Três de Janeiro, onze da manhã. Nenhum compromisso à vista pelos próximos dois dias. Que delícia, fazia um tempão que almejava pela mais cândida agenda – penso. Acho que vou aproveitar para resolver algumas bobeirinhas que não conseguira, por falta de tempo. Tipo cortar o cabelo. Passo os dedos pela nuca, como se para reafirmar a necessidade da toza. Três meses sem cortar, meus mullets reminescem a um cruzamento entre o Billy Ray Cyrus do anos oitenta e uma samambaia. Ligo na barbearia costumeira, mas o telefone só toca. Naturalmente, em dois mil e vinte e dois, recorro ao Instagram. Recesso até o dia sete. Melhor esperar e pensar em alguma outra pendência.
Já sei. Revisão do carro – que, aliás, há quatro meses suplica por um tal “serviço A”. Não estivesse acostumado à minha displicência, certamente já teria terminado em uma poça de óleo e chamas. Mas carros são tipo cachorros – quase o reflexo dos donos. E a única certeza que teríamos, pudesse meu carro pensar, é que ambos já tivemos tempos mais gloriosos. WhatsApp para a concessionária “oi”. Mensagem automática. Olá, agradecemos sua mensagem, estamos de férias coletivas até o dia onze, boas festas e um feliz 2022.
Dia onze. Que capricho. Me resigno que não será hoje que resolverei nenhum de meus problemas. Quando no dia seis tentar ligar o carro e ele explodir em um enorme cogumelo ígneo, a perícia poderá se certificar que o corpo carbonizado em seu interior é realmente eu por conta das displicentes madeixas. Repenso minhas opções. Limpar a casa, trocar as luzes queimadas. Nada disso me parece muito animador. Observo o relógio, que marca meio dia em ponto. Acho que vou tomar um whisky e pensar no que fazer.
A escolha não leva mais do que dois segundos. The Macallan Double Cask 15 anos. Uma garrafa que me auto-presenteei de Natal, e que havia tomado menos de cinco mililitros – só pra degustação. Verto uma dose padrão na taça. Com todo tempo do mundo, melhor experimentar sem pressa. No aroma, frutas vermelhas, ameixa seca, e um fundo adocicado característico dos whiskies da destilaria. De certa forma, me remete ao The Macallan Sienna – mas um pouco mais vínico.
Paladar. A primeira coisa que me chama a atenção é a oleosidade. É engraçado como os The Macallan tem essa característica quase inconfundível. Um certo resinoso, com untuosidade. Em tese, isso se deve aos alambiques da destilaria – os mais baixos de toda Escócia. E incrivelmente pequenos, também, apesar do enorme volume da destilaria. São trinta e seis alambiques – doze de primeira destilação, vinte e quatro de segunda. A carga é de três mil e novecentos litros e aproximadamente treze mil litros, respectivamente.
Aliás, o processo de destilação todo da The Macallan prima por trazer o máximo de congêneres. Essa é a razão dos alambiques diminutos. E de suas engenharia também. Lyne arms voltados para baixo evitam o refluxo, assim como pescoços largos e baixos dos spirit stills. A moeda de troca é o corte. Por permitir a passagem de compostos pouco voláteis, a separação da cabeça, coração e cauda devem ser bem restritivos. Apenas 16% é aproveitado e vira single malt.
Pausa para contemplar este fato. O new-make, extremamente oleoso, leva tempo para maturar, e exige barricas de qualidade. A The Macallan usa predominantemente barricas de grande volume – acima dos quinhentos litros. Isso significa que o ponto de equilíbrio é somente atingido lá entre os doze e quinze anos. O carvalho europeu ajuda – é ele que traz taninos e especiarias, e agrega complexidade ao whisky. Aliás, a coloração do whisky é totalmente natural. Não é usado corante caramelo. Assim, o trabalho de padronização é redobrado. Deve-se observar aroma, paladar e também a cor.
Notas de frutas secas, pimenta do reino, cravo, canela e um pouco de gengibre. Mais uma vez, o The Macallan Sienna vem à minha mente. Um pouco menos apimentado, talvez, e mais frutado. Aliás, bem mais frutado que seu irmão Triple Cask 15 anos. Aqui, o perfil é mais próximo àquele clássico da The Macallan. Isso se deve à maturação, que ocorre somente em barris que foram previamente temperados com vinho jerez espanhol. Barricas, estas, tanto de carvalho americano quanto europeu.
Finalmente, tenho uma epifania e sei exatamente o que farei com meu tempo. Sento-me confortavelmente no sofá, meia dose na mão. Mullets e automóveis podem esperar. Hoje, preencherei o dia com whisky e cinema. Não há iniciativa que resista à inércia do terceiro dia do ano. O melhor a fazer é se render.
MACALLAN DOUBLE CASK 15 ANOS
Tipo: Single Malt com idade declarada (15 anos)
Destilaria: Macallan
Região: Speyside
ABV: 43%
Notas de prova:
Aroma: frutado, com uvas passas e especiarias.
Sabor: Frutas secas, ameixas, uvas passas. Final longo, com pimenta do reino, cravo e frutas.