Clássicos são clássicos por resistirem ao tempo. Por permanecerem relevantes, apesar da enorme força centrifuga do oblívio. Clássicos atravessam eras intocados, em detrimento do caos. E clássicos são, invariavelmente e inevitavelmente, copiados. Copiados, modificados, adaptados. Pense, por exemplo, na clássica cena das escadarias de Odessa, do filme Encouraçado Potemkin. Você não precisa nem ter visto o filme para ter a referência. A cena apresenta um carrinho de bebê descendo sozinho e sem controle uma escadaria, em meio a um enorme massacre promovido por soldados czaristas.
A cena da escadaria de Odessa foi uma das primeiras vezes que o cinema utilizou uma sequência de diferentes planos, cortados e montados, para trazer emoção. E funcionou – a cena foi infinitamente reproduzida e homenageada, a ponto de se tornar um clássico maior do que o próprio filme. Ela é referenciada, por exemplo, em Os Intocáveis de Brian de Palma, no tiroteio entre Al Capone e os policiais. Cena essa, que, por sua vez, foi homenageada na paródia Corra que a Polícia vem aí.
É engraçado como, apesar da enorme diferença de tema nas cenas – e mesmo de humor – a essência a torma imediatamente reconhecível. Mesmo em exemplos menos óbvios, como Correspondente Estrangeiro, de Alfred Hitchcock. Os elementos são os mesmos. Escadas, desespero, queda. Nem precisa mais do carrinho de bebê. Mas não é apenas no cinema que um clássico é reproduzido quase à exaustão, mas mantém sua essência. Na coquetelaria também. Um dos grandes exemplos é o Manhattan.
Há infinitas variações de Manhattan. Troque bourbon por scotch whisky e você terá um Rob Roy. Mude os vermutes e terá um Perfect Manhattan. Coloque licor de maraschino e vermute seco e terá um Brooklyn. Com um pouco de Cherry Herring, cria-se um Remember the Maine. Com Fernet e xarope de açúcar, consegue-se um Toronto. Scotch defumado e PX dão origem ao Rapscallion. Mas todos estes drinks, apesar da miríade de ingredientes, buscam um perfil de sabor em comum. O vínico, meio ácido e ao mesmo tempo adocicado do whisky – o mesmo do Manhattan clássico.
O que nos leva, finalmente, ao coquetel tema desta prova. O Whisky in Church. Criado por Erik Reichborn-Kjennerud e Todd Smith do Dalva, de São Francisco, o drink é basicamente um Manhattan – ou melhor, um Rob Roy, que é um manhattan de scotch – só que com oloroso ao invés de vermute, e um pouquinho de maple (xarope de bordo) para equilibrar. O frutado fica por conta de bitters de cereja, que, na singela opinião deste cão, podem muito bem ser substituídas por Cherry Herring, com uma pequena adaptação.
É curioso que com um nome tão sugestivo e deliciosamente pecaminoso, não haja qualquer explicação sobre seu batismo. Nos resta apenas conjecturar. Talvez Whisky in Church seja um convite? Ou uma pequena indulgência realizada por um clérigo? Não sei. Certamente não é referência aos ingredientes. A receira original leva Smokehead, um single malt de destilaria não divulgada que pouca coisa tem de sagrado. Caso algum abençoado leitor saiba, favor destacar nos comentários.
Jerez – especialmente oloroso – e scotch whisky não parecem uma combinação exatamente criativa. Décadas de maturação deste em barricas daquele mostra, entretanto, que é uma prática que já atingiu sua excelência. Assim como, aliás, o Manhattan e, talvez, o cinema. Bem, sem mais, vamos à receita.
WHISKY IN CHURCH
INGREDIENTES
- 60ml whisky defumado
- 22,5ml jerez oloroso
- 5ml maple syrup
- 6 dashes de bitters de cereja, ou 5ml Cheery Heering.
- parafernália para misturar
PREPARO
Adicione os ingredientes num mixing glass com bastante gelo. Misture e verta em um copo baixo com gelo.
Garnish: zest de limão siciliano.
Caro Maurício,
Eliminarei detalhes para que o comentário solicitado não fique maior do que seu fantástico texto, que nos anima a preparar um dos coquetéis citados.
Em “O Guia do Malt Whisky” (pág 416, 6ª ed. 2010), Michael Jackson registra que nos “malts inespecíficos” (provavelmente tradução para ‘engarrafadores independentes’ – ‘independent bottlers’) há segrego na origem (destilaria) porque o engarrafador faz contrato com a destilaria ou não quer confronto com o fornecedor (o que significa a mesma coisa), ou deseja promover um sabor e não um rótulo (o seja, um alquimista dândi) ou um recurso pra atingir consumidores resistentes a rótulos como Glengoyne Burnfoot. Nunca ouvi falar no tal Bunrfoot, mas a afirmação é enigmática, pois não tem caráter geral, ao contrário das outras considerações. O enigma começa a ser decifrado quando observamos que Ian Macleod, controlador do engarrafamento independente do Smokehead, comprou a Glengoyne, e que a Glengoyne conforme uma menção obtida em internet, não foi habilidosa para anunciar seu malt com ausência de turfa. Coisa de doido ou de irlandês.
Nada disso responde sua pergunta nem justifica o início do meu comentário, então, quem chegou até aqui ficará sabendo que parece haver um consenso que o Smokehead é proveniente de uma destilaria do Sul de Islay. Ótimo, ficamos com três. Há quem mencione suspeitas que são barricas rejeitadas pelo controle de qualidade da Ardbeg. Agora ficou interessante, porque se o Smokehead não presta pra fazer Ardbeg, provavelmente justifica meu encanto com esse single.
Quem ainda está lendo, recomendo o Smokehead, que tem assertividade de um Islay e a curiosidade do salgado, adocicado e condimentado de outros single malts.
Ainda está lendo? É um herói! Ian Macleod também controla o Isle of Skye, assim como o Smokehead, vendidos por preço de banana.
Forte Abraço
Li tudo e reli. Interessante a questão dos “white labels” ou “maltes inespecíficos”. Faz sentido, ainda mais sentido considerando que estes whiskies tem um marketing voltado mais para o consumidor leigo. Basta ver a identidade visual de Peat’s Beast e o próprio Smokehead. Agora, Glengoyne turfado? Fiquei curioso.
Meu chute é que é Ardbeg. Ja tive essa discussão com alguns apaixonados, aliás, EM ISLAY, mas, brasileiros. E ninguém chegou a qualquer conclusão. Tirar Caol Ila da equação já é algo, porque tudo é Caol Ila.