Entrevista com Alexandre Campos – Especialista e sócio da Single Malt Brasil.

Escrever o Cão Engarrafado, para mim, na maioria das vezes, é um prazer imensurável. Também, pudera. Sou um entusiasta do whisky, e apaixonado por ler e escrever. E a espinha dorsal do trabalho é justamente este – beber e teclar, algo que eu já faria mesmo se não tivesse o blog. Na maioria dos dias, a escrita segue desatada. Mas, muito raramente, não. Tem dias que eu mesmo não aguento o som da minha voz – quero dizer, o tlec tlec das teclas do meu computador.

Além disso, eu sou um só, e a gente sabe que o tempero da vida é a diversidade. E o imprevisto também, nada como ser quase visto nu na frente da geladeira pela sua sogra, mas isso é outro papo, e estou a divagar. Assim, resolvi diversificar. Este é o primeiro de uma série especial de posts do Cão Engarrafado que eu não escrevi. É isso aí. São entrevistas com nomes importantes do mundo do whisky, seja no Brasil ou, quando possível, internacionalmente. A ideia é que o entrevistado diga o que pensa. Este Cão apenas transcreverá as palavras – o que, de certa forma, soa tentadoramente relaxante.

E para estrear este espaço, o Cão Engarrafado convidou Alexandre Campos. Alexandre é especialista em whisky formado pela Wine and Spirits Education Trust de Londres. É colecionador de whisky e ministra cursos voltados para o destilado no Brasil. Tanto é que, bem, foi ele um dos professores deste Cão Engarrafado que vos escreve. E, por isso, é uma enorme honra canina poder entrevistá-lo.

Campos é também sócio da Single Malt Brasil – uma loja virtual de bebidas, especialmente voltada para whisky. Recentemente, a empresa realizou sua primeira importação – single malts da destilaria Arran, localizada nas ilhas escocesas, e uma das mais jovens e promissoras do país.

1) Alexandre, você é um dos maiores especialistas em whisky no Brasil. Além da Single Malt Brasil, sei que é colecionador e um grande entusiasta deste inebriante mundo da melhor bebida do mundo. Como começou essa sua paixão por whisky?

Em tecnologia há um conceito chamado early adopters. Que são os pioneiros a adotar certa tecnologia. Eu sou um pouco assim com as bebidas. Sempre fui inteirado nas novidades e lançamentos no Brasil. Na década de 90 tomava Erdinger, que foi uma das primeiras cervejas especiais a chegar ao Brasil. Tinha também uma ligação com o mundo do charuto, que fumo desde meus vinte e três anos. E por isso sempre procurei experiências sensoriais novas.

Mas o grande turning point foi quando me mudei para o Reino Unido. Em 2005 fui para a universidade de Manchester, para fazer meu MBA. Manchester fica até mais perto da Escócia que Londres. E eu pude fazer seguidas viagens à escócia para visitar destilarias de whisky.

Lugar feio pra estudar.

Antes eu tinha uma coleção pequena de whiskies, com rótulos tradicionais. Com minha ida ao Reino Unido, fiz uma coleção mais criteriosa, com whiskies considerados de coleção. E durante meu MBA fiz um projeto de seis meses para a Diageo, e pude me inteirar do que era o mundo das bebidas onde não conhecia – o marketing, comercial, prospecção de mercados. E é nesse ambiente, de 2005 pra cá, que fui aprendendo cada vez mais do mundo do whisky. Prestando inclusive consultoria para destilarias na Escócia que querem importar para o Brasil, e na parte comercial.

6) Bom, você deve ter tido a oportunidade de provar whiskies incríveis. Quais mais te marcaram? Ou melhor, a pergunta que todo mundo faz pra mim – qual seu whisky preferido?

Bom, eu tive a oportunidade de provar whiskies bem caros e envelhecidos, Whiskies de 50, 60 e até 70 anos, que foi o caso do Glenlivet 70 da Gordon McPhail que provei no Whisky Show de Londres. Mas o curioso é que os whiskies que mais me marcaram não tem uma relação direta com o tempo de envelhecimento.

Por exemplo o Bowmore Port Cask 16 anos, que foi uma edição de 1990. Esse whisky eu bebi num cruzeiro, e minha sogra tava junto. A gente bebeu uma garrafa inteira, eu e minha sogra. O whisky era muito bom.

Talisker 10 é outro. Eu estava começando a ampliar meu horizonte no mundo do whisky, estava em um bar de musica latina em Londres. Olhei pra prateleira, vi o nome, Talisker. O barman colocou a dose e, ao prová-la, veio aquele aroma defumado, de algas marinhas, que me cativou. O Talisker 10 marcou.

Talvez o melhor que eu tenha provado na vida foi o Macallan Oscuro, que nada tem a ver com tempo de envelhecimento. Provei no Whisky Live de Londres, e gostei tanto que comprei duas garrafas. Essas duas não existem mais, foram bebidas ao longo desses anos, infeliz – ou felizmente. Bowmore 8 anos foi outro, do Feis Ile Festival de 2008, com 8 anos de envelhecimento. 800 garrafas no mundo, apenas. Um whisky jovem, que me marcou e que, inclusive, trouxe para degustação do Rio de Janeiro que fiz e foi eleito o preferido do dia. Prevaleceu até sobre o Bunnahabhain 25.

Um bem maturado foi o Glenfarclas 52, que tomei no Whisky Show de Londres. Quem serviu a dose foi o John Grant, da Glenfarclas. Na época o Glenfarclas era importado para o Brasil por outra importadora, e o John Grant estava bem entusiasmado de ter entrado no Brasil. Quem sabe agora a gente não resgata esse trabalho né?

2) Pegando aí o lado acadêmico. Para o pessoal que está começando a estudar sobre whisky. O que recomenda que façam? Recomenda algum livro ou curso?

Tem dois livros que acho muito interessantes. O World Whiskey do Charles Maclean, e o Atlas Mundial do Whisky, do Dave Broom. Esses são especiais, mas qualquer literatura desses dois é boa.

Eu recomendo aos iniciantes que procurem livros que tenham como elemento central a história e a produção de whisky. E que evitem livros voltados para reviews de whisky. Porque reviews são pessoais, vão muito do gosto. É uma coisa muito superficial se atentar somente a o que é o “melhor” whisky do ponto de vista de um escritor ou profissional do mundo das bebidas. Essa parte dos reviews vem natural, à medida que a pessoa vai provando mais whiskies.

World Whiskey, de Charles Maclean

Existe outro caminho, que é bem interessante, que é dos cursos e degustações. A própria Single Malt Brasil promove esses cursos introdutórios e avançados, e degustações de whisky. A gente tenta promover no mínimo um curso por mês, em alguma cidade do Brasil. No momento nossos cursos estão mais concentrados em Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro. É legal, para entender de whisky em si, mas para também conhecer pessoas, fazer networking e novas amizades.

2.1.) Legal. E o que acha desses cursos mais genéricos, que falam de diferentes bebidas?

Os cursos mais genéricos são interessantes. Os destilados seguem processos muito parecidos. O processo de produão de single malt é parecido com o processo de conhaque e da cachaça de alambique. Então, nesses cursos mais genéricos, as pessoas aprendem processos que são familiares não só a whisky mas a outros destilados também.

Tem uma escola em São Paulo, chamada Enocutura, que promove cursos no Brasil inteiro, e a Single Malt Brasil também pretende promover esses cursos mais genéricos no futuro.

3) Bom, vamos à parte prática. Eu acho que já sei a resposta disso. Mas como você enxerga o cenário do whisky no Brasil?

O mercado de whisky não é nada trivial no Brasil. É um mercado difícil de ser desenvolvido, e boa parte disso se deve a elevada tributação que a bebida sofre, tanto do governo estadual quanto federal. É considerado um produto supérfluo, de luxo, e tem uma alíquota de ICMS muito elevada. E isso faz com que o desenvolvimento seja difícil.

Além disso, há uma grande burocracia para aprovar whiskies no Brasil antes de realizar uma importação. A combinação dessa carga tributária elevada com a burocracia rigorosa, para aprovação e importação dos whiskies, acaba tornando o mercado difícil de ser desenvolvido.

Por outro lado, é um mercado promissor. Fazendo uma comparação com outros países da America do Sul, estamos atrás em termos de ofertas de rótulos e versões diferentes de whiskies. Especialmente single malts. Então há um espaço grande para desenvolver a importação de rótulos diferentes. É um mercado diferente, e o Brasil carece desses rótulos. É isso que a Single Malt Brasil tem tentado desenvolver nos últimos anos. Fizemos a nossa primeira importação, dos Arrans, e pretendemos importar outras versões da própria Arran quanto de outras destilarias.

A Arran

3.1) Especificamente em relação aos single malts, como você enxerga nosso mercado?

Olha, se o mercado de whisky já é dificil de ser trabalhado por causa de tributação e burocracia, o de single malt é ainda mais complicado. A oferta de single malts é menor do que a de whiskies blended. Então, isso faz com que as destilarias procurem mercados mais atrativos. Não apenas de volume, mas de preço. E os mercados atrativos atualmente são Estados Unidos, Europa Ocidental e Ásia. Então a America do Sul e Africa, por terem renda per capita menor, são menos atrativos.

Convencer uma destilaria a vender seus produtos no brasil não é fácil. Por causa do volume baixo, aliado a tributação alta e excesso de burocracia documental, muitas destilarias refutam exportar pro Brasil. Isso pode ser visto pelo lado ruim. É um mercado difícil de ser trabalhado. Mas vendo o lado bom, é que, uma vez vencida a burocracia inicial, os processos vão se repetindo. Quando vencemos uma barreira documental com certa destilaria, fica mais fácil seguir com essa destilaria. E uma destilaria acaba animando a outra a exportar. É um processo que pode se retro-alimentar num futuro próximo. E é nesse sentido que a Single Malt Brasil vem tentado desenvolver esse trabalho pioneiro e vencer barreiras, que não são intransponíveis, mas são elevadas para importação.

4) Recentemente a sua empresa, a Single Malt Brasil, fez sua primeira importação. Alguns rótulos da destilaria Arran. Como nasceu esse projeto e se desenvolveu?

Bom, a Single Malt Brasil trabalha no varejo. O projeto nasceu da atuação da loja no varejo. Observamos que faltava variedade de rótulos no mercado. Por conta dessa carência, e considerando desinteresse das destilarias na Escócia e importadores de aumentar a oferta de single malts, decidimos atuar no segmento de importação também. A single Malt acredita que o mercado brasileiro tem potencial, e os brasileiros precisam ter acesso a whiskies de melhor qualidade sensorial. Então o projeto nasceu com essa ideia, de oferecer mais single malts ao mercado brasileiro, ampliando a oferta e dentro da ideia de que nosso mercado tem atrativo e potencial.

Hoje são poucos single malts importados para o Brasil. São umas trinta versões diferentes. Nossos próprios vizinhos da America do Sul importam o dobro que a gente importa. O Brasil é um país grande que tem um mercado grande e precisa de uma empresa que faça esse trabalho pioneiro de oferecer whiskies de melhor qualidade. É o que temos tentado fazer nos últimos anos.

4.1) E a repercussão tem sido boa?

Até o momento, a repercussão de nossa importação dos Arran não podia ter sido melhor. Há interesse pela imprensa e entusiasmo pela Arran. A Arran estava tentando entrar no Brasil faz tempo. Tentaram anteriormente por dois importadores e não conseguiram. Então ficamos muito felizes por ter conseguido concluir esse projeto e colocar a Arran no Brasil.

E com os consumidores, a repercussão tem sido boa. Muitas perguntas, gente que não conhece a Arran no Brasil mas tem interesse em conhecer. E muita gente que já adquiriu os primeiros single malts que lançamos – o Arran Lochranza, Machrie Moor Cask Strength e o Arran 18. Então, até aqui, estamos muito felizes de ter efetivado esse projeto, e em breve, vamos lançar outras versões da Arran também.

Arran 18, expressão mais sofisticada da Arran trazida pela SMB

5) Bacana. Planos para trazer mais destilarias? Alguma marca/destilaria você adoraria poder trazer para o Brasil?

Tem muitas destilarias que a Single Malt teria interesse de trabalhar no Brasil. Mas tem duas que a gente gostaria especialmente de importar. Que são dois maltes excepcionais. Glen Scotia e Bunnahabhain. A primeira já começamos a ter uma conversa preliminar, e talvez consigamos importar num futuro próximo. E a Bunnahabhain, por ser uma destilaria icônica de Islay, que destoa um pouco da tradição de Islay, conhecida por ter whiskies enfumaçados. São maltes não defumados em seu core range, e belíssimos.

Essas duas teríamos vontade grande de trabalhar com eles. Compass Box é outra marca que adoraríamos trazer para o Brasil. Já entramos em contato com eles também. Mas, no momento, não sabemos se seguiremos adiante com a ideia de trazê-los para cá.

Bonus Track, Ale. Gostei da história do Bowmore e da sua sogra. Alguma outra história diremos, pitoresca?

Cara, em 2010 fui no Feis Ile, festival de Islay. Eu tinha reservado um bed and breakfast, mas não conhecia a dona. Quem me recebeu na porta foi o esposo dessa senhora. Ao me receber ele disse “Alex, do Brasil, você veio pro Feis Ile, então vem cá, vamos beber uns whiskies especiais que eu tenho”. Esse sujeito era o Harold Hastie, uma figura muito querida em Islay. Ele trabalhava na guarda costeira e era pescador. Ele recebia edições especiais das destilarias de Islay. Ele até tem uma edição que a Bruichladdich lançou, em sua homenagem.

Foi o Harold que descobriu o tal do yellow submarine. Era um submarino pequeninho para detectar minas, que pertencia à marinha britânica, que eles tinham esquecido em Islay em 2005. Aí o Harold Hastie e o cunhado dele pescaram o submarino. Naturalmente, avisaram a marinha britânica. Mas a marinha negou, disse que não tinha esquecido submarino nenhum. Aí o Harold resolveu pegar o submarino e colocar no quintal dele.

Só que Islay recebe muitos turistas. E eles ficavam tirando foto do equipamento no quintal do Harold. E isso gerou repercussão, chamou atenção da BBC, que fez um documentário sobre o tal do submarino esquecido. Aí a marinha pediu desculpas e disse que ia lá tirar o submarino no quintal do Harold, porque, de fato, era deles.

Mas enfim, naquela noite eu fui lá, bebi os whiskies com o Harold. Começamos às 10 da manhã. Tinha coisas incríveis, Port Ellen, Lagavulin 25, Laphroaig 30. Eu não recusei nenhum. As quatro eu estava completamente bêbado. Só fui acordar as seis horas da tarde do dia seguinte, e perdi dois dias de festival. Foi complicado.

5 thoughts on “Entrevista com Alexandre Campos – Especialista e sócio da Single Malt Brasil.

  1. Parabéns pela entrevista! É legal uma abordagem diferente nos textos! Acho muito legal pontos de vista diferentes, de pessoas que tem btt experiência sobre o assunto! Parabéns mais uma vez!!!

  2. Excelente proposta, mestre! Inclusive, ouço falar do Alexandre Campos desde de antes de começar a beber whisky.
    Gosto bastante da Single Malt Brasil e sempre sou muito bem tratado por eles. Fico feliz de ter uma empresa tomando a frente neste projeto de aumentar a oferta de bons whiskys para nós brasileiros.
    Ao mesmo tempo fico triste em ver, que a alta tributação mais uma vez interfere na oportunidade que temos de ter acesso a melhores produtos e acabamos ficando muito atrás de mercados bem menores, como nossos vizinhos da América.

    Um grande abraço e parabéns mais uma vez pela iniciativa!

      1. Parabéns amigo ,muito bacana a entrevista ,vários conteúdo e informações muito ibteressantes ,aprendi mais um pouquinho ..show

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