Drink do Cão – Blood and Sand

Blood and sand main Caso você já acompanhe este blog há algum tempo, terá certamente percebido que uma das minhas paixões – além de whisky – é cinema. Por isso, muitas vezes, costumo relacionar filmes e whiskies. E nem sempre essa é uma tarefa fácil. Os pontos de tangência podem não ser muito claros, e, para ser absolutamente franco, na maioria das vezes, uma coisa não tem nada a ver com a outra. Mas no caso do Blood and Sand, coquetel que ensinarei vocês a preparar, eu não precisei fazer nenhum esforço. É que o nome do drink é uma homenagem a um filme mudo homônimo, de 1922, dirigido por Fred Niblo. A película, por sua vez, baseia-se num livro – Sangre y Arena – de Vicente Blasco Ibáñez.

A história do filme é curiosa. Ela acompanha Juan, um menino que, contrariando o desejo de sua mãe, torna-se um toureiro. Durante sua ascensão à fama, Juan casa-se com Carmen, sua paixão de infância. Só que mais tarde, ao atingir o status de celebridade nacional, conhece Dona Sol, uma proeminente dama da alta sociedade, e se vê tendo que fazer a difícil escolha entre duas mulheres maravilhosas.

Coitadinho do Juan
Coitadinho do Juan

O amor por Carmen é sério e acolhedor, enquanto a paixão por Dona é intensa e com traços de sadomasoquismo. E Juan, neste cruzamento vintage entre Cinquenta Tons de Cinza e O Diário de Bridget Jones, acaba por forçar seu afastamento de Dona, que, por sua vez – e no melhor estilo latino de novelas – expõe a traição a Carmen, destruindo seu casamento. A desgraça de Juan se completa quando se fere mortalmente em uma tourada. Entretanto, segundos antes do derradeiro suspiro, o toureiro é perdoado por seu amor verdadeiro, e consegue falecer em paz.

O filme não apresenta nenhum coquetel. Aliás, nem mostra pessoas bebendo exageradamente. Então, conclui-se que o nome do drink foi inspirado pelo sucesso da película. O primeiro registro de uma receita impressa do Blood and Sand é de 1930, no Savoy Cocktail Book de Harry Craddock. No entanto, Greg Boehm, colecionador de livros antigos de coquetelaria e sócio da loja Cocktail Kingdom, diz que o drink é mencionado em um livro chamado Cocktail Continentale, de 1926, ainda que a receita não esteja lá.

O Blood and Sand tradicional – do Savoy Cocktail Book – leva partes iguais de suco de laranja, licor de cereja, vermute e whisky, servido numa taça coupé ou de Martini. Até aí, não há qualquer tensão. O drama – quase cinematográfico – entretanto, é a escolha do whisky. A escolha do whisky neste coquetel é a parte mais interessante. Porque mexendo um pouco com a proporção de seus ingredientes e simplesmente alterando o whisky utilizado, pode-se criar um Blood and Sand mais pesado ou mais leve. Ou um mais adocicado, ou defumado. O Blood and Sand é um dos coquetéis mais versáteis que já conheci.

Assim, meus caros, pela primeira vez na história deste blog – o que não significa muita coisa – passarei duas receitas do Blood and Sand, testadas à exaustão e quase à embriaguez. Tudo, claro, em nome da boa coquetelaria. Assim, você mesmo poderá eleger seu preferido. Uma delas será um Blood and Sand defumado e oleoso. O outro, no entanto, será adocicado e mais leve. Sintam-se livres para escolher aquela que mais lhes aprouver. E claro, lembrem-se de testar suas próprias receitas nesta tourada etílica em busca do mais apaixonante coquetel.

BLOOD AND SAND (DEFUMADO) 

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INGREDIENTES

  • 1 dose de Ardbeg Ten (ou Laphroaig Quarter Cask)
  • ¾ dose de vermute (este Cão utilizou o Carpano Antica Formula, por ser um vermute mais pesado e adocicado, de forma a contrabalançar o Ardbeg. Utilizando um vermute mais seco, como o Miró Etiqueta Negra, o coquetel ficará mais leve e mais seco).
  • ¾ dose de Cherry Heering (isso é licor de cereja. Apesar de nunca ter testado, descobri posteriormente que poderia ser substituído por um xarope de cereja).
  • ½ dose de suco de laranja, ou suco de toranja (ficará mais azedo)

BLOOD AND SAND (ADOCICADO)

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INGREDIENTES

  • ¾ dose de whisky adocicado (neste caso, usei Glenlivet Founder’s Reserve por ser leve e adocicado. Mas sinta-se à vontade para escolher livremente. Pode usar um blended whisky leve, se for de seu agrado. Mas lembre-se que um whisky muito suave ressaltará o sabor do licor de cereja e do vermute).
  • ¾ dose de vermute (para contrabalançar o sabor do Heering e do single malt, optei por um vermute mais seco. O Miró Etiqueta Negra, neste caso. Carpano Classico funcionará também).
  • ¾ dose de Cherry Heering
  • ¾ dose de suco de laranja, ou toranja.

PREPARO

Misture todos os ingredientes em uma coqueteleira, com bastante gelo. Chacoalhe com força, por no mínimo quatro segundos. Desça o coquetel (coando o gelo que restou na coqueteleira) sobre uma taça de coupé ou taça de Martini.

Drops – Glenfiddich Reserve Cask

O Cão Engarrafado - Glenfiddich Cask Collection 1 Você gosta do Glenfiddich 15 anos? Então talvez seja a hora de pegar um avião para ter a oportunidade de experimentar o Glenfiddich Reserve Cask, a expressão intermediária da Glenfiddich Cask Collection, exclusiva para lojas de freeshop de terminais de aeroportos internacionais. As duas outras expressões são o Select Cask (maturado em barricas de carvalho europeu e americano, de ex vinho jerez, vinho tinto e bourbon) e o Vintage Cask, levemente defumado.

O Glenfiddich Reserve Cask é inicialmente maturado em barricas de carvalho europeu que antes continham vinho jerez. O conteúdo dessas barricas é então reunido em um enorme tanque de carvalho, conhecido como Solera Vat – processo que ocorre de forma semelhante com o Glenfiddich 15 anos.

De acordo com a própria Glenfiddich “desenvolvido por nosso quinto Malt Master, David Stewart, o processo de solera foi inspirado pelos produtores de jerez espanhóis. Barris individuais são escolhidos a dedo por seu sabor, antes de serem reunidos na Solera Vat, especialmente construída, produzindo um single malt incrivelmente complexo e rico. A Solera Vat é sempre mantida cheia, ao menos, até a metade, durante todo o processo, o que assegura um sabor consistente e balanceado“.

A Glenfiddich Cask Collection foi desenvolvida pelo Malt Master Brian Kinsman para se destacar um pouco da tradicional linha da Glenfiddich, utilizando métodos focados no sabor do whisky. Todas as três expressões passam algum tempo em Solera Vats dedicadadas, e cada uma apresenta um  certo contraponto ao outro – adocicado, frutado e defumado. O Glenfiddich Reserve Cask possui aroma e sabor frutado e adocicado, com um pouco de baunilha e malte. O final é longo e progressivamente picante.

Se você vai viajar para o exterior, não deixe de conferir o Duty Free – mesmo de aeroportos brasileiros – por essa e as demais expressões da Cask Collection. Ou faça como este Cão, e aguarde pacientemente que algum bom – e generoso – amigo volte de viagem com um destes.

Do Reconhecimento – Jack Daniel’s Gentleman Jack

Gentleman Jack - O Cão Engarrafado

Se você não se tornou famoso ainda, não se preocupe. Talvez isso aconteça mesmo só depois de morrer. Foi assim com Van Gogh, Edgar Allan Poe, Kafka, El Greco e Galileo Galilei. A distância – no caso, o tempo – nos permite enxergar com mais clareza a grandeza destas pessoas que, infelizmente, não puderam colher os louros de seus prolíficos trabalhos.

E neste enorme rol de injustiçados pela sociedade e vingados pela história, está Bach. Johann Sebastian Bach, conhecido por alguns como um dos maiores compositores de todos os tempos e por outros como o cara que fez a música do comercial daquela operadora, nunca recebeu o devido reconhecimento em vida. Foi só no século dezenove – ou seja, uns cinquenta anos após sua morte – que sua música foi revivida e alcançou a fama.

Certa vez Bach teria se candidatado ao posto de diretor de canto e música em Leipzig, mas somente foi aceito após outros dois candidatos – claramente preferidos pelo conselho da cidade – terem rejeitado a indicação. No melhor estilo barroco de “é o que tem para hoje”, o conselho o considerou uma alternativa razoável, dadas as circunstâncias.

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Bach, na opinião do conselho de Leipzig

E nem o mundo do whisk(e)y está a salvo destas injustiças. É o caso de Nearis Green. Durante cento e cinquenta anos, pouquíssimas pessoas conheciam o nome de Nearis, e menos ainda sua importância na história da mais famosa marca de Tennessee Whiskeys do mundo, a Jack Daniel’s.

Foi só recentemente que a marca, às margens de seu 150º aniversário, divulgou que Jasper (“Jack”) Newton Daniel teria, na verdade, aprendido a produzir whiskey com Nearis, e não com o conhecido reverendo Dan Call. Isso fora alterado nos registros pelo simples fato de Nearis ter sido um escravo negro pertencente a Call.

Assumir que a história foi convenientemente adaptada e assim contada por cento e cinquenta anos não chega a ser, exatamente, justiça. Mas é, talvez, uma forma de reparação moral, ainda que bastante tardia. E eu, também no espírito “antes tarde do que nunca”, resolvi que faria, em homenagem a isso, a prova de uma expressão há muito havia prometido. O Jack Daniel’s Gentleman Jack.

Para explicar a diferença entre o Gentleman Jack e o Jack Daniel’s Old No. 7, será preciso, antes, explicar o que significa Tennessee Whiskey.

De acordo com uma norma – a House Bill 1084 de 13 de maio de 2013* – para que um whiskey possa receber rótulo de Tennessee whiskey, ele deve ser produzido no Tennessee e atender a todos os requisitos legais para ser um Bourbon. Além disso, deve passar por um processo chamado Lincoln County Process, que é, basicamente, a filtragem do destilado recém produzido utilizando um filtro de carvão de bordo. O tal carvão funciona como um filtro natural, que retém as moléculas mais pesadas do destilado, permitindo a passagem apenas dos componentes mais leves. O resultado é um whiskey mais brando, com menos corpo, mas mais palatável.

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Filtro de carvão

 

O processo de produção do Gentleman Jack é semelhante àquela do Old No. 7. A mashbill é a mesma –  80% milho, 8% centeio e 12% cevada maltada – e a fermentação ocorre da mesma forma. Aliás, se você reparar no rótulo do Old No. 7, notará que há a expressão “sour mash whiskey”. Isso significa que parte do mosto úmido de uma fermentação anterior é adicionado ao novo mosto, antes deste ser fermentado. Este mosto residual é conhecido como sour mash. Ainda que não haja menção sobre esse processo no rótulo do Gentleman Jack, ele é comum às duas expressões da marca.

A destilação ocorre em colunas de cobre de aproximadamente quatorze metros de altura, que contam com uma espécie de válvula de refluxo. Este processo mudou ao longo dos anos. Na época de Nearis, os whiskeys eram produzidos em alambiques de cobre tradicionais. Foi somente após a década de trinta, com o fim da Lei Seca Norte Americana, que a Jack Daniel’s começou a empregar destiladores contínuos. Nas palavras – polêmicas – de Jeff Arnett, um dos antigos master distillers da Jack “a tecnologia envolvendo a destilação melhorou, de forma que se pode criar um produto mais consistente, assim, certamente tiramos vantagem disto, e sentimos que o Sr. Jack também o faria”.

A maturação do Gentleman Jack também não é muito diferente da empregada no Old No. 7. Ele passa em torno de quatro anos em barricas tostadas de carvalho americano. Os armazéns da Jack Daniel’s, são enormes, e as barricas ficam empilhadas em racks de até oito andares.

Por enquanto, a única coisa que separaria o Gentleman Jack de seu irmão seria a garrafa bonita. Mas há uma diferença essencial. Lembra-se quando expliquei do Lincoln County Process, lá em cima? Bem, acontece que o Gentleman Jack, além da primeira filtragem, comum a todos os Tennessee Whiskeys da marca, volta para o carvão de bordo após sua maturação. Essa é, essencialmente, a maior particularidade desta expressão. Isso só acontece com ele, e é isso que o diferencia do Old No. 7 – e dos demais whiskeys da marca.

Por aqui, uma garrafa do Gentleman Jack custa em torno de R$ 170,00 (cento e setenta reais). É um preço semelhante ao do Bulleit Bourbon e do Woodford Reserve, já revistos neste blog. Escolher entre um ou outro é uma questão de gosto. Dentre eles, o Gentleman Jack é o mais suave, e, provavelmente, o que mais agradará àqueles que não tem intimidade com whiskeys. É também apenas trinta reais mais caro do que o Jack Daniel’s Old No. 7.

Se você gosta do tradicional Jack Daniel’s Old No. 7, ou se é simplesmente apaixonado pela marca, não deixe de experimentar o Gentleman Jack. Porque até pode ser que você só vá receber o devido reconhecimento na posteridade, mas beber whiskey só é possível quando se está vivo. E aproveite para fazer um brinde a uma pessoa que foi injustiçada por uma das faces mais feias da humanidade, mas acabou recebendo redenção.

JACK DANIEL’S GENTLEMAN JACK

Tipo – Tennessee Whiskey

ABV – 40%

Região: N/A

País: Estados Unidos

Notas de prova

Aroma: adocicado, com bastante baunilha e mel.

Sabor: doce, com frutas em calda, baunilha e açúcar mascavo

Com água: a água torna o final mais acocicado e curto, e ressalta a baunilha no whiskey.

*Alguns detalhes da lei foram alterados posteriormente, para flexibilizá-la, mas como este não é um texto sobre a legislação norte americana, vou me abster a aprofundar o tema.

Drops – Goliat Bourbon Aged Imperial Stout

O Cão Engarrafado - Goliat Bourbon Aged

Aí vai um pouco de pornografia etílica para sua terça-feira. Uma cerveja escura, com mais de dez por cento de graduação alcoólica, e maturada em barricas de carvalho americano que antes contiveram bourbon whiskey. Esta é a Goliat Bourbon Aged Imperial Stout, uma denominação bem grande para um produto de uma cervejaria com um nome bem pequeno. To Øl. Caso você esteja se perguntando como pronunciar este O cortado, a gente te conta: é Tu Ul. 

A To Øl é uma cervejaria dinamarquesa, fundada em 2010 por dois amigos, Tobias Emil Jensen, Tore Gynther, com um pequeno empurrãozinho de seu professor, Mikkel Borg Bjergsø (sim, se você gosta de cerveja, já deve ter reconhecido o nome do fundador da Mikkeller aqui). Durante estes seis anos, a marca ganhou reconhecimento e fama internacional, e hoje é considerada uma das melhores cervejarias do mundo. O engraçado sobre a To Øl é que ela é, na verdade, algo conhecido como cervejaria cigana. Isso significa que ela não possui fábrica própria, mas aluga o equipamento e as dependências de outras cervejarias durante pausas em suas produções.

Antes de falar mais sobre a Goliat, deixe-me traduzir os dizeres nela impressos: O Grande guerreito de Gath. O mítico campeão dos Filisteus. Incorporado no folclore ancestral e na religião. Proveniente das anciãs eras. Seu tamanho e estatura não são humanas. Ele é maior. A armadura de Golias é negra. Cordões cremosos pretos de estatura imponente. Ele pode resgatar elementos tanto do céu quanto da terra. Terroso e queimado, notas terrenas. Quente, pungente, notas adocicadas do firmamento. Seu coração bate vagarosamente, quase infinitamente. Este homem é conhecido por ser invencível. O próprio rótulo da cerveja já denota que se trata de algo extraordinário. Ou isso, ou que ela sofre de um grave problema de excesso de auto-estima.

Exagero ou não, a Goliat é uma cerveja excelente. Há predominância de notas de café e caramelo, mas há um dulçor característico das barricas de bourbon – cuja marca, aliás, é segredo. Algo como baunilha, e uma finalização progressivamente azeda, por conta de seu tempo de vida no barril. Se você aprecia cervejas fortes, café, ou mesmo um bom bourbon whiskey, a To Øl Goliat Bourbon Aged Imperial Stout é para você. Ela pode ser encontrada no Brasil em algumas lojas online e físicas, e seu preço médio é de R$ 60,00 (sessenta reais).

 

 

Da Padronização – Port Charlotte Scottish Barley

Port Charlotte Scottish Barley - O Cão Engarrafado

Esses dias me vi com a agenda limpa. Não fazia a mais rasa ideia do que fazer. Assim, naturalmente – após abrir a geladeira algumas vezes para pensar – resolvi que faria uma maratona cinematográfica. O Netflix prontamente me apresentou infinitas opções. Absolutamente tudo, menos qualquer coisa que tinha vontade de assistir.

Assim, resolvi que veria algo que não demandasse qualquer esforço. Escolhi um filme do Jason Statham. Linha de Frente. Depois outro, Parker. E o derradeiro foi – apropriadamente batizado – Redenção. E após assistir os três filmes, saí com a desagradável sensação que eram todos iguais. Um agente secreto ou ex-fuzileiro, que tinha que matar todo mundo para resgatar alguém. Uma menina desconhecida, ou sua filha, ou sua própria dignidade.

E aí fiquei pensando, esses filmes são assim iguais de propósito. Recheados de ação, mas sem muita surpresa. Isso os torna previsíveis, semelhantes e, consequentemente, meio monótonos. Há uma fórmula que eles seguem. E até é divertido ver o Jason Statham destruindo tudo, mas, depois de um tempo, você percebe que se tiver assistido um filme, terá seguramente já visto todos eles.

E ele quase sempre começa cabeludo e raspa a cabeça.
E ele quase sempre começa cabeludo e raspa a cabeça.

Grande parte da indústria do whisky não escapa muito à regra. Com o crescente consumo mundial, as destilarias e empresas tiveram que se adaptar. E práticas antigas – outrora valorizadas como tradicionais – foram deixadas de lado em nome de uma fórmula para o sucesso. Uma fórmula para reduzir custos e aumentar a eficiência. Mas nem tudo é assim. Há exceções. E uma delas é a destilaria Bruichladdich, localizada em Islay, que produz o Port Charlotte Scottish Barley e o The Laddie Classic – que, para nossa sorte, acabam de desembarcar no Brasil pelas mãos da Interfood, e já está à venda em lojas virtuais como a Single Malt Brasil.

Quando soube dos dois lançamentos, me vi na difícil tarefa de escolher um deles para fazer uma prova. Quer dizer, nem tão difícil assim. Como sou apaixonado por tudo que é defumado, o Port Charlotte foi uma escolha óbvia.

Como o nome indica, o Port Charlotte Scottish Barley utiliza cem por cento de cevada cultivada na Escócia. Algo relativamente incomum nos dias de hoje, em que as regras ditadas pelo menor custo e maior eficiência levam muitas delas a comprar seu malte pronto, muitas vezes, importando-o. Uma decisão corajosa da Bruichladdich, que sempre prezou por suas raízes escocesas – e herdou também um pouquinho da teimosia daquela terra.

Essa preocupação com a proveniência de sua cevada é clara. A destilaria, ao explicar um de seus lançamentos – uma linha de whiskies com cevada proveneinte somente da ilha de Islay – declarou: ” ‘acreditamos que o terroir importa’ é muito mais do que um slogan. Terroir denota uma certa noção de lugar. É um conceito que engloba a influencia e interação do solo, subsolo, exposição, orientação, clima e microclima no crescimento de uma planta. Ele ilumina tudo que fazemos. (…) Na Bruichladdich usamos cem por cento de cevada Escocesa. Praticamente um quarto de nossa cevada provém de Islay, onde os fazendeiros a tem cultivado desde 2004 para nós. Parte destes grãos foram destilados a partir de fornecedores diversos da ilha, ou grupos de fazendas, alguns de uma única fazenda ou até mesmo campos individuais“.

Se um dia eu tiver uma fazenda, queria muito uma plaquinha dessas
Cultivando para a Bruichladdich” Se um dia eu tiver uma fazenda, queria muito uma plaquinha dessas

O Port Charlotte não tem idade definida – uma licença tomada pela Bruichladdich em sinal dos novos tempos. Ainda que não haja qualquer indicação, este canídeo suspeita que sua maturação ocorre exclusivamente em barricas de carvalho americano que antes contiveram Bourbon whiskey. Como seria de se esperar da destilaria, toda maturação acontece in loco, em armazéns construídos nas proximidades do vilarejo que lhe empresta o nome. Este é outro cuidado especial tomado pela Bruichladdich. Atualmente, muitas destilarias transportam suas barricas para a parte continental da Escócia, para que lá maturem.

Como já apontado anteriormente, a Bruichladdich é uma das mais destemidas destilarias da Escócia. Talvez por isso se auto intitulem “Progressive Hebridean Distillers” –algo como “Destiladores Progressistas das Hébridas”. Isso fica claro ao observarmos seu enorme portfólio. São três linhas de whisky. Uma – da qual o Port Charlotte faz parte é razoavelmente defumada; outra – do The Classic Laddie – sem nenhuma defumação e uma terceira absurdamente defumada – Octomore. Esta última é tão defumada que hoje conta com o whisky mais defumado da Escócia, com 258 partes por milhão de fenóis (acredite, isso beira a insanidade).

Como se isso não bastasse, a Bruichladdich produz também um Gim, chamado Botanist, que utiliza nove botânicos clássicos e mais de vinte ervas e flores locais. Ele é destilado em um alambique especial e adaptado, chamado Lomond, que foi recuperado pela Bruichladdich da antiga destilaria Inverleven. Por não ser uma das peças de maquinário mais belas do mundo, o alambique recebeu o nome de Ugly Betty (Betty, a Feia).

 

Bete.
Bete.

O Port Charlotte Scottish Barley é um sonho para qualquer amante de bons maltes. Não há adição de corante caramelo e seu destilado não passa por qualquer processo de filtragem a frio. Por conta disso, ao adicionar gelo ou um pouco de água, o whisky se torna levemente turvo. É um processo normal, pelo qual as moléculas mais pesadas se agregam com a redução do teor alcoólico do whisky. E falando em graduação alcoólica, ela é relativamente incomum no Scottish Barley. Cinquenta por cento. Apesar disso, o álcool é pouquíssimo perceptível.

Jim McEwan, Master Distiller – atualmente aposentado – da Bruichladdich explica a incomum graduação: “A decisão de aumentar a força de nossos single malts é resultado de um estudo de seis anos analisando os sabores e aromas da cevada cultivada em Islay, a 46% e a 50%. Para este estudo, escolhi a cevada de Islay exatamente porque sei de quais fazendas elas são provenientes, de ano em ano; estes terroir locais são identificáveis – conhecemos os fazendeiros, as condições, estado da terra, e assim podemos monitorar as características do destilado com a maior consistência possível. (…) Engarrafando a cinquenta por cento, retemos mais dos compostos mais essenciais na garrafa. Nós queremos que proveniência de nossa cevada, a matéria prima mais essencial, brilhe

Visualmente, o single malt apresenta uma coloração quase de palha, devido à ausência de corante caramelo. Seu aroma é predominantemente defumado e frutado, e o sabor adocicado e medicinal, com maresia e fumaça. Apesar da graduação alcoólica, o álcool é quase imperceptível.

Se você, assim como este Cão, é fã de single malts defumados, e está procurando algo incomum para fugir da monotonia, o Port Charlotte Scottish Barley será sua alma gêmea. Você até poderá tomá-lo assistindo algum filme do Jason Statham. Este Cão garante que será uma experiência diferente. Pelo menos a parte do whisky.

BRUICHLADDICH PORT CHARLOTTE SCOTTISH BARLEY

Tipo – Single Malt sem idade definida (NAS)

ABV – 50%

Região: Islay

País: Escócia

Notas de prova

Aroma: principalmente maresia, com bastante impressão de sal. Levemente frutado, mas predominantemente esfumaçado.

Sabor: Salgado, algas marinhas, fumaça. Medicinal. Cítrico e levemente doce apenas, com final longo, com especiarias, bastante picante e defumado.

Com água: A água reduz a impressão de pimenta e das especiarias, e torna o whisky mais adocicado.

Sidras Épo Morada (e Fumaça Sídrica)

 

Sidras Epo - O Cão Engarrafado

Às vezes temos que nos aventurar em novos territórios. Sair da zona de conforto e conhecer algo novo. Isso nos torna mais experientes e destemidos. E, principalmente, mais versáteis. E foi com este espírito que, a convite da BeerManiacs – os mesmos iluminados responsáveis pela importação das cervejas Harviestoun e Brooklyn Brewery – compareci ao lançamento da primeira linha de sidras (é, pô, com S mesmo) artesanais brasileiras, produzidas pela Morada Cia. Etílica, de Curitiba. O evento aconteceu na quarta-feira, dia 10, no Instituto da Cerveja Brasil – ICB.

Caso você não saiba, ou caso você ainda ache que sidra é aquela bebida meio rejeitada, que fica lá na prateleira debaixo dos vinhos no supermercado, o Cão explica. Sidras são bebidas fermentadas de maçã. Mais especificamente, no caso das sidras da Morada, maçãs Fuji e Gala, cultivadas na serra gaúcha e de Santa Catarina. Fora do Brasil, são bem famosas e muito frequentes nos pubs ingleses, ao lado das lagers e ales britânicas.

Batizadas simpaticamente de Épo – uma brincadeira com o nome da fruta que lhe dá origem em inglês, apple – são três rótulos. Um deles leva abacaxi e hibisco em sua receita; a outra lúpulo, à moda das cervejas; e, a última, é maturada utilizando ripas de amburana e carvalho europeu. Todas são ótimas, mas a preferência deste canídeo foi, seguramente, a que passa por madeira. Todas as três poderão ser facilmente encontradas em bares especializados em cervejas.

Cidras Epo 2- O Cão Engarrafado
As sidras

De acordo com minha intuição etílica, imaginava que fossem bebidas adocicadas, talvez por influência dos rótulos importados à venda em nosso país. No entanto, as sidras da Morada são secas e cítricas, mesmo no caso da que leva hibisco e abacaxi – o sabor destes é mais claro no retrogosto.

A Morada Cia. Etílica é uma empresa versátil. Em suas próprias palavras “Nosso tesão é investigar ingredientes e técnicas para criar bebidas conceitualmente relevantes, artisticamente provocadores e gastronomicamente interessantes, sempre explorando as lacunas, os entre-estilos e os cantos esquecidos do universo etílico já que a monotonia da zona de conforto é o nosso inferno ideológico

A linha de produtos mais conhecida da Morada são as cervejas, como a Double Vienna, Morada Kolsh, Gasoline Soul e a corajosa Hop Arabica, que, ao invés de lúpulo, usa café para emprestar-lhe amargor. Além deles, ela já se aventurou no ramo dos whiskies – ainda que nunca tenha comercializado estas bebidas. Há algum tempo tive a oportunidade de experimentar duas dessas experiências, que possuíam um certo toque brasileiro. Um deles era maturado em Bálsamo e Cabreúva, e o outro, em Amburana.

Whiskies da Morada
Whiskies da Morada

Aliás, falando em whisky, durante a degustação, não conseguia deixar de pensar como algumas dessas sidras funcionariam bem em um coquetel com o destilado. Assim, ao chegar em casa, resolvi que experimentaria – corajosamente também – inventar algo que unisse os dois.

Minha primeira ideia foi uma espécie de gim tônica. Só que sem tônica. E sem gim. Mas talvez por conta de minha total inépcia, ou talvez porque fosse uma ideia esdrúxula desde o começo mesmo, a receita não deu certo. Mas minha segunda tentativa – agora com um pouco de ajuda da internet e de nosso consultor, Fernando Lisboa – alçou voo. Uma espécie de whisky sour. Mas sem clara de ovo. E com sidra. E whisky defumado. Pensando bem, seria necessário muita coragem para chamar isso de sour. Assim, preferi chamar de:

FUMAÇA SÍDRICA

(Um nome sem muita criatividade mas que soa engraçado)

INGREDIENTES

  • 1  dose de whisky defumado – Este Cão usou Ardbeg Ten. Mas um Black Grouse ou Double Black funcionarão perfeitamente também.
  • 3 doses de Cida Épo maturada em carvalho e amburana;
  • 1 dose de suco de limão siciliano;
  • copo alto;
  • gelo

PREPARO

adicione, em um copo alto com gelo, o suco de limão siciliano e o whisky defumado. Mexa um pouco, com cuidado. Adicione as três doses de sidra. Para o gosto deste Cão, não falta dulçor. Mas o importante é você gostar do coquetel. Assim, não irei condenar ninguém se adicionar 1/2 dose de calda de açúcar (leia aqui como fazer essa calda)

 

Harmonização – Chivas Regal e Chianti Chocommelier

Chianti e Chivas 2

Se você está lendo este blog, existe uma chance razoável de ser apaixonado por whisky. Mas e chocolate? Você gosta? E chocolate com whisky, já experimentou?

Esta foi a proposta da degustação promovida pela Chianti Chocommelier e Chivas Regal, organizada pela plataforma de experiências (muitas delas, gastronômicas) Sabiar: harmonizar a melhor bebida do mundo com diferentes chocolates. Algo que parece simples, mas, na verdade é uma tarefa bastante sofisticada.

A degustação foi guiada por Mijung Kim, embaixadora da Chivas Regal, e por Mariana Triveloni, sócia responsável pela criação dos chocolates da Chianti. Mijung explicou alguns detalhes sobre as regiões produtoras de whisky e apresentou as três mais conhecidas expressões da marca de blended whiskies – o Chivas Regal doze anos, Chivas Extra e dezoito anos. Já Mariana ficou responsável por mostrar como chocolates produzidos com qualidade e cuidado podiam ser excelentes companheiros daqueles destilados.

Foram, ao todo, seis chocolates – caramelo e pecã, laranja e mel, café, gengibre, uma trufa de cem por cento cacau e um tablete amargo – concebidos cuidadosamente para ressaltar, por semelhança, os sabores e aromas dos whiskies. As harmonizações preferidas deste Cão foram Chivas Extra com gengibre e o queridíssimo Chivas dezoito anos com a excepcional trufa. A primeira ressaltava as notas de gengibre no Extra; já a segunda, apresentava sabores secundários de amêndoas no gold signature.

 

Chianti e Chivas 3
Vida difícil

A Chianti Chocommelier, inclusive, é uma marca de chocolates curiosa. Ela é especializada na harmonização de chocolates cem por cento belgas com elementos inusitados, em busca do que definem como o terceiro sabor – algo que é alcançado somente pela combinação de produtos de universos distintos. Para isso, promovem provas com whiskies, vinhos, conhaques, cervejas, cafés e até azeites.

Ao final da degustação, todos puderam provar novamente seus chocolates e whiskies preferidos e conversar sobre suas impressões. Este Cão não perdeu a oportunidade de levar para casa seus chocolates preferidos e experimentar, junto com a querida Cã, tudo novamente. Afinal, uma experiência como esta merecia uma repetição.

 

 

Das Lacunas – Ballantine’s 17 anos

 

ballantines 17 - O Cão Engarrafado

Do que você gosta? Imagino que whisky seja uma resposta óbvia, já que está lendo este blog. Mas quais seus outros interesses? Muitas vezes por aqui já disse que cultura é sempre bom, cultura nunca é demais. Mas como todo ser humano, às vezes não sigo o que penso. Há assuntos que – talvez por preconceito, talvez por preguiça – definitivamente não me interessam.

Sou incapaz de falar sobre novelas. A última que assisti foi Rei do Gado. Não tenho a menor condição de conversar sobre moda feminina, e os dois ou três nomes famosos que memorizei de música sertaneja não prestam nem para seis minutos de conversa sobre o assunto. Ah, e futebol. Eu e um bidê temos conhecimento equiparável sobre futebol.

Aliás, também não sei muito sobre bidês.
Aliás, também não sei muito sobre bidês.

Já cinema, carros e whiskies (claro) é outra história. Aliás, whiskies não. Qualquer coisa que seja minimamente potável e que contenha alguma proporção de álcool. São assuntos que naturalmente me fascinam. Mas mesmo aí, mesmo nestes inebriantes (às vezes literalmente) assuntos, há lacunas. Lacunas que prometo a mim mesmo preencher o quanto antes, mas que, novamente por preguiça ou preconceito, não o faço.

E ter um blog sobre whisky não ajuda. Não ajuda porque com ele, é fácil ter um pretexto para focar na exceção. Falar de Glen Scotias, Springbanks, Port Ellens e Ledaigs. E esquecer daquilo que está muito mais próximo de nós. Aquilo que apesar de não ser necessariamente corriqueiro, é muito mais palpável. Então, resolvi que farei alguns textos sobre essas lacunas. Começando por uma das maiores. Um Ballantine’s.

Antes de tudo, devo desculpas aos leitores destas páginas. Porque em quase dois anos de Cão Engarrafado, esta é a primeira vez que um blend da marca é protagonista em uma prova. Para mitigar esta falha, então, decidi escolher a minha expressão favorita da linha. O Ballantine’s 17 anos.

Caso você esteja ficando com preguiça, aí vai uma informação interessante. Em 2011 houve certo furor no mundo do whisky. E no centro dele estava, justamente, o Ballantine’s 17 anos. É que ele foi escolhido naquele ano por Jim Murray como o melhor whisky do mundo, em sua 2011 Whisky Bible. Veja bem, melhor whisky do mundo. Não blend. O que significa que, para Jim Murray, naquele ano, o Ballantine’s 17 anos havia superado todos os single malts por ele provados.

A serenidade nos olhos de quem escolheu um blend como melhor whisky do mundo.
A serenidade nos olhos de quem escolheu um blend como melhor whisky do mundo.

E ainda que este Cão suspeite que Jim tenha exagerado um pouco, não há como negar que o Ballantine’s 17 anos é um blend impressionante. Até mesmo esta versão avaliada, com 40% de graduação alcoólica – diferente da provada por Jim, que contava com 43%.

Produzido pela Pernod Ricard – os mesmos detentores da Chivas Regal – seus single malts base são Scapa, Glenburgie, Miltonduff e Glentauchers. Ou não. Ou não porque essas coisas mudam com o tempo, e sinceramente, é impossível identificar sua composição com base somente no paladar.

O Ballantine’s 17 anos é bastante complexo para um blend de sua idade. Há um certo dulçor inicial, que se torna progressivamente frutado, para depois terminar com um pouco de fumaça e vinho fortificado. Mas o que mais impressiona não é sua complexidade, mas sim a completa ausência de aspereza do whisky de grão utilizado.

Isso, na verdade, é um fenômeno interessante para blended whiskies com idade semelhante à dele. Ainda que – segundo a Scottish Whisky Association – single malts demorem mais tempo para atingir a maturidade do que grain whiskies, estes últimos se beneficiam muito de um tempo médio de maturação, que lhes tira a aspereza e empresta suavidade. Isso fica ainda mais claro em seu primo, o Chivas 18 anos.

Durante toda sua existência, a Ballantine’s teve apenas cinco diferentes master blenders, responsáveis por elaborar seus whiskies, bem como zelar por sua qualidade e consistência. O atual é Sandy Hysop, um homem com mais de trinta anos de experiência no ramo. Em uma entrevista recente para a whisky wire, Sandy descreveu o Ballantine’s 17 anos ao descrever uma visita que fez à Craigduff:

Tomei uma dose de um novo lote de Ballantine’s 17. Excelente e sempre consistente, com sua conhecida delicadeza, equilíbrio, dulçor, sabor de frutas e um fundo de fumaça. Sou certamente um homem privilegiado por poder justificar estas experiências como trabalho.”

Trabalho dificil, hein, Sandy!
Trabalho dificil, hein, Sandy!

Uma garrafa do Ballantine’s 17 anos custa, em média 300 reais. Considerando sua idade, e, comparando-o com os demais blended whiskies à venda no Brasil, ele se apresenta como um ótimo custo-benefício. Especialmente se seu gosto pender para os whiskies mais adocicados e leves, como o Chivas 18 anos.

Assim, meus caros leitores, deixem de lado a preguiça e quiçá o preconceito. Porque eles são grandes inimigos do conhecimento. Sirva-se de uma dose de Ballantine’s 17 anos e contemplem: às vezes, as grandes descobertas estão apenas a alguns metros de nossos dedos.

BALLANTINE’S 17 ANOS

Tipo: Blended Whisky com idade definida (17 anos)

Marca: Ballantine’s

Região: N/A

ABV: 40%

Notas de prova:

Aroma: adocicado, mel, especiarias e um pouco de fumaça.

Sabor: Adocicado no início e progressivamente  frutado, final médio, com um pouco de fumaça e vinho fortificado.

Com Água: Água torna o whisky mais adocicado e ressalta a fumaça.

 Preço: em torno de R$ 300,00 (trezentos reais)

 

Verdade Relativa – Bulleit Bourbon Frontier Whiskey

Bulleit Bourbon - O Cão Engarrafado

O cinema deve muito ao faroeste. Alguns dos melhores filmes da história usaram a temática daquele tempo sem lei. Um tempo em que destemidos e elegantes vaqueiros enfrentavam índios, perseguiam bandidos e encantavam frágeis donzelas indefesas. Um tempo em que a morte pelo gatilho era corriqueira, e que apenas homens resilientes e com valores íntegros sobreviviam. Ou não.

Ou não porque, assim como o cinema deve ao faroeste, o faroeste também deve ao cinema. Para começar, ninguém realmente se vestia ou se portava como Clint Eastwood ou John Wayne. Os valentes vaqueiros eram, na verdade, em sua grande maioria, absolutamente iletrados, mais ou menos bêbados, e raramente prezavam por quaisquer valores ou moral. Além disso, a criminalidade era relativamente baixa, e os conflitos com índios, praticamente inexistentes.

A imagem que temos hoje daquele tempo foi cunhada no cinema. O maior expoente, responsável por criar o gênero western como o conhecemos hoje, foi John Ford. De acordo com um grande amigo, crítico de cinema e entusiasta do álcool, Ford inventou o faroeste como gênero a ser levado a sério com No Tempo das Diligências (apresentando John Wayne ao mundo, em um entrada inesquecível e triunfal) e, depois, ainda inventou o faroeste moderno, ou revisionista, ou crepuscular, com O Homem que Matou Facínora, onde questionou toda a mitologia fundada por ele mesmo. E aí está a genialidade do gênero western. O western, na verdade, nunca aconteceu.

Nunca aconteceu MESMO
Nunca aconteceu MESMO

Assim como o cinema, a indústria de whiskey americano deve muito ao faroeste. A começar pelo fato de que as raízes da bebida estão lá. Ou, mais uma vez, talvez não.

Talvez não porque lá por mil e oitocentos, apenas uma pequena fração do que era destilado poderia hoje ser considerado Bourbon conforme nossos padrões atuais. Ou American Whiskey. É que os cowboys, como já apontado, não eram exatamente grandes conhecedores e bebentes sofisticados. Então qualquer coisa que envolvesse muito álcool era bem recebida nos saloons. Incluindo misturas com melaço, glicerina e ácido sulfúrico. Sim, ácido sulfúrico, aquele mesmo usado para derreter metais, pedras e, eventualmente, pessoas.

Isso não impediu que grande parte das marcas que hoje conhecemos e apreciamos ainda faça referência ao romântico tempo das diligências. Basta pensar nas famosíssimas Jack Daniel’s, Buffallo Trace e também nos whiskeys da High West. É o caso também do Bulleit Burbon: Frontier Whiskey, recentemente desembarcado no Brasil.

Apesar da alcunha – Frontier Whiskey – em referência aos whiskeys produzidos e transportados durante a colonização do oeste selvagem, o Bulleit não tem nada de fronteiriço. Ele é produzido no Kentucky e seu proprietário é a gigante Diageo (a mesma responsável pela Johnnie Walker). Além disso, ainda que já tenha havido no passado um whiskey homônimo, a Bulleit atual possui menos de três décadas. Seu compromisso com o velho oeste é o mesmo de um filme de John Ford.

A história da marca é que Thomas (Tom) E. Bulleit Jr., o bis-bisneto do imigrante francês Augustus Bulleit, resolveu que reviveria a antiga receita de whiskey de sua família. Uma receita que, na verdade, teria morrido com Augustus, há cento e cinquenta anos, na época dos vaqueiros. Para isso, Thomas fundou, em 1987, a Bulleit Distilling Company. Por conta de seu enorme sucesso, a empresa foi vendida para a Seagram’s, que, por sua vez, foi adquirida pela Diageo. Mas ainda que tenha alienado sua companhia, Tom até hoje trabalha como consultor para sua (outrora) marca.

Howdy.
Howdy.

Ainda que a Diageo não revele exatamente onde ele é fabricado, o boato que circula pelos saloons de hoje em dia é que seja na mesma destilaria responsável pelo Four Roses. Como a maioria dos bourbons, ele é uma mistura entre o destilado de coluna e aquele produzido em alambiques. Além disso, segundo a marca, água filtrada em calcário – comum na região de Lawrenceburg – é usada em sua fabricação.

Seu tempo de maturação é outro mistério. Como é comum com bourbons e cada vez mais frequente no universo de single malts, não há qualquer indicação de idade no rótulo do Bulleit. No entanto, sabe-se que, em média, o whiskey passa em torno de sete anos em barricas virgens de carvalho americano. É bastante tempo, considerando os barris novos e o clima quente do Kentucky.

A composição da Mashbill do Bulleit Bourbon é 68% milho, 28% centeio e 4% de cevada maltada. É bastante centeio. Isso lhe proporciona um sabor acentuado de especiarias, especialmente pimenta do reino. A tradicional baunilha ainda está lá, mas com um papel bem mais coadjuvante do que o costumeiro. Outro ponto incomum para este Bourbon é sua graduação alcoólica. Quarenta e cinco por cento. Havia uma versão com apenas quarenta, comercializada em alguns mercados, como o Europeu. Mas, para nossa sorte, a trazida para cá é a mesma consumida nos Estados Unidos e México. Os cowboys aprovariam esta decisão.

Para conseguir um Bulleit Bourbon, não é preciso assaltar um saloon ou sequestrar uma diligência. O whiskey já está à venda em muitas lojas especializadas, e sua distribuição aumentará ainda nas próximas semanas. Assim, fique de olho quando este forasteiro chegar em sua cidade. E agradeça por ele não ser um autêntico whiskey do oeste selvagem – afinal, ele é muito melhor.

Pelo jeito, o faroeste também deve muito à indústria do whiskey.

BULLEIT BOURBON – FRONTIER WHISKEY

Tipo: Bourbon Whiskey

Marca: Bulleit

Região: N/A

ABV: 45%

Notas de prova:

Aroma: Caramelo, açúcar mascavo, especiarias, frutas adocicadas.

Sabor: Adocicado e seco, com açúcar mascavo, especiarias e pimenta do reino.

Com Água: Água torna o whiskey ainda mais seco, e reduz a impressão do apimentado.

 Preço: em torno de R$ 150,00 (cento e cinquenta reais)

Drops – Bruichladdich Organic Barley

 

Quando ouço falar de comida orgânica, logo penso naqueles vegetais chochos e maltratados, aquelas batatas meio acinzentadas e alface murchinha. Ou na Bela Gil. Na Bela Gil, recomendando substituir alguma coisa deliciosa (como sei lá, bacon crocante) por algo detestável (tipo chips de abobrinha desidratada). Desenvolvi naturalmente uma certa resistência preconceituosa a tudo que é orgânico.

Uma exceção, porém, é o Bruichladdich Organic Barley. Produzido em Islay, região da Escócia muito conhecida por seus whiskies com caráter defumado, o Organic Barley é uma criação curiosa. Não há qualquer traço de turfa em seu aroma ou sabor. Mas isso não é novidade para aqueles que conhecem a destilaria Bruichladdich. Ela é, seguramente, uma das mais corajosas destilarias escocesas. Talvez por isso se auto denominem “Progressive Hebridean Distillers” – ou algo como “Destiladores Progressistas das Hébridas”.

A cevada, utilizada como matéria prima para a produção do Bruichladdich Organic Barley provém inteiramente de três fazendas certificadas: Mains of Tullibardine, Mid Coull e Coulmore. Segundo a própria Bruichladdich “nos tempos vitorianos, quando a Bruichladdich foi construída, toda cevada escocesa era cultivada de forma orgânica. A relação entre o destilador, o fazendeiro e o solo era íntima e duradoura. Estes laços foram perdidos à medida que o cultivo industrial rompeu essas sinergias e uma era de insipidez (monotonia) super eficiente surgiu. Em parceiria com nossos fazendeiros orgânicos – Sr. William Robert de Mains of Tullibardine, William Rose de Mid Coull e Neil Scorbie de Coulmore – estamos redescobrindo essas sinergias. Nós acreditamos que essa relação é importante. E novamente, unimos a terra à dose.”

Além da certificação de sua cevada, o Organic Scottish Barley não passa por qualquer processo de filtragem a frio, e não há adição de corante caramelo. Por fim, sua graduação alcoólica é relativamente incomum. Cinquenta por cento. Sua cor é clara, quase de palha, com aroma  e sabor adocicado e frutado, com pera, laranja e baunilha. É um whisky leve e muito agradável. Sua graduação alcoólica alta é pouquíssimo perceptível.

O Organic Barley é o animal recessivo em todos os aspectos do mundo do whisky – sem defumação onde todos são defumados, orgânico, sem cor artificial e filtragem a frio e com alta octanagem. Ele pode ser encontrado nos terminais internacionais de nossos aeroportos, e seu preço é de US$ 88,00 (oitenta e oito dólares).

BRUICHLADDICH THE ORGANIC SCOTTISH BARLEY

Tipo – Single Malt sem idade definida (NAS)

ABV – 50%

Região: Islay

País: Escócia

NOTAS DE PROVA

Aroma: baunilha, frutas, mel.

Sabor: Frutado, com pera, maçã e frutas doces. Há um certo sabor de cereais, como mingau de aveia. Final médio e adocicado.