Cinco whiskies que deixaram saudades

Naquela época, os carros eram bem melhores – disse meu amigo, afagando, numa direção só, o teto de seu Opala. Olha o design disso, olha o motor. Apertei os lábios em aprovação e pedi: Liga aí, vamos ouvir o barulho dele. Empolgado, colocou a chave no contato. O motor de arranque girou, girou, mas nada daquele reconfortante barulho dos gases em combustão saíndo do escape. Deve estar frio, concluiu. É, normal, naquela época era normal – concordei – abrindo a porta e sentando ao seu lado, no banco inteiriço.

Me conta, faz quantos quilômetros por litro, indaguei. Cara, quando tô descendo a serra, uns quatro. Dei uma risadinha. Puxa, não é nada econômico. Mas né, mesmo com a gasolina custando o mesmo que o PIB de um país europeu, vale a pena. Naquela época eles eram muito mais legais – comentei, firme. Ele concordou com a cabeça e completou: A única coisa que fico um pouco cabreiro é com a frenagem e segurança. Só cinto de segurança, e não tem ABS, nada, só o freio a disco mesmo. Levantei as palmas pra cima e dei de ombros – normal, coisa daquela época, que era bem melhor.

Bi-xenon.

Meu amigo baixou as sobrancelhas e me olhou em tom de piada – você tá de sacanagem? Eu, eu não, magina, é que nem whisky, antigamente era bem melhor, mó saudades de beber um White Horse de procedência duvidosa. Ele riu. É, acho que não era melhor. Era só diferente, mas dá saudades. Dessa vez, eu concordei de verdade.

As coisas mudam – e às vezes a gente não tá pronto para aceitar. Podem ser coisas prosaicas, como carros ou whiskies. Ou coisas mais complicadas. Mas, a sensação de saudades fica lá. Como diria algum filósofo, as coisas são fluídas – tanto as que são fluídas de verdade, tipo whisky, como as que não são, como carros. È normal sentir saudades. Aqui, reuní cinco whiskies que não são mais produzidos, e que deixaram saudades como o automóvel de meu amigo.

Macallan Ruby

Esse deve ser o número um da lista de muita gente. O Macallan Ruby já veio para o Brasil por importação oficial. Quando chegou, custava menos de mil reais. Foi encarecendo à medida que rareava. Até que a The Macallan anunciou que o whisky seria descontinuado. Aí, ele sumiu das prateleiras – e os poucos que ficaram, passaram a ser vendidos por preços astronômicos.

O Macallan Ruby era o topo da Linha 1824 da The Macallan. Ele não tinha idade definida, e fora envelhecido exclusivamente em barris de carvalho europeu de primeir uso que antes contiveram jerez. Essa era uma característica da Linha 1824 – os whiskies eram escolhidos pelo perfil sensorial, e não pela idade. Como não havia uso de corante caramelo, a The Macallan tinha que acertar padrão de cor, sabor e aroma só pela combinação de barris. Coisa de louco.

Sensorialmente, o The Macallan Ruby parecia que você era um grego antigo e tinha morrido, e bebia da fonte de vinho de Dionísio enquanto faunos produziam vinho jerez em soleras encantadas. Ou isso, ou tinha notas de caramelo, passas, ameixas, pimenta do reino e gengibre. Maravilhoso.

Laphroaig 18 anos

Mais um que deve encabeçar a lista de muito apaixonado. O Laphroaig 18 também já desembarcou no Brasil oficialmente. Da primeira vez, custava uns seiscentos reais, em meados de 2014. Aí subiu para oitocentos e depois pra algo como dois mil e quinhentos. E se eu dissesse que não dá pra entender a lógica, estaria mentindo. Porque é um whisky incrível.

A interrupção de produção do rótulo foi anunciada em 2015, e se efetivou no final de 2016. Uma tragédia anunciada – ostensivamente – pela Beam Suntory, proprietária da destilaria. A notícia, como você pode imaginar, foi recebida com alvoroço e inflação pelo mercado de entusiastas.

Sensorialmente, o Laphroaig 18 lembrava muito o 10 anos, mas com a turfa mais delicada, e uma suavidade e harmonia sem paralelos na linha da Laphroaig. Depois de um tempo, a destilaria lançou seu 15 anos – o que até aplacou um pouco as saudades. Mas não resolveu.

Suntory Hibiki 12 anos

O terceiro whisky desta lista também arranca lágrimas, especialmente dos apaixonados pelos destilados orientais. O Suntory Hibiki 12 anos foi descontinuado em 2015 – quase conjuntamente com o Laphroaig 18 – e substituído pelo Hibiki Japanese Harmony. A razão era fácil. Whiskies japoneses rareavam no mundo todo, e a própria Suntory não possuía estoque suficientemente maturado para atender a demanda.

O que pouca gente sabe – ou se lembra – é que o Hibiki 12 anos passava por uma maturação bem pouco ortodoxa. Barris que antes continham umeshu, licor de ameixa japones – o tal Plum Dew da Suntory. Isso é esquisito até para padrões ocidentais. Na Escócia, é proibido pela SWA maturar whiskies em barris que antes contiveram licor.

Sensorialmente, o Suntory Hibiki 12 anos trazia notas de baunilha, açúcar mascavo, ameixa seca e frutas vermelhas. Incrivelmente encorpado para um blend – discutivelmente até mais robusto que seu irmão mais velho e cobiçado, o Hibiki 17 anos.

Jura Prophecy

Jura Prophecy

É, eu sei, é polêmico colocar um Jura nessa lista. Mas ainda que a lista seja minha e eu não deva satisfação pra ninguém, vou me justificar. É que o Prophecy é tão melhor, mas tão melhor, do que qualquer dos outros atualmente no core range da Jura, que ele já merece estar aqui. Boa parte dessa minha predileção pouco diplomática se deve a uma simples razão. O Jura Prophecy era turfado – e possuía um aroma marítimo enfumaçado maravilhoso.

O Prophecy veio para o Brasil oficialmente pr bastante tempo. Porém, foi internacionalmente descontinuado lá por 2018, para dar lugar à nova linha de whiskies da Jura – Jura Journey, 10, 12, Seven Wood e 18 anos. Nenhum deles defumado. Segundo a destilaria, o consumidor ficava confuso ao ser apresentado com whiskies de uma mesma linha que ora eram turfados, ora não. Por conta de posicionamento de mercado – a Jura busca ser um whisky de entrada – decidiram cortar completamente a turfa.

A maturação do Prophecy acontecia em um conjunto de barris, dentre eles, carvalho europeu de Limousin, e carvalho europeu que antes contiveram jerez oloroso. Como na maioria dos Jura, a maturação não se sobressaía ao sensorial do malte, o que trazia um equilíbrio muito interessante para o whisky. Era delicado, defumado e apimentado ao mesmo tempo.

Mortlach Flora & Fauna

Flora e Fauna

Essa é uma história enevoada. Eu tenho aqui em meu armário uma garrafa de Mortlach Flora & Fauna com selo do IPI e contrarrótulo em português. Sinal de que, em algum momento, essa maravilha já apareceu por aqui oficialmente. Entretanto, o que é mais curioso é que não há qualquer referência a isso na internet. Indagar às pessoas envolvidas também fora infrutífero – ninguém sabia de nada. A verdade é que o Brasil já recebeu boa parte dos maltes mais famosos da Diageo, mas em pequenas quantidades. Então, em algum momento, o carinhosamente conhecido como Mortlach FF pode ter vindo pra cá desavisado.

Alguns whiskies são bons. Outros são muito bons. Alguns, excelentes. Mas há poucos que são tão formidáveis que conseguem retirar da obscuridade sua destilaria, outrora quase negligenciada – ou melhor, subvalorizada – e torná-la uma das mais desejadas entre os apreciadores e engarrafadores independentes. Este é o caso do Mortlach Flora & Fauna.

A linha Flora & Fauna da Diageo tem como objetivo colocar em foco as destilarias menos conhecidas de seu enorme portfólio, e dar a chance ao público de provar, como single malts, muitos dos whiskies utilizados em sua seleção de blended whiskies. Ao longo dos anos, foram vinte e seis rótulos diferentes. O Mortlach foi descontinuado para dar origem a uma série “oficial” da Mortlach – com três expressões. Que não fizeram, nem de longe, tanto sucesso quanto seu predecessor.

Levou alguns anos, mas a Diageo notou que havia algo errado. E inspirando-se na fama daquele primeiro Flora & Fauna, lançou um novo portfólio. Com um novo dezesseis anos, que presta tributo direto àquela primeira expressão, tão admirada – não é tão bom quanto o querido FF, mas ainda assim, é maravilhoso. A garrafa é quadradinha.

 

5 thoughts on “Cinco whiskies que deixaram saudades

  1. Todos deixaram saudades mesmo. O novo mortlach 16 é realmente um pouco aquém do FF, mas um pouquinho só. Ambos são brilhantes.
    PS: onde conseguiu esse FF oficial???

    1. Fala mestre. Eu também acho os dois espetaculares.

      O FF eu comprei de uma menina que trabalhou na industria de bebidas. Ela ganhou o whisky – mas nao sabe a historia tambem.

  2. Primeiramente parabéns pelos seus textos, é cada mais difícil encontrar conteúdos em que a escrita é passional e transparece uma opinião forte, mas ao mesmo tempo foge do clubismo ou do conteúdo nitidamente comprado.
    Mestre comecei a apreciar whisky a pouco tempo e recentemente fiz minhas maiores aquisições, para desespero da patroa rs… um Balvenie 12 triple cask e um Glenfiddich 18. Ambos maravilhosos, mas comprados fora do Brasil. Gostaria de saber dicas para comprar rótulos difíceis de achar no mercado comum brasileiro como Highland Park ou Springbank? Muito obrigado

    1. Haha Fala Kaue, como vai?

      Olha, como diria Mr. Miyagi. Primeiro aprende a andar, depois voar. Não se preocupe com Highland Park e Springbank agora. São whiskies que são apreciados também por conta de suas particularidades de produção – por fazerem o processo de cabo a rabo, por conta de “terroir de turfa” etc. Se você está, de fato, começando, melhor ir para maltes mais straightfoward e criar biblioteca. Springbanks e HPs são bons, mas a surpresa não está exatamente na qualidade sensorial, mas, sim, no processo, entende?

      Meu conselho é: vá atrás do Aberlour, Glenmorangies com finalizações diferentes, Laphroaig, Bowmore, Port Charlotte etc. Todos estes têm no Brasil. Por enquanto, não caia no papo de “Springbank é melhor” ou “um Edradour dá um pau nisso”. Não é verdade sempre. E normalmente é só algo como “tomei um Chateau Lynch Bages quando visitei Pauillac e foi incrível”. Difícil contestar uma informação inacessível.

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