a responsável por controlar e franquiar conhecidíssimas marcas, como KFC, Taco bell e Pizza Hut.
Impressionante!
Ela nasceu da Tricon Global Restaurants, antes controlada pela Pepsico. Atualmente, a megacorporação, sediada no Kentucky, tem presença em mais de uma centena de países. Em 2015, ela possuía mais de trinta mil franquias, cinquenta mil restaurantes e faturou aproximadamente treze bilhões e cento e cinco milhões de dólares. Eu não fiz a conta, mas me parece muito frango, burrito e pizza de pepperoni.
A Yum!, no entanto, não é a única gigante desconhecida do Kentucky. Há outra no ramo dos bourbon whiskeys – a destilaria Heaven Hill. Ainda que bem menos conhecida que Maker’s Mark, Jim Beam e Jack Daniel’s, a Heaven Hill é responsável por alguns dos whiskeys mais vendidos no mercado mundial. É dela as linhas Parkers, Elijah Craig e Evan Williams, da qual o Evan Williams 1783, tema desta prova, é parte.
O próprio website da companhia nos dá um bom panorama de seu tamanho. Segundo eles, a Heaven Hill é a maior destilaria independente, detida e operada por uma família – assim como a Grant’s, a Heaven Hill é uma empresa familiar. É a sétima maior fornecedora de destilados nos Estados Unidos, e seus armazéns contém o segundo maior estoque de Kentucky Whiskey no mundo, com mais de um milhão de barris – o que equivale, mais ou menos, a 17% de todo bourbon distribuído no mundo.
Wow! – Col. Sanders
A Heaven Hill possui dois enormes estabelecimentos. O primeiro é a destilaria em Bernheim, Louisville, Kentucky, que produz o destilado para as diferentes linhas da companhia – inclusive, com diferentes mashbills. O outro é um conjunto de armazéns, dedicado à maturação dos whiskeys. De acordo com a Heaven Hill, a produção é toda supervisionada por Craig Beam, Denny Potter, e Charlie Downs, seus três master distillers.
O Evan Williams 1783 foi batizado em homenagem ao ano em que a familia Williams – fundadores da destilaria – estabeleceram suas raízes no Kentucky. Ele é uma versão mais exclusiva, produzida em lotes menores, do Evan Williams tradicional. Seu tempo de maturação é maior, ainda que não seja divulgado com precisão. No passado, porém, a idade estampada no rótulo era de dez anos.
A composição da Mashbill do Evan Williams 1783 é a mesma dos outros whiskeys da linha. Como todo bourbon whiskey, o grão predominante é o milho, com 75%. Adiciona-se a ele 13% de centeio e 12% de cevada. Essa composição, aliada à graduação alcoolica de 43% e maturação em barricas virgens de carvalho americano bastante queimadas torna o Evan Williams 1783 um whiskey leve e adocicado, com clara presença de caramelo.
Por aqui, uma garrafa do Evan Williams 1783 custa R$ 200,00 (duzentos reais). É o mesmo preço de outros bourbons premium à venda em nosso país, e sensivelmente mais barato do que o Maker’s Mark, cujo perfil de sabor é muito semelhante. Para aqueles que buscam um whiskey com perfil pouco picante e bem puxado para o caramelo, o Evan Williams 1783 é uma ótima opção. Um gigante anônimo, que não deve nada a seus célebres irmãos.
Evan Williams 1783
Tipo: Bourbon whiskey
Destilaria: Heaven Hill
Região: N/A
ABV: 43%
Notas de prova:
Aroma: caramelo, açúcar mascavo, mel.
Sabor: balinha de caramelo, baunilha, mel. Final médio, progressivamente mais adocicado e com baunilha. O alcool está bem integrado.
A Cãzinha está finalmente na fase dos porquês. Ela é capaz de indagar sobre a razão de uma centena de coisas por dia. E, para mim, na maioria das vezes é absolutamente delicioso explica-la por que o céu é azul, por que ela precisa comer, ou como um avião voa. Mesmo que às vezes ela não entenda bem todos os conceitos.
Há, porém, algumas perguntas meio perniciosas. Na verdade, duas categorias de questões que me desafiam. Da primeira, fazem parte todas aquelas que não seria apropriado responder agora. Papai, como eu fui feita? Não sei filhota, vai perguntar pra mamãe, vai. Ela sabe.
A segunda é a categoria das indagações que nem eu sei direito a resposta. E essas são as mais difíceis. Como se faz um carro? E um nugget? Filhota, papai não sabe direito, e vou te falar um negócio, papai não quer saber. Papai quer viver no conforto da ignorância, imaginando que eles surgem magicamente do ar. Mesmo porque um é complicado de explicar, e o outro bem asqueroso.
É claro que eu não contei isso para a Cãzinha. Mas whisky, porém, é outra história. Ao contrário de automóveis e embutidos, o processo de produção de whisky é relativamente simples e bem interessante – apesar de alguns detalhes meio nojentos. Com uma noção elementar de química e alguma introdução bem safada (sem duplo sentido aqui) em biologia, podemos ter uma boa ideia de como a melhor bebida do mundo é feita.
Veja bem, não é que ao ler este texto e os outros que o seguirão você estará imediatamente habilitado a produzir whisky. É como dizem, o difícil não é fazer. É fazer bem feito. No entanto, poderá entender com certo grau de generalidade os diferentes processos e seus resultados. Para simplificar as coisas, me concentrarei em single malts, com alguma eventual e corajosa incursão no fascinante mundo dos blended whiskies.
A CEVADA
Single malts são produzidos de cevada. Que, caso você não saiba, é uma gramínea ou, bem, capim. Existem duas variações principais de cevada. Cevadas de seis fileiras (six-row) e dupla fileira (two-row). As de dupla fileira são as mais utilizadas, por conter mais açúcares. As de seis fileiras costumam ser utilizadas como ração de gado.
cevada maltada
O problema, porém, é como utilizar este açúcar. Aí entra o processo de malteação (ou maltagem). Como você já deve ter deduzido pelo nome, a malteação produz o malte, matéria prima do whisky e de mais uma porção de coisas boas, como cerveja e Ovomaltine.
Durante a malteação o grão de cevada é molhado, para que comece a germinar. Isso permite que o amido seja acessado pelas enzimas da própria cevada. Esse amido mais tarde será transformado em açúcares por aquelas enzimas, e, finalmente, em álcool. Mas calma que chegaremos lá. O prazo de germinação varia, e depende de fatores como variação de temperatura e umidade, mas leva em média 4 dias.
Após algum tempo de germinação, o processo deve ser interrompido – porque, claro, se continuasse, teríamos uma plantação de cevada, e não whisky. A germinação é interrompida antes que o grão absorva os açúcares. Este processo é conhecido como kilning. Há duas formas de fazer isso. A primeira é pela temperatura. Aumentando a temperatura do galpão onde a cevada germina, o grão acaba desidratando, secando e – consequentemente – deixando de germinar. Porque, claro, um prerrequisito para crescer é estar vivo.
A segunda forma é utilizando um dos mais incríveis e nojentos compostos já criados pela natureza. A turfa – uma espécie de pré-carvão, formada por matéria vegetal decomposta, e que é inflamável. Aqui, a cevada em fase de germinação é aquecida em um forno abastecido por turfa. Isso seca o grão, mas também o impregna com o delicioso aroma de fumaça tão característico de alguns whiskies, como Laphroaig e Lagavulin.
kilning na Laphroaig
Há aqui um detalhe importante. Dependendo do tempo de secagem no forno e da quantidade de turfa utilizado, pode-se criar um malte mais ou menos turfado. Certa destilaria pode, assim, especificar o nível de defumação pretendido para seu malte (caso tenha terceirizado este processo) ou controlar o quão turfado será seu malte. Esse nível é medido em partes por milhão de fenóis – que são os compostos responsáveis pelo sabor medicinal e enfumaçado.
Talvez eu tenha me apressado. Deixe-me ilustrar. O excelente Ardbeg 10 anos, por exemplo, possui em torno de 55-65 ppm de fenóis. Já o Talisker 10, apenas 16-22 ppm. Há monstros defumados, como o Bruichladdich Octomore, com mais de duzentas partes por milhão. Quanto mais partes por milhão, mais defumado será o whisky. No entanto, a impressão de fumaça também pode advir da torra do barril – mas vamos deixar esse papo para mais tarde.
Blended whiskies, por outro lado, são uma mistura entre single malts e whiskies de grão. Estes últimos são produzidos com cereais maltados (inclusive a cevada maltada) ou não maltados. Quando não há malteação, um processo de cozimento e torra o substitui. No mais, o começo do processo é bem semelhante àquele dos single malts.
Aqui vale um parêntesis. Se você prestou atenção em suas aulas de história durante o colégio, talvez lembre de outro ilustre escocês. O economista e filósofo Adam Smith. Smith, além de usar uma peruca ridícula e ter conseguido a proeza de ser sequestrado por ciganos, pregava que a divisão do trabalho era importantíssima para fomentar a economia e atingir melhores resultados.
As destilarias atualmente seguem bem os ensinamentos de Smith. Assim, a grande maioria delas compra seu grão maltado pronto. Há locais especializados na produção de malte, como a finada Port Ellen, destilaria que foi convertida em Malting Floor num passado não muito longínquo, e que hoje abastece a maioria das destilarias de Islay.
interior da Port Ellen – drums
MOSTO E FERMENTAÇÃO
Após o processo de secagem, o grão maltado é moído até que se torne uma espécie de pó, que leva o nome de “grist”. Este grist é então colocado em grandes tanques – mash tuns – e misturados com água quente, em diversas etapas, com temperatura entre 63ºC e 83ºC. Essa água dissolve os açúcares e amidos no grão moído (aliás, as enzimas contidas na cevada transformam o amido em açúcares aqui).
Mash tuns são uma versão gigante do que seria o resultado do cruzamento entre uma batedeira e um bule de chá. Há braços mecânicos que constantemente mexem a mistura de água e grist (o grão moído). Após certo tempo, o líquido – ou melhor, o mosto – é drenado do tun, e vai para outro tanque, até que seja transferido para os washbacks.
Washbacks são também grandes tanques, onde o mosto é misturado com levedura, para que fermente. Estes tanques podem ser feitos de metal (como a Glenfiddich e The Macallan) ou de madeira (como na Glen Grant). Diz-se que os de madeira contribuem para a produção de um whisky mais leve, mas possuem também maior custo de manutenção.
A levedura mais utilizada é a Saccharomyces. Que não é nada além de um fungo, responsável por converter os açúcares – agora acessíveis graças ao processo de malteação – em nosso tão querido e inebriante álcool e em gás carbônico. Este é o processo de fermentação. O tempo de fermentação varia de destilaria para destilaria, mas o resultado sempre será uma espécie de cerveja – chamada wash – cuja graduação alcoólica está entre 8 e 10%.
Washbacks da Glenfiddich
DESTILAÇÃO 1/2
Este wash é então colocado em alambiques de cobre, para que seja destilado. Na Escócia, o tradicional para single malts é que seja feita a dupla destilação. Os alambiques de primeira destilação, que convertem o wash em um produto com graduação alcoólica entre 21% e 30% são chamados wash stills. Já os alambiques de segunda destilação, que produzem um destilado com graduação de aproximadamente 70%, são conhecidos como spirit stills. Após sair dos alambiques, o destilado então pode ou não ser diluído com água.
No próximo texto da série (aqui) este Cão falará um pouco mais sobre destilação, alambiques e sobre maturação. Enquanto isso, aprendam como se faz um nugget.
Não é segredo para ninguém que eu gosto muito de automóveis. Passo boa parte do meu tempo livre – quando não estou bebendo, lendo sobre whiskies ou escrevendo este blog – pesquisando sobre carros. Sou especialmente fanático por sedans esportivos. O que não significa, de forma alguma, que não me encante com algumas invenções bem esquisitas.
Uma das minhas preferidas é o Ariel Atom. O Atom é a destilação daquilo que todo apaixonado por esportivos procura. O carro não tem rádio, nem ar-condicionado, tampouco pára-brisas. Teto, nem pensar. E pra falar a verdade, ele não tem portas também. E quase nenhuma lataria. Ele possui apenas o essencial para os puristas (quem disse que portas são essenciais?) – um motor violento, suspensão horizontal e a capacidade de acelerar a ponto das entranhas do piloto grudarem em sua espinha dorsal.
E ele faz isso com a sua cara também.
Talvez o paralelo perfeito para o Atom no mundo do Whisky seja o Jack Daniel’s Tennessee Unaged Rye. Ele é o primeiro whiskey com predominância centeio produzido pela Jack Daniel’s desde a época da Prohibition. A Prohibition foi a época em que vigorava a lei seca nos Estados Unidos, de 1920 a 1933, em que grandes mafiosos, como Al Capone, fizeram dinheiro importando bebidas para o país. Foi essa a época que surgiu a cultura “speakeasy”.
Quer dizer, nem de whiskey ele pode ser chamado. O Jack Daniel’s Unaged Rye não é envelhecido em nenhum barril. Por isso é incolor e não tem o sabor característico de baunilha e caramelo dos outros whiskeys da marca. Foi uma edição limitada lançada em 2012. A ideia era que os fãs da marca pudessem experimentar o destilado puro, antes que fosse maturado. Alguns anos mais tarde, a Jack Daniel’s lançou a versão envelhecida, que até hoje é produzida.
Aliás, aí vai uma curiosidade. O destilado sem maturação nos Estados Unidos é chamado de White Dog (Cão Branco). Talvez os americanos também achem que o whiskey é o melhor amigo do homem em estado líquido, não?
Se você é apaixonado pela Jack Daniel’s ou se – assim como esse Cão – é um whisky geek, experimentar o Jack Daniel’s Tennessee Rye será interessantíssimo. Pode até ser que você não vá gostar. Mas também, quem negaria andar em Ariel Atom pelo menos uma vez na vida?
JACK DANIEL’S TENNESSEE UNAGED RYE
Tipo – Rye White Dog (destilado sem maturação)
ABV – 40%
Região: N/A
País: Estados Unidos
Notas de prova
Aroma: adocicado, com aroma de grãos e um pouco de acetona.
Sabor: doce e picante. Final curto, progressivamente seco e picante. Não há qualquer traço de baunilha ou mel.
Antes de estudar sobre whiskies, a Irlanda para mim era um país quase caricato. Meu conhecimento se limitava a duendes, trevos de quatro folhas, Bono, chapéus pontudos, cerveja – desagradavelmente – verde e o Colin Farrell. Ah, e claro, uma dezena de escritores geniais.
Acontece que a Irlanda não é apenas talentosa na parte literária. Na verdade, para um apaixonado por whiskies, ela é um dos mais importantes players no mercado. A ilha possui tradição na produção da bebida, inclusive, com técnicas e identidade próprias. A Irlanda é tão importante que até mesmo compete com a Escócia pelo título de quem inventou a chamada “água da vida”.
Deixando as especificidades muito técnicas de lado, a maior diferença entre whiskies irlandeses e escoceses é o processo de destilação. Tradicionalmente, o whiskey irlandês é triplamente destilado, enquanto o whisky escocês é apenas duas vezes. Isso torna os irlandeses notavelmente mais leves e menos oleosos. Há, no entanto, exceções à tradição nos dois países. Mas vamos parar com o whisky-geeking e voltar ao assunto.
Do Brasil, é difícil enxergarmos a diversidade de whiskey – sim, com o “e” mesmo – que a Irlanda produz. O único irlandês que desembarca em nossas terras é o Jameson, produzido por uma das maiores destilarias daquele país: a Midleton. Que, aliás, não tem nada a ver com a Kate, caso você esteja se perguntando.
Mas para além de nossas fronteiras, a terra de St. Patrick oferece uma miríade de excelentes whiskeys. Confira alguns deles abaixo:
MIDLETON VERY RARE
Olha, quando uma garrafa se autodenomina “muito rara”, é bem provável que ela esteja falando a verdade. O Midleton Very Rare é um irish whiskey produzido pela mesma destilaria do afamado Jameson. No entanto, a produção é limitadíssima.
Os barris de whiskey que compõe esta expressão são selecionados um a um pelo master distiller (o mestre alambiqueiro deles) da Midleton, Brian Nation (ou Barry Crockett, para edições mais antigas).
As garrafas são individualmente numeradas e altamente colecionáveis. O preço da exclusividade? Cento e cinquenta e cinco euros (€155.00).
TEELING SMALL BATCH
A Teeling é uma jovem e promissora destilaria independente irlandesa. E por jovem, quero dizer muito jovem. Ela foi fundada em 2015 por dois irmãos, Jack e Stephen Teeling.
A espinha dorsal de seu portfólio de irish whiskey é o Teeling Small Batch. Ele é produzido da tradicional forma irlandesa – uma mistura de whiskeys de malte triplamente destilados e whisky de grão – mas passa um período em barris que antes contiveram rum. Esse diferencial lhe confere notas de coco e caramelo.
Apesar da pouca idade, a Teeling é uma das mais importantes e inovadoras destilarias independentes irlandesas.
CONNEMARA PEATED
A destilaria Cooley, que produz o Connemara foi fundada em 1985 por um cavalheiro chamado John Teeling, pai dos rapazes já citados, Jack e Stephen Teeling. Atualmente ela produz uma gama impressionante de whiskeys, como Kilbeggan, Tyrconnell e claro, Connemara.
Há duas coisas que tornam o Connemara especial. A primeira é que ele é um single malt – enquanto que a maioria dos irish whiskeys é uma mistura entre single malts e whiskies de grão. A segunda é que ele é defumado. Isso mesmo, seu malte é secado em um forno abastecido por turfa, e isso torna seu sabor esfumaçado – algo bem comum em whiskies escoceses, mas muito raro nos irlandeses.
TULLAMORE DEW
A Tullamore Dew é a segunda em número de vendas quando o assunto é Irish Whiskey. Ela só perde mesmo para a Jameson. A versão mais comum é o Tullamore Dew Original, um blend entre whiskies de grão e whiskies triplamente destilados em alambiques de cobre e maturado em uma combinação de barris de carvalho americano e europeu.
Tullamore Dew é também a única marca de whiskeys que a personagem Lisbeth Salander, do livro “Os Homens que Não Amavam as Mulheres” bebe, ainda que essa informação não tenha qualquer utilidade.
JAMESON CASKMATES
Não poderia terminar uma lista de Irish Whiskeys sem citar a marca mais conhecida do mundo. A Jameson. Produzida pela Midleton, a Jameson possui mais de dez rótulos diferentes de whiskey. Um dos mais curiosos é o Caskmates.
O Jameson Caskmates é uma colaboração entre a Jameson e a cervejaria Franciscan Well. A destilaria empresta barris de Jameson à cervejaria, que os utiliza para armazenar e maturar cerveja stout. Depois, a Franciscan Well devolve os barris para a Midleton, que os reutiliza para envelhecer seu irish whiskey. O resultado é um produto leve, com notas de café e chocolate provenientes da cerveja. Quase um Jameson de sobremesa.
Assim, neste dezessete de março, deixe de lado a cerveja e a indumentária verde. Esqueça o Colin Farrell e o Bono. Sirva-se de uma dose de Irish whiskey e comemore o dia de St. Patricks com a melhor bebida de todas. Whisk(e)y. Tudo bem, pode pegar um livro de James Joye, Oscar Wilde, Yeats, Samuel Beckett ou Bernard Shaw para acompanhar.
BONUS 2019 – REDBREAST SINGLE POT STILL 12 ANOS CASK STRENGTH
O Redbreast é o irish whiskey para todos aqueles que acham os irish whiskeys muito delicados. Ele é produzido exclusivamente em alambiques de cobre, com cevada maltada e não maltada na Midleton, já mencionada aqui.
Mas o que o diferencia mesmo dos demais irish são duas características. A primeira, uma generosa graduação alcoólica de 57,2%. A segunda, sua maturação, que acontece predominantemente em barricas de carvalho que antes contiveram vinho jerez espanhol. Algo bem incomum para whiskeys irlandeses, que costumam depender fortemente das barricas de ex-bourbon.
Você sabe o que é uma toranja? Eu descobri apenas recentemente. Uma toranja é uma fruta. Mais especificamente, uma fruta híbrida, resultado do cruzamento entre uma laranja e um pômelo – outra coisa que eu nunca tinha ouvido falar. Se você é afeito a americanismos, talvez a conheça pelo nome internacional: grapefruit.
A toranja – como quase toda fruta – possui um punhado de vitaminas e substâncias benéficas à saúde. Ela ajuda no emagrecimento, e há até uma dieta baseada nela (ainda que exista dieta baseada em tudo hoje em dia). Ela também ajuda a prevenir doenças do coração, como infarto do miocárdio. Como se não bastasse, reduz também a chance de algumas moléstias bem nojentas e feias, como a gota. Por fim, também evita o envelhecimento precoce, por ter propriedades antioxidantes.
A toranja é um milagre em forma de vegetal. No entanto, até a semana passada, ignorava totalmente a existência do fruto. Para mim, não passava de uma laranja que cresceu demais. Porém, meu desdém por ela desapareceu tão logo esbarrei em algo que muito me chamou a atenção. Um elixir da juventude. Um coquetel que une as maravilhas da toranja com a melhor bebida do mundo. o whisky. Aquele era o Brown Derby.
Antes de explicar como prepará-lo – algo estupidamente fácil – deixe-me contar um pouco de sua história. Segundo o mestre Dale Degroff, o Brown Derby foi criado em Hollywood, na década de vinte, em um restaurante chamado Vendome Club. Curiosamente, seu nome seria uma homenagem a um restaurante rival, o homônimo Brown Derby, que, por sua vez, recebeu seu nome graças ao imóvel em que estava instalado, no formato de um chapéu derby.
O restaurante. Elegante, né?
A homenagem a um restaurante concorrente têm seu fundamento. Reza a lenda que a razão da improvável denominação se deve a Douglas Fairbanks, um senhor que frequentava os dois estabelecimentos. Durante uma de suas muitas visitas ao Brown Derby, Douglas teria experimentado um coquetel semelhante (ou melhor, naqueles primórdios, igual) – denominado De Rigueur. Então, trouxe a ideia ao Vendome, que reproduziu a criação.
O De Rigueur, por sua vez, apareceu pela primeira vez no livro Here’s How, de Judge Jr., publicado em 1927 e já citado nestas páginas caninas. A receita original – publicada naquele livro- pede por um scotch whisky. No entanto, Harry Craddock, ao dar sua versão do coquetel no clássico Savoy Cocktail Book,publicado em 1930, especificou apenas “whisky”.
O que pode ter sido apenas um deslize editorial abriu as portas para um mundo muito interessante. Porque, segundo a interpretação do livro de Craddock, seria possível usar whiskey americano. E é justamente isto que faremos hoje. Porque, bem, porque eu acho que fica melhor assim, e se você discordar, pode fazer com scotch whisky que não vou achar ruim. Note, porém, que você terá que adaptar as quantidades de calda de mel e de suco de toranja.
Perceba também que usar mel em coquetéis não é exatamente algo simples. Porque o mel, se adicionado puro, tende a encapsular. Em outras palavras, ele não mistura bem com os componentes do coquetel, criando pequenas bolhas, como óleo na água. E isso além de feio, pode deixar o coquetel completamente desequilibrado e sem padrão. Daí a solução de criar uma calda de mel, que leva também água.
Muito inteligente!
A receita abaixo é baseada na de Craddock. Ela é pouco adocicada, mas é talvez a mais equilibrada – ao menos para um paladar que gosta de cítricos. Se você achar que está muito azedo, tem duas alternativas. A primeira é aumentar a dose da calda de açúcar. A segunda é aumentar a proporção entre o mel e o açúcar ao produzir a calda. Calma que eu explico melhor, se você não tiver entendido. Por enquanto, tome nota desta poção da juventude eterna:
BROWN DERBY
INGREDIENTES
2 doses de bourbon ou tennessee whiskey.
1 dose de suco de toranja (aka grapefruit). Normalmente não sou muito fresco sobre usar sumo pronto, mas, neste caso, faça-me o favor de espremer na hora. Suco de toranja é dificil de encontrar, e se você achar, há razoáveis chances de já ter açúcar ou adoçante.
1/2 doses de calda de Mel (aqueça 1 parte de água e adicione 1 parte de mel. A proporção é de um para um, independente da quantidade. Aqui você pode aumentar a quantidade de mel até uns 3/4, se achar que o coquetel está azedo. Ou isso, ou aumentar a dose de calda mesmo).
Taça Coupé
gelo
Coqueteleira
PREPARO
Bata o bourbon, suco de toranja e a calda de mel em uma coqueteleira com gelo e desça na taça coupé. Simples assim.