“segunda feira não é ruim, você que está no lugar errado“. Lembrei-me deste cliché ao chegar ao Estúdio da Tattoo You, em São Paulo, ontem. Mas não para fazer uma tatuagem – ainda que às vezes flerte com a ideia – mas para um dos eventos mais legais do ano. A final do Jameson Bartender’s Ball 2017.
Bartender’s Ball é uma competição internacional de bartenders, em que cada um deve criar um coquetel próprio, utilizando Jameson. No ano passado, o vencedor foi Matheus Cunha, do atual Juniper 44º. Seu coquetel – o Sem Medo – levava Jameson, cerveja preta, vermute e abacaxi.
Neste ano, além do concurso, o evento ainda foi complementado por uma interessantíssima palestra preliminar do embaixador da Jameson no Brasil, Lucca Campolina, sobre a história e produção do whisky irlandês mais famoso do mundo.
Lucca em ação
A competição contou com vinte e quatro bartenders brasileiros. No final de abril, foram escolhidos seis, que participaram da final brasileira (ou semifinal mundial) naquele 15 de maio, no estúdio da Tattoo You: Edgard da Silva Jr. (LOL Sport e Bar), Stephanie Marinkovic (Espaço 13), Renan Tarantino (Nakka), Felipe Leite (Jiquitaia), Dio Lucena (Peppino), Vanderlei Nunes (Brexó) e Guilherme Araújo (Vidottinho).
Os bartenders deveriam improvisar drinks para três jurados. Destes seis, três foram selecionados para preparar novamente suas criações para os participantes: Stephanie Marinkovic, Renan Tarantino e Guilherme Araújo.
Stephanie preparou o Impetus, inspirada pelo poema Ballad of Reading Gaol, do – também irlandês – Oscar Wylde. A obra fala sobre amor, e sobre como este sentimento corrompe e altera seu objeto. Cada um dos quatro ingredientes do drink representa uma releitura da fase do amor. Além do Jameson, sua criação leva camomila, café, tintura de arroz negro, bitter de lavanda, e (pasme) bacon.
Renan, por sua vez, apostou em ingredientes bastante incomuns. Além do whiskey irlandês, seu coquetel – chamado Sabiá – leva purê de pitanga, compota de abacaxi, falernum do pará (isso é uma espécie de calda de açúcar com castanha do pará, amêndoas, gengibre, imbiriba, puxuri, cravo, semente de cumaru e casca de limão) e limão cravo.
Renan e sua criação (Foto Leo Feltran)
Já Guilherme se inspirou num drinque essencialmente irlandês. O Irish Coffee, e criou sua versão abrasileirada. O Brazilian Irish Coffee, que leva Jameson, xarope de baunilha com canela, suco de laranja, um bitter artesanal preparado pelo próprio Guilherme. O Drink é finalmente defumado com canela, batido e depois coado.
Ao final do evento, o finalista da etapa brasileira foi anunciado. Renan Tarantino, responsável pela coquetelaria do incrível restaurante japonês Nakka. Este Cão teve a oportunidade de provar sua criação, uma excelente combinação entre o cítrico e o adocicado.
A impressão que este Cão teve durante a competição do ano passado permaneceu inalterada. Jameson Irish Whisky é ótimo para se tomar puro ou com gelo, mas é também excelente para preparar drinks. É um whiskey versátil, que funciona bem em coquetéis amargos, cítricos ou adocicados.
Poderia aqui finalizar este texto passando a receita do coquetel vencedor. No entanto, isto seria nada além de um exercício de futilidade. A criação de Tarantino leva ingredientes que somente seriam os mesmos se criados por suas mãos. Então, vou sugerir algo diferente. Compre uma garrafa do irlandês mais conhecido do mundo e faça sua própria criação. Afinal, no conforto do lar, com uma boa garrafa de whiskey e criatividade, nenhum dia é ruim. Nem mesmo uma segunda-feira.
No domingo passado levei a Cãzinha no zoológico. Em certo ponto do passeio entramos na sala dos insetos. E dentre artrópodes mais ou menos asquerosos, das mais variadas formas, cores e tamanhos, um me chamou bastante a atenção. O bicho pau. Não pelo nome ambíguo, mas por conta de um conceito que lembrava de minha época de biologia, e que expliquei para os olhos fascinados da cria. O mimetismo.
Mimetismo é, segundo o oráculo digital, “adaptação na qual um organismo possui características que o confundem com um indivíduo de outra espécie“. A vantagem principal é enganar outras espécies, fazendo com que o mimetizador se pareça com algo que ele não é. Além do sugestivo bicho-pau, há centenas de exemplos – dentro e fora da biologia. A falsa coral com a coral verdadeira, a borboleta vice-rei com a monarca,o Lifan 320 com o Mini Cooper e aquele sapato da Ardidas, que comprei há uns dois meses e já está se dissolvendo.
As vezes até fica melhor que o original.
O problema do mimetismo, no entanto, é que às vezes ele não é proposital. E, nestas situações, às vezes ele atrapalha mais do que ajuda – principalmente se uma marca tenta estabelecer uma identidade própria e tornar-se conhecida. É o caso, aqui no Brasil, do Evan Williams Kentucky Straight Bourbon, também conhecido como Evan Williams Black, por conta da cor de seu rótulo. Sua garrafa poderia ser facilmente definida como um híbrido entre um Jim Beam White e um Jack Daniels Old No.7.
O mais incrível é que fora de nosso país, o Evan Williams Black é muitíssimo conhecido. É o segundo bourbon whiskey mais vendido do mundo, logo atrás do Jim Beam White Label. Ele é produzido pela destilaria Heaven Hill, também detentora de conhecidas marcas premium de whiskey, como Parkers e Elijah Craig.
Por falar em mimetismo, não é apenas a garrafa que apresenta um visual conhecido. Talvez você já tenha percebido, mas o bourbon leva o mesmo nome do fundador do Twitter, além de um goleiro escocês que jogava pelos Celtics na década de 70. Porém – e perdão se estiver decepcionando alguém aqui – o nome da marca não faz referência a qualquer destes proeminentes indivíduos. Aliás, não faz referência a qualquer dos dez outros Evan Williams listados na Wikipedia (dentre políticos, jóqueis, tenores e artistas), mas sim a um imigrante galês, que mais tarde abriria a (discutivelmente) primeira destilaria comercial do Kentucky, às margens do rio Ohio.
um brinde aos homônimos! (não entendeu a foto? Veja no final do texto).
De volta ao bourbon. A Mashbill (a composição do mosto) do Evan Williams é de 75% milho, 13% centeio e 12% cevada. O percentual alto de milho traz certo dulçor e suavidade, enquanto que o centeio é responsável pelo sabor levemente apimentado e de especiarias. A cevada fornece um certo corpo, além das enzimas que auxiliam na fermentação do whiskey.
Como todo bourbon whiskey, sua maturação ocorre em barricas de carvalho americano virgens bastante queimadas. A graduação alcoolica é de 43%, algo relativamente incomum no mundo dos bourbons econômicos – a maioria deles possui apenas 40%. O tempo exato que o destilado passa nos barris não é claramente divulgado – como também é o caso da vastíssima maioria dos bourbons. No entanto, segundo o website da Heaven Hill, a maturação ocorre por 4-5 anos.
Em comparação a seu irmão mais refinado já revisto por aqui, o Evan Williams 1783, o Kentucky Straight Bourbon tem finalização mais curta. O sabor de caramelo – bem evidente na versao premium – proveniente das barricas não é tão pronunciado. Porém – ainda que não faça feio ao ser consumido puro – por conta da graduação alcoólica e perfil de sabor, ele é uma alternativa interessantíssima para alguns coquetéis. O website da destilaria, inclusive, traz uma receita de mint julep como sugestão de consumo.
Escondido por coincidências e homônimos, o Evan Williams Kentucky Straight Bourbon é um whiskey honesto, bem feito e com preço justo. Algo raro hoje em dia. E neste mundo de infinitas reproduções, réplicas e recriações que tentam desesperadamente parecer originais, criativas e inovadoras, talvez seja ele – em seu modesto mimetismo – a mais autêntica de todas.
Evan Williams Kentucky Straight Bourbon
Tipo: Bourbon whiskey
Destilaria: Heaven Hill
Região: N/A
ABV: 43%
Notas de prova:
Aroma: caramelo, balinha de doce de leite (!), um certo creme-brulee.
Sabor: baunilha, mel, calda de açúcar. Final médio. Álcool um pouco agressivo, mas que não chega a atrapalhar. Final seco com baunilha.
Preço: R$ 100,00 (cem reais)
Disponibilidade: Lojas brasileiras
* é que a Katy Perry na verdade se chama Katheryn Elizabeth Hudson. Assim como a Kate Hudson!
Você sabia que os Estados Unidos também produz single malt? E há destilarias espalhadas por quase todo o território americano. Exemplos são a Swift (Texas), Westland (Washington), Colkegan (Santa Fé – Novo México) e a Corsair (Kentucky), que produz esta curiosa garrafa da foto. O Corsair Triple Smoke.
A destilaria Corsair, aliás, tem uma história bem interessante. É que ela foi quase uma obra do acaso. Seus fundadores, Andrew Webber e Darek Bell começaram produzindo cerveja artesanal. Depois, resolveram desbravar novos territórios, e tentaram criar um novo processo para produzir biodiesel. Porém, por mais que tentassem, os experimentos davam sempre errado.
Andrew então, cansado, disse a Darek que produzir biodiesel era muito difícil, e que whiskey seria bem mais fácil. E alguns anos e uma academia de destilação da Bruichladdich depois, a Corsair possui sete produtos diferentes em seu portfólio permanente, e mais de dezenove edições experimentais, limitadas ou anuais. Há destilados para todos os gostos – whiskeys, gins, genevers e coisas meio difíceis de definir, como o Grainiac, um whisky destilado de milho, cevada, centeio, trigo, quinoa, triticale, trigo sarraceno, aveia e um grão que este Cão nunca nem tinha ouvido falar – Espelta.
A Corsair tornou-se famosa por desafiar conceitos e utilizar matérias primas improváveis, como quinoa e triticale. Além disso, para acelerar a maturação, a destilaria faz uso de barricas menores do que as usuais. A maioria de seus produtos matura em barris que variam de 20 a 60 litros.
Barris da Corsair
Apesar de todas as invenções, o Corsair Triple Smoke é um dos produtos mais populares da destilaria. Não é por menos. Ele é o sonho de qualquer maluco por whiskies defumados. É que além da tradicional secagem da cevada utilizando turfa, o Triple Smoke – daí o nome – utiliza mais duas fontes esfumaçadas. Conforme a destilaria “nós pegamos três frações de cevada maltada, cada uma defumada por um combustível diferente – madeira de cerejeira, turfa e faia (beechwood) – para produzir este whisky complexo. Destilado em alambiques e depois tranferido para o barricas de carvalho virgem altamente tostadas, o Triple Smoke possui o dulçor do barril de um whiskey americano, combinado com a fumaça rica de um single malt, potencializada por notas de cereja e faia” Tudo isso dentro de uma garrafa que parece ter saído de um filme de Quentin Tarantino.
O Triple Smoke foi lançado em 2009 – apenas um ano depois da abertura da destilaria – graças a uma ideia de Bell. Segundo ele “em competições, o whisk(e)y é julgado pelo aroma, sabor e finalização (…). Mas um curto-circuito interessante é que eles tendem a ser muito melhor avaliados proporcionalmente às suas idades se forem intensamente defumados“. E a ideia de Bell Funcionou. O Triple smoke recebeu o prêmio de “whisky artesanal do ano” pela Whisky Advocate em 2013.
Por ser um produto artesanal, os lotes são pequenos, e conseguir uma garrafa não é lá muito fácil, nem mesmo nos Estados Unidos. Assim, como você já deve ter presumido, o Triple Smoke não está a venda em nosso país. No entanto, ele – e a Corsair – são provas de que a indústria do whisky não precisa ficar engessada por regras anacrônicas. Produtos muito bons podem ser criados, basta conhecimento, trabalho duro e um incomum brilhantismo.
CORSAIR TRIPLE SMOKE
Tipo: Single Malt Americano
Destilaria: Corsair
Região: N/A
ABV: 40%
Notas de prova:
Aroma: caramelo, borracha queimada, fogueira.
Sabor: Defumado, caramelo queimado, couro, um pouco amargo. Final adocicado e esfumaçado.
Existe um certo charme na rebeldia, mesmo quando ela não faz o menor sentido. Prova disto é o – quase indiscutivelmente – mais famoso curta-metragem da história: Un Chien Andalou (Um Cão Andaluz), de 1929, dirigido por ninguém além de Luis Buñuel e Salvador Dalí (sim, o pintor).
Un Chien Andalou é um filme de dezessete minutos. E nenhum segundo dele faz o menor sentido. Há uma lua, um homem olhando para sua mão perfurada enquanto formigas saem de dentro dela, outro homem puxando um piano com padres e alguns animais mortos. Há mais uma mão – desta vez, decepada – na calçada. E claro, a famosa e aflitiva cena de um olho sendo cortado por uma navalha. Não há qualquer relação entre as cenas. Para falar a verdade, nem o título faz sentido – ele foi criado aleatoriamente pelos dois artistas com a ajuda de um dicionário.
Aflição!
O filme foi concebido por Dalí e Buñuel justamente para chocar o público e – como escreveu um renomado crítico da época – aliená-lo ao invés de agradar. E apesar de pouca coisa fazer sentido, há algo indiscutível em Un Chien Andalou. Sua matéria prima, talvez o único frágil barbante que amarre todas as cenas, são os sonhos. O filme é baseado na linguagem do inconsciente. Outro filme muito famoso de Buñuel, produzido quarenta e quatro anos mais tarde, bebe da mesma fonte: O Discreto Charme da Burguesia.
Ao contrário do Cão – o Andaluz, não eu – O Discreto Charme da Burguesia tem um roteiro cronológico. Ele foca em seis personagens, representantes da classe média-alta da época, que tentam desesperadamente jantar juntos. Apesar das incessantes tentativas, as coisas mais ridículas, absurdas e virtualmente aleatórias acontecem. O mundo do filme não faz sentido, mas todo mundo age como se fizesse. Justamente como ocorreria em um sonho. Mais uma vez, e de uma forma mais descarada aqui, a ideia é chocar o espectador e fazê-lo questionar o sentido de sua própria natureza.
Com base no filme tão surrealista quanto iconoclasta, a Brooklyn Brewery – uma das cervejarias preferidas deste Cão – lançou um experimento curioso. A Discreet Charm of the Framboisie (em português, “O Discreto Charme da Framboesía” – sim, com um “i” a mais, para parecer burguesia), uma sour ale que passa por barricas de Woodford Reserve. A própria cervejaria deixa a relação explícita com o filme em seu site. Segundo eles, um tomo muito antigo e empoeirado foi encontrado na adega da cervejaria. Seu conteúdo era o seguinte:
Framboisie – Pessoas corajosas que bebem sours excelentes, ouvem músicas vivazes, abraçam o funk e passam longe de comida medíocre, pensamentos preguiçosos, estilo de vida baseado no medo e filmes que possuem mais CG do que pessoas. Surgiram em resposta à burguesia, um grupo chato e vazio, ridicularizado no filme surrealista de Luis Buñuel, vencedor do Oscar, em 1972 – O Discreto Charme da Burguesia’ Os Framboesía são homenageados na produção da Brooklyn de 2016, em seu “O Discreto Charme da Framboesía”, dirigido por nosso mestre cervejeiro Garrett Olivier.
A Discreet Charm of the Framboisie é uma sour ale que leva malte de cevada, trigo e espelta. Ela é maturada em barricas do bourbon Woodford Reserve, cada uma contendo sete quilos de framboesas frescas. Por fim, a cerveja passou por uma refermentação na garrafa, com Brettanomyces e levedura de champagne. Mais uma vez, de acordo com a própria Brooklyn, “O resultado é uma cerveja vivaz e seca, de cor laranja-avermelhado. Um profundo e fresco aroma de framboesas é sustentado pelas notas de baunilha provenientes da maturação nos barris de carvalho de bourbon, com o azedo característico da levedura selvagem Brett”.
A Brooklyn certamente sabe!
Para este Cão, a Discreet Charm of the Framboisie é uma experiência quase enológica. Há um certo sabor de framboesas, complementado pelo sabor natural azedo da cerveja. A influência do barril é tímida. Ele está lá apenas para unir todos os pontos – assim como os sonhos no Cão Andaluz – e arredondar a cerveja. O final é progressivamente mais adocicado.
Eu poderia aqui dizer que se você gosta de sour ales, cervejas maturadas em barricas de whisky ou mesmo vinhos (há uma curiosa proximidade aqui), a Discreet Charm of the Framboisie é a sua cerveja. Mas na verdade, não. Na verdade, ela é a sua cerveja mesmo se você não gosta destas coisas. Ela é a cerveja perfeita para tirá-lo de sua zona de conforto e mesmo assim surpreende-lo positivamente. E ao contrário de um filme surrealista, depois dela, tudo fará mais sentido.
BROOKLYN BREWERY THE DISCREET CHARM OF THE FRAMBOISIE
Tipo: Sour Ale maturada em barricas de whiskey
Cervejaria: Brooklyn Brewery
País: Estados Unidos
ABV:
Notas de prova:
Aroma: framboesa (!), frutas vermelhas e cítricas.
Sabor: ácido, cítrico. A framboesa está lá, mas se confunde com o sabor naturalmente ácido da cerveja. Há um final quase adocicado e frutado.
Vou contar uma coisa pra vocês. Se vocês acharem muito esquisito, ou ficarem revoltados, paciência. Podem fechar o navegador, deixar de seguir o Cão no Instagram e me bloquear no Facebook. Pensei por muito tempo se deveria ou não contar isso, porque, afinal, em um mundo tão polarizado e ao mesmo tempo cheio de verdades absolutas, é sempre difícil assumir que se tem uma opinão diferente do que parece ser um consenso quase geral. Demanda um certo sangue frio e maturidade para enfrentar as consequências. Mas vou falar. Não gosto de Nutella.
Mentira, Não é que eu não gosto de Nutella. Eu não gosto de frango, o que é bem diferente. Mas eu eu simplesmente não ligo pra Nutella. Nunca entendi o fervor online causado por essa pasta. E isso me incomoda um pouco, porque me sinto excluído desse Zeitgeist gastronômico. Especialmente quando não compartilho do entusiasmo causado por coisas relacionadas que levam os outros à loucura. Como, por exemplo, um enroladinho de nutella e bacon, que encontrei num site de receitas online recentemente. A Nutella encabeça uma longa lista de coisas que não me incomodam, mas também não me emocionam – outras são camarão, pizza, The Beatles (é, eu sei, eles foram revolucionários, okey) e O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, que até é legal, mas vamos colocar a mão na consciência, né?
Tenho esse mesmo sentimento de pacífica indiferença com um coquetel bastante popular nos dias de hoje. O Aperol Spritz. O Aperol Spritz é uma mistura entre prosecco, Aperol e club soda. Passei um bom tempo refletindo a razão de não ligar para aquele coquetel, afinal, era uma combinação difícil de desagradar. E aí concluí que, provavelmente, era porque não levava o único ingrediente essencial capaz de tornar tudo excelente. Bourbon whiskey.
Nutella dos coquetéis
Então pesquisei drinks que tivessem mais ou menos os mesmos ingredientes, mas que levassem aquele photoshop da coquetelaria. E esbarrei em uma jovem e excelente criação. O Paper Plane – uma espécie de “aperol-whiskey”, se “aperol-whiskey” existisse.
O Paper Plane foi criado em 2007 pelo bartender Sam Ross, para um restaurante chamado The Violet Hour, localizado em Chicago. Segundo Ross, o Paper Plane é seu segundo coquetel mais famoso depois do Penicillin – um drink que emociona este Cão tanto quanto Nutella emociona quase todo mundo. Ainda de acordo com seu criador, o drink foi assim batizado em homenagem à música “Paper Planes”, da rapper britânica M.I.A., que ele teria escutado enquanto desenvolvia a receita. Porque, afinal, ninguém tem bom gosto em tudo.
Além de Aperol, o coquetel leva Amaro Nonino, sumo de limão siciliano e, claro, bourbon whiskey. O coquetel tem um perfil relativamente equilibrado entre o cítrico (do limão siciliano) e o adocicado (do Aperol). Então, para não interferir muito na balança, preferi utilizar o Jack Daniel’s Single Barrel, um bourbon que não tende nem para o apimentado (como o Bulleit) nem para o doce (como o Maker’s Mark). No entanto, sintam-se à vontade para usar o whiskey de sua preferência.
Sem mais prolações, meus caros leitores. Desfaçam seus aviõezinhos de papel e tomem nota deste incrível coquetel – na opinão deste Cão, bem melhor do que uma colherada de nutella, e seguramente superior a um Aperol Spritz. O incrível Paper Plane.
PAPER PLANE
INGREDIENTES
3/4 dose de Aperol
3/4 dose de Bourbon ou Kentucky Whiskey
3/4 suco de limão siciliano
3/4 dose Amaro Nonino (você pode tentar substituir por Benedictine, mas este Cão não arriscaria outra coisa).
gelo
Coqueteleira
Taça Coupé ou de Martini
PREPARO
Adicione os ingredientes em uma coqueteleira com bastante gelo.
Bata vigorosamente e desça em uma taça coupé ou de martini gelada.
Nada como um programa cultural no domingo para escapar um pouco da rotina. Como, por exemplo, o Museu da Casa Brasileira, em São Paulo. Caso você more ou esteja de passagem pela (progressivamente) cinzenta capital paulista, vale a pena conhece-lo.
A ideia do Museu – um casarão de estilo neoclássico construído na década de quarenta – é mostrar a arquitetura e design brasileiros, tanto do passado quanto contemporâneo. Há, inclusive, um prêmio de design criado por eles, para justamente incentivar a produção de peças de mobiliário autorais e arquitetura.
E apesar de mobiliário e arquitetura serem assuntos bacanas, a real razão pela qual o Cão visitou o museu foi outra. É que ocorreu no fim de semana do dia 08 de dezembro a Feira Sabor do Brasil – uma feira gastronômica com alguns dos melhores produtores brasileiros de quase tudo que é comestível ou bebível: queijos, embutidos, pipoca, pães, queijos (e que queijos!), doces, gim (Virga, que já esteve nestas páginas caninas) e, claro, cachaça – a ótima Sebastiana, que o Cão teve a oportunidade de conhecer e provar.
Se você está se perguntando por que o Cão está falando de cachaça, a explicação é simples. A Sebastiana é uma cachaça, mas inspirada no melhor do mundo do whisky. Isso fica bem claro na descrição que acompanha uma de suas expressões, batizada de Duas Barricas, que ilustra este drops“A associação dos conhecimentos adquiridos na Escócia (terra dos Single Malts) e do Kentucky (terra do Bourbon nos Estados Unidos), foram base para a criação desta bebida de sabor inigualável no mercado.”. Pronto, agora que tiramos isso da frente, podemos continuar.
A Sebastiana é uma cachaça super-premium, produzida no Alambique Santa Rufina, localizado em Ibaté, no interior de São Paulo. Há quatro expressões: Cristal (sem maturação), Castanheira (maturada em barricas de castanheira), Single Barrel (no melhor estilo small-batch whisky, uma cachaça maturada em barricas virgens de carvalho, e engarrafada a partir de um único barril) e Duas barricas (um verdadeiro Doublewood brasileiro – maturada por 18 meses em barril de Castanheira brasileira e mais 18 em barril de Carvalho americano – absolutamente genial).
Museu ao fundo
As cachaças da Sebastiana já receberam tantos prêmios internacionais quanto alguns dos melhores whiskies. Nas orgulhosas palavras da própria marca “Em 2014, a Sebastiana Castanheira foi medalha de ouro no San Francisco World Spirits Competition e no New York World Wine & Spirits Competition, enquanto que a Sebastiana Carvalho recebeu medalha de prata no New York World Spirits e Wine & Spirits Competition e medalha de bronze no International Spirits Challenge de Londres.”
A feira infelizmente já acabou. Mas se você ficou curioso com a Sebastiana, pode experimentá-la em bares como Cão Véio, Sal Gastronomia, Bar Baronesa e Empório Sagarana ou comprar a garrafa nas lojas do Eataly, Empório Santa Maria e St. Marché em Sâo Paulo, ou online na Single Malt Brasil. No interior de São Paulo, ela está a venda no Empório Santa Therezinha e Museu da Gula, em Ribeirão Preto e Campinas.
Ah, e se gosta de cerveja, há também a Jupiter Sebastiana, uma cerveja maturada nas barricas que foram usadas para maturar a cachaça. Porque claro, whisky é a melhor bebida do mundo. Mas as vezes a gente quer escapar da rotina.
Este é o terceiro texto de uma série sobre como whisky – com ênfase em single malts – é produzido. Já abordamos assuntos tão diferenciados quanto crianças curiosas, fabricação de automóveis e nuggets de frango. Falamos de notícias indigestas, cevada, fermentação, destilação, turfa e maturação. Caso você tenha perdido, clique aqui para a primeira parte, ou aqui para a segunda. Senão, fique aqui comigo.
Hoje falarei um pouco de botânica – afinal, barricas são feitas de carvalho, que são árvores – e um pouco de química (esteres, aminoácidos, proteínas e tudo aquilo que sua professora ou professor falavam enquanto você dormia, vandalizava a sua mesa como um entalhador-mirim-fora-da-lei ou desenhava).
Preparem-se para a derradeira parte de um déja-vu acadêmico. Mas, dessa vez, sobre um assunto bem mais legal. Whisky.
MATURAÇÃO 2/2
Scotch whiskies normalmente são maturados em barricas que já foram utilizadas por alguma outra bebida, ainda que haja exceções – o delicioso Laphroaig An Cuan Mór sendo uma delas. A maior parte dos scotch whiskies é envelhecida em barricas de carvalho americano que antes continham Bourbon whiskey, ainda que a frequência de whiskies maturados em barricas que envelheceram Jerez tenha aumentado bastante nos últimos anos.
O tempo de maturação para atingir certo resultado nem sempre é o mesmo. Há uma série de fatores que pode influenciar – acelerando ou atrasando – o processo de envelhecimento do whisky.
O primeiro deles é o tamanho da barrica. De acordo com as Scottish Whisky Regulations, scotch whiskies devem necessariamente passar três anos em barricas de carvalho com volume máximo de setecentos litros. Entretanto, barricas menores podem ser utilizadas (e maiores, após estes três anos). Novamente, utilizando nosso costumeiro simplismo, quanto menor o barril, mais rápida será a maturação de um whisky.
O segundo fator é a quantidade de vezes que a barrica foi usada. Já expliquei isto por aqui, mas vale a pena relembrar, com uma autocitação. “Barris podem ser utilizados várias vezes, mas cada vez que são reutilizados, perdem um pouco da capacidade de transferir seus sabores para o destilado. Assim, talvez um whisky de trinta anos maturado em uma barrica de terceiro uso – ou melhor, reuso – não seja tão saboroso quanto um doze anos que passou sua breve vida em carvalho de primeiro uso.”
“A influência de um barril de ex-bourbon de carvalho americano de segundo uso é – mais ou menos – setenta por cento inferior àquela de um de primeiro uso. No caso de terceiro uso, ou reuso, o percentual cai para dez. Aí vai um gráfico desenhado sem qualquer esmero no paint, para ilustrar:”
Por fim, e talvez pareça bem óbvio, a bebida que antes fora envelhecida na barrica influencia em seu sabor. Whiskies maturados em barricas de ex-bourbon retém parte dos sabores de mel e baunilha característicos dos whiskeys americanos. Já aqueles que passam por barricas de Jerez ou vinho do porto, por exemplo, adquirem certo sabor de vinho fortificado.
A maioria das destilarias matura seus whiskies em mais de uma espécie de barrica. É comum que sejam combinados whiskies maturados em ex-jerez e bourbon, ou que se transfira um whisky que passou algum tempo em carvalho americano para caravalho europeu. Essa prática busca combinar os sabores provenientes das diferentes barricas, resultando num produto mais complexo e equilibrado.
O processo conhecido como “finalização” ou “finish”, alardeado pela Glenmorangie, Balvenie, Glenfiddich, Laphroaig e tantas outras, não é muita coisa além disso – a transferência de um whisky de uma barrica para outra, para complementá-lo e refiná-lo, conferindo-lhe características especiais da segunda barrica. Até mesmo a Johnnie Walker lançou, recentemente, um blended whisky com finalização: o Blender’s Batch Rye Cask Finish.
ENGARRAFAMENTO
Neste ponto, o whisky está quase pronto para ser engarrafado. No entanto, antes disso há três processos, que podem ou não acontecer.
O primeiro deles é a filtragem a frio, ou chill-filtration. Neste processo, o whisky recém retirado do barril passa (ou melhor, é bombeado usando aumento de pressão) por filtros – normalmente de celulose – a temperatura baixa. Essa temperatura pode variar de acordo com a destilaria, mas normalmente está lá entre os cinco e dez graus, ainda que algumas utilizem temperaturas bem mais baixas. Compostos maiores ficam retidos no filtro, enquanto os menores o atravessam.
A função da filtragem a frio é evitar que seu whisky fique feio. Ou melhor, opaco. É isso mesmo. Whiskies não filtrados a frio tendem a desenvolver uma certa turbidez, ou opacidade, se resfriados, ou se sua graduação alcoólica é reduzida de alguma forma (adicionando-se água ou gelo, por exemplo). Isso acontece porque há compostos pesados – ésteres, proteínas, aminoácidos – que tornam-se insolúveis em temperatura baixa ou graduação alcoólica reduzida, que precipitam.
Há uma certa polêmica sobre filtragem a frio. Muitos alegam que os componentes retidos no filtro até poderiam dar uma aparência feia ao whisky, mas são um importante componente de sabor. Assim, filtrando-se a frio, a destilaria estaria retirando parte da principal razão pela qual as pessoas deveriam comprar whisky – beber algo gostoso.
O segundo processo é a redução da graduação alcoólica. O whisky geralmente sai do barril com graduação alcoólica entre 50% e 75%. Assim, adiciona-se água, para que sua graduação alcoolica seja reduzida para valores mais modestos. O valor mínimo para engarrafamento de um scotch whisky é 40%. Há, no entanto, alguns whiskies que são engarrafados com a graduação original de sua barrica. São os conhecidos Cask Strength. Geralmente, estes são whiskies mais caros, e com tiragem mais limitada.
A’bunadh. Quase 60% de delícia.
O terceiro processo é a adição de corante caramelo, ou E150. O propósito aqui é mais ou menos semelhante àquele da filtragem a frio. Maturação não é um processo com resultados exatos. Algumas barricas maturam whisky mais rapidamente do que outras. Assim, whiskies de diferentes barricas podem ter tonalidades diferentes, ainda que a mesma idade. Além disso, convencionou-se – por alguma loucura que este Cão custa a entender – que whiskies devem ter coloração cobre ou amarronzada. A adição do corante caramelo possui, então, dois propósitos. O primeiro é corrigir eventuais variações de tonalidade de lote para lote ou barrica para barrica. O segundo é de tornar o whisky com a cor que algum louco disse que whisky deveria ter.
Nem todos os whiskies levam corante caramelo. Alguns especialistas alegam que ele traz sabor para a bebida. Porém, ao contrário da crença geral, e na contramão da lógica, o corante caramelo não é adocicado, mas amargo. Além disso, muito pouco corante é adicionado por barrica. Seja como for, este é um ponto que até hoje divide opiniões, e é tema de acalorados – e normalmente ébrios – debates.
Após todos estes processos – ou não – o whisky está pronto para ser engarrafado. O engarrafamento pode ocorrer a mão (algo reservado a whiskies bem exclusivos) ou numa linha de engarrafamento. Seja como for, aqui – literalmente – coloca-se um lacre sobre o processo de fabricação da melhor bebida do mundo.
Esta não é uma prova. Nem um drops, para ser sincero. É um relato. É que meu primeiro encontro com o Ardbeg Corryvreckan não foi meu.
Pois é. Eu estava lá apenas de figurante. Um coadjuvante em uma curiosa cena que havia pouquíssimas vezes tido o prazer de presenciar. Na verdade, a protagonista foi a querida Cã, durante um jantar de nossa viagem à Escócia há alguns anos.
Estávamos há algumas quadras do hotel em um restaurante que tínhamos – por muita sorte – conseguido uma mesa. Um daqueles lugares concorridos, que você precisa usar a lanterna do celular para ler o cardápio, e que serve pequenas porções de coisas com ruibarbo e espuma. Mas estávamos animados e com fome. E eu ansioso para provar algum whisky que não conhecia. Afinal, estava na Escócia.
Sério, qual sabor disso?
Havia uma considerável carta de single malts. Decidi que escolheria algo ao mesmo tempo familiar e estranho. Uma destilaria conhecida por mim, mas uma expressão diferente. Fui pela graduação alcoolica. O Ardbeg Corryvreckan, com 57,1%. Quando a taça chegou, mesmo antes de experimentar, notei o olhar interessado da Cã. Que cheiro bom, o que é? É um Ardbeg forte. Deixa eu provar – pausa, gole – nossa, você precisa comprar uma garrafa disso!
Argumentei que já tinha comprado algumas outras coisas, e que, Ardbeg por Ardbeg, havia o dez anos no Brasil. Não, você vai comprar um deste, amanhã cedo a gente procura. Aí senti que a paixão era séria e resolvi – sem muita dificuldade, claro – obedecer. Levamos duas garrafas. E, já de volta à nossa terra natal, quando aquelas acabaram, encomendamos mais uma com um incauto amigo viajante.
O Corryvreckan é um daqueles whiskies hiperbólicos em tudo. Muito defumado e com altíssima graduação alcoólica. E até parece que a combinação destes dois elementos acaba os potencializando. Ele parece ainda mais defumado por conta do álcool, e ainda mais alcoólico por conta do aroma enfumaçado. Porém, apesar de ser um pouco desafiador, é um single malt absolutamente fantástico.
Seu lançamento ocorreu em 2009, quando veio substituir o aclamado Airigh Nam Beist (Ardbeg, por favor, nomes mais fáceis no futuro!), produzido de 2006 a 2008. A intenção inicial é que ele fosse apenas um lançamento limitado – ainda que cinco mil garrafas não me pareça exatamente uma tiragem pequena. No entanto, o whisky fez tanto sucesso que a destilaria resolveu transferi-lo para seu portfólio permanente, junto com o Ardbeg 10 anos e o Uigedail. E este sucesso permanece até hoje. A World Whisky Awards, um dos mais importantes campeonatos, elegeu o Corryvreckan como o melhor whisky de Islay em 2017.
O impronunciável Corryvreckan é batizado em homenagem a um dos maiores redemoinhos perenes do mundo, localizado no golfo de Corryvreckan, entre as ilhas de Jura e Scarba, na Escócia. A corrente de água produzida por ele pode atingir até dez nós (algo como 18km/h), com ondas de até nove metros. Segundo a própria Ardbeg “aromas em turbilhão e torrentes de sabor profundo, turfado, apimentado espreitam sob a superfície deste whisky belamente equilibrado. Como o próprio redemoinho, Corryvreckan não é para os fracos de coração“.
Corryvreckan
A maturação do Corryvreckan é curiosa. O lote inicial de cinco mil garrafas utilizava barricas de carvalho francês que antes contiveram vinho da borgonha (limpos com pressão e re-tostados). No entanto, por conta da impossibilidade de conseguir mais daquelas barricas, a Ardbeg – ou melhor, seu master distiller Bill Lumsden – decidiu utilizar algo incomum. Carvalho europeu virgem. Assim, o Corryvreckan é uma combinação de barricas de carvalho americano de ex-bourbon (de primeiro e segundo uso) e barricas virgens de carvalho europeu.
O Corryvreckan infelizmente não está à venda no Brasil. E provavelmente jamais estará, já que sua graduação alcoolica é superior àquela permitida por lei em nosso país para que algo possa ser considerado whisky. No entanto, se cruzar com este redemoinho em alguma viagem internacional, não perca a chance de prová-lo. Ou nas palavras – um pouco exageradas – da Ardbeg, mergulhe no redemoinho e experimente a profundidade misteriosa do Corryvreckan.
ARDBEG CORRYVRECKAN
Tipo: Single sem idade declarada (NAS)
Destilaria: Ardbeg
Região: Islay
ABV: 57,1%
Notas de prova:
Aroma: Defumado e adocicado (abacaxi?). Há um aroma subliminar de menta, muito suave.
Sabor: Adocicado e apimentado no começo, rapidamente evoluindo para um sabor bastante defumado e apimentado. Cítrico, com um final com um pouco de baunilha e menta. Bastante apimentado.
Com água: a água ressalta o adocicado e reduz a impressão de apimentado. Fumaça em equilíbrio.
Tendo acompanhado as notícias das últimas semanas acabei concluindo que, às vezes, não vale a pena sabermos como as coisas são feitas. Para um apaixonado por churrasco ou um entusiasta dos alimentos processados, as manchetes são, no mínimo – perdão pela ambiguidade cretina – difíceis de engolir.
Porém, incentivado por aquelas notícias indigestas (hoje estou genial), tomei coragem para escrever algo que há muito planejava. Um (nem tão) pequeno texto, explicando sobre alguns detalhes e curiosidades sobre a produção da melhor bebida do mundo.
Esta é a segunda parte de um especial sobre como o whisky é feito. Na primeira parte, expliquei um pouco sobre a cevada, sua fermentação, o uso da turfa e o processo de destilação. O texto inicial terminou com reticências, no exato momento em que a primeira gota de destilado cintilava no ar, antes de cair dentro de uma barrica.
Hoje falarei um pouco mais sobre destilação e maturação. Continuem com este Cão.
Destilação 2/2
Single malts costumam ser destilados duas vezes em alambiques de cobre. Normalmente, os alambiques de primeira destilação – chamados wash stills – são um pouco maiores do que os de segunda destilação – os spirit stills – e possuem formatos diferentes.
A destilação não é muito além de um processo controlado de evaporação e condensação. Os alambiques são aquecidos em sua base, o que faz com que os componentes mais voláteis do produto (seja wort ou low wine) subam por seu pescoço na forma de vapor. Este vapor então entra em contato com a superfície fria do topo do alambique e condensa. O produto condensado escorre por seu pescoço, passa pelo spirit safe (um equipamento que auxilia na separação das partes do destilado) e é armazenado em um reservatório separado.
Spirit Safe – televisão de bêbado
A primeira destilação produz um destilado com percentual alcoolico entre 20 e 25, que normalmente é misturado com a cabeça e a cauda da destilação anterior (calma, chegaremos lá). Este produto é então novamente destilado, mas nos spirit stills. Essa segunda destilação é fracionada. Os produtos mais voláteis evaporam antes, e são chamados de cabeça. Depois vêm o coração, e, por último, a cauda. Definir exatamente onde começa uma coisa e termina a outra depende da destilaria. Cada uma possui seu próprio corte. Na The Macallan, por exemplo, a cabeça corresponde aos 37,5% iniciais, o coração aos 25% centrais – sendo que apenas 16% vão para os single malts – e a cauda a 37,5%% finais. Cabeça e cauda são descartados ou recebem outros usos, por conterem substâncias tóxicas.
Mas nada é tão simples e direto. Assim, há um conjunto de fatores que influencia no resultado final do destilado. Por isso – e ainda bem – alguns whiskies são leves, enquanto outros são mais oleosos. Alguns são mais sulfúricos, enquanto outros mais neutros. É como a vida, a graça está mesmo na variedade.
A altura do pescoço do alambique e seu formato é uma das mais conhecidas variações. Quanto mais alto o pescoço, maior o espaço que terá que ser vencido pelos vapores. Assim, apenas os componentes mais leves costumam chegar ao topo de alambiques muito altos. É o caso da Glenmorangie, por exemplo. Alambiques mais baixos costumam produzir destilados mais oleosos, como são os The Macallan.
Desenho técnico dos alambiques da Glenmorangie (a parte de baixo é a serpentina de aquecimento)
Outro fator é a forma de aquecimento destas peças. Os alambiques tradicionalmente eram aquecidos por fogo direto. Atualmente, a maioria das destilarias prefere utilizar vapor. Diz-se que o fogo direto produz um destilado mais “carnudo”, enquanto que o vapor contribui para uma bebida mais neutra. O fogo direto aumenta o custo de manutenção dos alambiques e exige que seja instalado um equipamento especial do lado de dentro da base dos alambiques, chamado rummager (uma espécie de corrente com cabo, que gira e evita que o material queime e grude nas paredes de cobre).
Por fim, o refluxo também pode influenciar no caráter do destilado. Ao atingir o topo, parte do produto condensado escorre de volta para o alambique. A quantidade de destilado que retorna à sua base depende, principalmente, do tamanho e da posição do pescoço. Alambiques com pescoço voltado para baixo possuem menos refluxo do que aqueles que apontam para cima. Além disso, podem haver purificadores – um tubo que faz com que parte do destilado volte à base do equipamento. É o caso da Ardbeg, por exemplo. De uma forma simplista, podemos dizer que quanto maior o refluxo, mais leve será a bebida.
Purificador, porcamente desenhado por este Cão
Blended whiskies levam também whiskies de grão, além de single malts. Estes whiskies de grãos são produzidos em destiladores contínuos, também conhecidos como column stills. Em benefício do tempo e do bom-humor do leitor, deixarei este assunto para o futuro.
MATURAÇÃO 1/2
Atualmente, a maturação de scotch whiskies deve ocorrer, necessariamente, em barricas de carvalho – é o que define as Scotch Whisky Regulations, um conjunto de regras que rege a produção e comercialização da bebida.
Acontece que a mudança nas regras que definiu o uso obrigatório de carvalho é de 1990. O que significa – com certo estranhamento – que scotch whiskies poderiam ser maturados em outras madeiras antes disso. Assim, estranha e incrivelmente, antes daquela data, podia-se maturar whisky em qualquer madeira. De fato, no passado houveram alguns poucos whiskies maturados em barricas de castanha, além de uma lenda sobre um certo Glenmorangie Cherrywood, maturado em cerejeira. Porém, a vasta maioria sempre foi envelhecida em barris de carvalho.
Há dois tipos principais de carvalho. Carvalho Americano (Quercus Alba) e Carvalho Europeu (Quercus-qualquer-coisa, dependendo da subespécie, sendo a mais comum Quercus Robur). Barricas de carvalho americano costumam ser mais torradas por dentro do que barricas de carvalho europeu. Sem ser muito técnico, essa torra ou tosta libera substâncias que influenciam na maturação do whisky. Barricas mais tostadas podem trazer ou intensificar a impressão de defumação de um whisky. É o que ocorre com o Talisker Dark Storm, por exemplo.
O carvalho americano traz sabores mais adocicados e de baunilha para a bebida, enquanto que o carvalho europeu é responsável por trazer taninos, frutas cristalizadas e especiarias. Carvalhos americanos crescem mais rápido – atingem a idade de corte após mais ou menos setenta anos – enquanto carvalho europeu leva mais tempo para amadurecer, chegando a quase um século.
Mas não é só isso. Há outros fatores que influenciam na maturação, como a bebida que antes fora armazenada nas barricas usadas. Mas, para não tornar este texto um martírio, por hoje ficarei por aqui. Mas se quiser continuar lendo, veja a terceira parte aqui.
Você desvia de escadas na rua? Anda por aí como um chaveiro, com olho grego, pimenta e pé de coelho pendurados no pescoço ou na bolsa? Coloca o sal na mesa para a outra pessoa pegar, e, se porventura o saleiro cai, rapidamente joga um pouco para trás, por cima do ombro? E paraskevidekatriaphobia, você tem?
Se você não entendeu essa última, eu explico. Paraskevidekatriaphobia é o medo de sexta-feira treze. A palavra foi criada por um psicoterapeuta norte-americano, o Dr. Donald Dossey, e é formada por três elementos – “paraskevi”, “dekatria” e “phobia”, que em grego significam, respectivamente “sexta-feira”, “treze” e “medo”. E como você já deve ter adivinhado pela explicação etimológica, define o medo da sexta-feira treze. Segundo ele, de uma forma bem humorada, quem conseguisse pronunciar a palavra estaria magicamente curado daquela fobia.
O Cão Engarrafado, no entanto, tem outra cura. Uma que não exige qualquer habilidade léxica e que também envolve o amaldiçoado número. Tomar uma dose do Craigellachie 13 anos, à venda nos Duty Frees dos aeroportos brasileiros, no embarque e desembarque de voos internacionais.
O Craigellachie 13 anos é a espinha dorsal dos single malts da destilaria Craigellachie, localizada em Speyside, e pertencente à Bacardi. Junto dos demais single malts do grupo – Aberfeldy, Aultmore, The Deveron e Royal Brackla – temos a coleção autointitulada “The Last Great Malts” ou “os últimos excelentes maltes”. A modéstia realmente passou longe aqui.
Last Great Malts
A Craigellachie foi fundada por Peter Mackie – o mesmo criador da Lagavulin e do blended whisky White Horse – em 1890. Seu principal papel era o de fornecer maltes para blended whiskies. Foi apenas em 2014, que o Craigellachie passou a ser comercializado como single malt pela própria destilaria. Apesar disso, grande parte da produção ainda é destinada aos blends, em especial à linha Dewar’s.
A Craigellachie é uma das unicas destilarias da Escócia que utiliza worm tubs, um sistema de resfriamento e condensação dos vapores provenientes da destilação. Worm tubs são serpentinas submersas em água fria. O vapor proveniente do alambique passa por dentro desta serpentina e vagarosamente é resfriado e condensado. O resultado é um destilado mais pesado e sulfuroso. A impressão ainda torna-se mais clara por conta do malte utilizado pela Craigellachie.
O Craigellachie 13 anos é um single malt oleoso, amargo e com um curioso aroma de enxofre. Mas em um sentido bom. Há uma certa defumação, mas apenas em segundo plano. O final é longo e sulfuroso. Se você gosta de whiskies mais oleosos e agressivos, o Craigellachie 13 anos não irá decepcioná-lo. Paraskevidekatriaphobia ou não, o Craigellachie é um treze da sorte.