Este é o terceiro texto de uma série sobre como whisky – com ênfase em single malts – é produzido. Já abordamos assuntos tão diferenciados quanto crianças curiosas, fabricação de automóveis e nuggets de frango. Falamos de notícias indigestas, cevada, fermentação, destilação, turfa e maturação. Caso você tenha perdido, clique aqui para a primeira parte, ou aqui para a segunda. Senão, fique aqui comigo.
Hoje falarei um pouco de botânica – afinal, barricas são feitas de carvalho, que são árvores – e um pouco de química (esteres, aminoácidos, proteínas e tudo aquilo que sua professora ou professor falavam enquanto você dormia, vandalizava a sua mesa como um entalhador-mirim-fora-da-lei ou desenhava).
Preparem-se para a derradeira parte de um déja-vu acadêmico. Mas, dessa vez, sobre um assunto bem mais legal. Whisky.
MATURAÇÃO 2/2
Scotch whiskies normalmente são maturados em barricas que já foram utilizadas por alguma outra bebida, ainda que haja exceções – o delicioso Laphroaig An Cuan Mór sendo uma delas. A maior parte dos scotch whiskies é envelhecida em barricas de carvalho americano que antes continham Bourbon whiskey, ainda que a frequência de whiskies maturados em barricas que envelheceram Jerez tenha aumentado bastante nos últimos anos.
O tempo de maturação para atingir certo resultado nem sempre é o mesmo. Há uma série de fatores que pode influenciar – acelerando ou atrasando – o processo de envelhecimento do whisky.
O primeiro deles é o tamanho da barrica. De acordo com as Scottish Whisky Regulations, scotch whiskies devem necessariamente passar três anos em barricas de carvalho com volume máximo de setecentos litros. Entretanto, barricas menores podem ser utilizadas (e maiores, após estes três anos). Novamente, utilizando nosso costumeiro simplismo, quanto menor o barril, mais rápida será a maturação de um whisky.
O segundo fator é a quantidade de vezes que a barrica foi usada. Já expliquei isto por aqui, mas vale a pena relembrar, com uma autocitação. “Barris podem ser utilizados várias vezes, mas cada vez que são reutilizados, perdem um pouco da capacidade de transferir seus sabores para o destilado. Assim, talvez um whisky de trinta anos maturado em uma barrica de terceiro uso – ou melhor, reuso – não seja tão saboroso quanto um doze anos que passou sua breve vida em carvalho de primeiro uso.”
“A influência de um barril de ex-bourbon de carvalho americano de segundo uso é – mais ou menos – setenta por cento inferior àquela de um de primeiro uso. No caso de terceiro uso, ou reuso, o percentual cai para dez. Aí vai um gráfico desenhado sem qualquer esmero no paint, para ilustrar:”
Por fim, e talvez pareça bem óbvio, a bebida que antes fora envelhecida na barrica influencia em seu sabor. Whiskies maturados em barricas de ex-bourbon retém parte dos sabores de mel e baunilha característicos dos whiskeys americanos. Já aqueles que passam por barricas de Jerez ou vinho do porto, por exemplo, adquirem certo sabor de vinho fortificado.
A maioria das destilarias matura seus whiskies em mais de uma espécie de barrica. É comum que sejam combinados whiskies maturados em ex-jerez e bourbon, ou que se transfira um whisky que passou algum tempo em carvalho americano para caravalho europeu. Essa prática busca combinar os sabores provenientes das diferentes barricas, resultando num produto mais complexo e equilibrado.
O processo conhecido como “finalização” ou “finish”, alardeado pela Glenmorangie, Balvenie, Glenfiddich, Laphroaig e tantas outras, não é muita coisa além disso – a transferência de um whisky de uma barrica para outra, para complementá-lo e refiná-lo, conferindo-lhe características especiais da segunda barrica. Até mesmo a Johnnie Walker lançou, recentemente, um blended whisky com finalização: o Blender’s Batch Rye Cask Finish.
ENGARRAFAMENTO
Neste ponto, o whisky está quase pronto para ser engarrafado. No entanto, antes disso há três processos, que podem ou não acontecer.
O primeiro deles é a filtragem a frio, ou chill-filtration. Neste processo, o whisky recém retirado do barril passa (ou melhor, é bombeado usando aumento de pressão) por filtros – normalmente de celulose – a temperatura baixa. Essa temperatura pode variar de acordo com a destilaria, mas normalmente está lá entre os cinco e dez graus, ainda que algumas utilizem temperaturas bem mais baixas. Compostos maiores ficam retidos no filtro, enquanto os menores o atravessam.
A função da filtragem a frio é evitar que seu whisky fique feio. Ou melhor, opaco. É isso mesmo. Whiskies não filtrados a frio tendem a desenvolver uma certa turbidez, ou opacidade, se resfriados, ou se sua graduação alcoólica é reduzida de alguma forma (adicionando-se água ou gelo, por exemplo). Isso acontece porque há compostos pesados – ésteres, proteínas, aminoácidos – que tornam-se insolúveis em temperatura baixa ou graduação alcoólica reduzida, que precipitam.
Há uma certa polêmica sobre filtragem a frio. Muitos alegam que os componentes retidos no filtro até poderiam dar uma aparência feia ao whisky, mas são um importante componente de sabor. Assim, filtrando-se a frio, a destilaria estaria retirando parte da principal razão pela qual as pessoas deveriam comprar whisky – beber algo gostoso.
O segundo processo é a redução da graduação alcoólica. O whisky geralmente sai do barril com graduação alcoólica entre 50% e 75%. Assim, adiciona-se água, para que sua graduação alcoolica seja reduzida para valores mais modestos. O valor mínimo para engarrafamento de um scotch whisky é 40%. Há, no entanto, alguns whiskies que são engarrafados com a graduação original de sua barrica. São os conhecidos Cask Strength. Geralmente, estes são whiskies mais caros, e com tiragem mais limitada.
O terceiro processo é a adição de corante caramelo, ou E150. O propósito aqui é mais ou menos semelhante àquele da filtragem a frio. Maturação não é um processo com resultados exatos. Algumas barricas maturam whisky mais rapidamente do que outras. Assim, whiskies de diferentes barricas podem ter tonalidades diferentes, ainda que a mesma idade. Além disso, convencionou-se – por alguma loucura que este Cão custa a entender – que whiskies devem ter coloração cobre ou amarronzada. A adição do corante caramelo possui, então, dois propósitos. O primeiro é corrigir eventuais variações de tonalidade de lote para lote ou barrica para barrica. O segundo é de tornar o whisky com a cor que algum louco disse que whisky deveria ter.
Nem todos os whiskies levam corante caramelo. Alguns especialistas alegam que ele traz sabor para a bebida. Porém, ao contrário da crença geral, e na contramão da lógica, o corante caramelo não é adocicado, mas amargo. Além disso, muito pouco corante é adicionado por barrica. Seja como for, este é um ponto que até hoje divide opiniões, e é tema de acalorados – e normalmente ébrios – debates.
Após todos estes processos – ou não – o whisky está pronto para ser engarrafado. O engarrafamento pode ocorrer a mão (algo reservado a whiskies bem exclusivos) ou numa linha de engarrafamento. Seja como for, aqui – literalmente – coloca-se um lacre sobre o processo de fabricação da melhor bebida do mundo.
Um líquido graduado com excelência.
Excelente finalização, mestre (se me permite o trocadilho cretino haha).
Costumo dizer que é praticamente impossível não encontrar um whisky que agradece. A variedade é praticamente infinita. Só acho, na minha humilde opinião, que o uso do corante e da filtragem deveria ser evitado.
Grande abraço!
Pode ser, Felipe. Na verdade esses são cuidados para tornar o whisky mais comercializável. As pessoas tem preconceito contra a bebida que fica opaca no copo, e acham que há algo de errado se determinado lote de um rótulo tiver uma cor um pouco diferente da outra. Pra gente não faz muito sentido mesmo, mas veja bem – imagina que certo suco tivesse o mesmo sabor de outro, mas uma cor diferente. Você não ia achar esquisito? rs