Fogo da paixão – Lagavulin 16 anos

Se você gosta de filmes antigos, talvez já tenha assistido a 12 Homens e Uma Sentença (12 Angry Men). Não é muito fácil descrevê-lo positivamente com base somente em seu roteiro. É um filme cult dos anos cinquenta, baseado em uma peça teatral. Ele é filmado em preto e branco e se passa totalmente em uma única sala, onde os personagens discutem princípios éticos e valores sociais sem parar por uma hora e meia.

Apesar do descritivo torná-lo tão tentador quanto ficar nu e levar uma surra de um pé de cabra enferrujado ao som de Katy Perry, o filme é bem bom. O ritmo é excelente e os diálogos incrivelmente engajadores para o tema. Ele trata da relativização das normas, da justiça e da inegável diferença entre o mundo do ser e do dever ser.

Mas o mais incrível sobre 12 Homens é que, pelo jeito, todo mundo gosta dele. Ele está entre os cinco melhores filmes do mundo no website IMdB, e possui cem por cento de aprovação no Rotten Tomatoes. Além disso, foi listado como um dos melhores filmes do mundo pelo crítico Roger Ebert, e eleito um dos 100 mais inspiradores pelo American Film Institute. De certa forma, 12 Homens e uma Sentença é como o Lagavulin 16 anos. Amado por todos.

Você disse Lagavulin?

A experiência de se beber Lagavulin 16 anos pode ser definida, com certo exagero, como inefável. Mesmo porque – assim como o filme – descrevê-la de uma forma que pareça deliciosa é bem difícil. É que a maioria dos whiskies pode ser resenhado como algo perfumado, agradável, floral, frutado. É como disse George Bernard Shaw: whisky é o brilho do sol líquido.

Mas não o Lagavulin 16. O Lagavulin 16 é um dia tempestuoso. É como mastigar uma poltrona de couro. Uma poltrona de couro em chamas, forrada de esparadrapos e salpicada com sal grosso. Não há nada condescendente em relação à experiência. Mas, mesmo assim, é um dos maltes mais apaixonantes que conheço. Isso fica bem claro ao lermos as provas da mídia especializada sobre ele. Não há um único comentário negativo. É curioso como um whisky tão desafiador pode ser tão unânime.

Antes de mais nada, preciso pedir desculpas ao leitor pela falta de imparcialidade aqui. É que há um laço emocional forte com este whisky. O Lagavulin 16 anos não foi meu primeiro whisky – este feito pertence ao Chivas 18. E nem aquele que despertou meu interesse por single malts (foi o Glenfiddich 18 anos). Mas foi o primeiro que fez minha cabeça rodar – literalmente – e consolidar minha paixão pela bebida nacional escocesa. O Lagavulin 16 anos foi, por muito tempo, meu single malt preferido.

Todos os elementos de produção do Lagavulin 16 anos contribuem para sua pungência. Os alambiques de primeira destilação (wash stills) são carregados com 85% de sua capacidade total. Já os de segunda – que possuem braços descendentes – praticamente transbordam, com 95% da capacidade total. A destilação leva em torno de dez horas – bem mais do que a média da Escócia. Por fim, o coração dos Lagavulin começa com 72% de álcool e termina em 59%. É um corte bem largo.

 

Alambiques da Lagavulin (fonte: whisky.com)

A maturação do Lagavulin 16 anos ocorre principalmente em barricas de carvalho americano de ex-bourbon. Ainda que a destilaria não assuma expressamente, este Cão possui fortes suspeitas que utilizem também ex-jerez para padronização de sabor. É, porém, um uso muito tímido. Muito mais tímido do que aquele de seu irmão gêmeo, o Distiller’s Edition. Também com dezesseis anos, a diferença primordial entre as duas expressões é que este passa seus últimos anos em barricas de ex-jerez.

Por falar em expressões, o portfólio da Lagavulin é bem restrito. Durante a década de oitenta, havia apenas o 16 anos. Em 1990, a destilaria resolveu, em um arroubo de coragem, dobrar seu portfólio. Passou de um para dois whiskies diferentes, ao lançar seu Distiller’s Edition. Dois anos depois, o 12 anos Cask Strength – uma edição limitada anual – foi disponibilizada. Além destas, a Lagavulin costuma lançar edições especiais, bastante concorridas. Algumas delas são a Jazz Festival (em homenagem ao festival de jazz de Islay), Feis Ile, 25 anos e 8 anos.

O Lagavulin 16 faz parte do (nem tão) polêmico grupo Classic Malts of Scotland, criado em 1988 pela gigante Diageo. A ideia do grupo é apresentar os mais icônicos – segundo eles – whiskies de seu portfólio, de acordo com a região produtora. O problema é que a Diageo, apesar de possuir mais de vinte destilarias sob seu comando, não tem nenhuma de Campbeltown. Além disso, não conseguiu se decidir por apenas um malte das Highlands – teve que desmembrá-la em West Highlands, Islands e Highlands. Por conta dessa história, a empresa criou uma variação das famosas regiões da Escócia, antes mapeadas por Michael Jackson. Assim, além do Lagavulin 16, que representa Islay, os Classic Malts originais eram Oban (West Highlands), Cragganmore (Speyside), Glenkinchie (Lowlands), Dalwhinnie (Highlands) e Talisker (Islands).

Os Classic Malts originais

O Lagavulin 16 anos é praticamente a ilha de Islay em uma garrafa. Até mesmo Georgie Crawford, gerente da destilaria, fala apaixonadamente sobre o whisky “não há qualquer outro produto por aí que você possa realmente fechar seus olhos enquanto bebe e ser transportado para o seu ponto de criação em sua mente. Quando bebo Lagavulin, sou instantaneamente transportada para o final do pier, observando a baía“.

Infelizmente, por algum motivo que foge à lógica deste Cão, o Lagavulin 16 anos não está à venda em nosso país. Sua proprietária, a Diageo, prefere trazer whiskies com preço de combate e sabor amável, por talvez imaginar que, nós, brasileiros, possuímos paladar doce e pouco desenvolvido para single malts. Assim, maltes bem menos louvados e conhecidos internacionalmente transbordam nossas lojas – como Glen Ord, Glenkinchie e Cardhu. Porém, outros, renomados e concorridos, somente podem ser comprados fora de nosso país, como Mortlach e Lagavulin. E nem adianta argumentar sobre o preço. Se há um whisky capaz de se vender sozinho, independentemente de seu valor, é o Lagavulin.

Neste ponto, eu poderia recomendar o Lagavulin 16 anos para certo tipo de leitor. Dizer que se você gosta de whiskies enfumaçados e medicinais, se apaixonará por ele. Porém, dessa vez, não farei isso. Serei bem mais aventureiro. Experimente o Lagavulin 16 anos independentemente de seu gosto pessoal. Mesmo se você gosta de bourbons, blends, ou se sua preferência for pelos florais, ou frutados, ou vínicos. Mesmo se você não suportar fumaça e tiver ódio de bacon. Mesmo assim, experimente o Lagavulin 16. Ele é indescritivelmente apaixonante.

LAGAVULIN 16 ANOS

Tipo: Single Malt com idade definida – 16 anos

Destilaria: Lagavulin

Região: Islay

ABV: 43%

Notas de prova:

Aroma: Predominantemente carvão, com aroma de esparadrapo e iodo.

Sabor: bastante defumado e rico, levemente frutado e com amargor acentuado. Final medicinal, com esparadrapo e carvão. Amargo, levemente salgado e bastante prolongado.

Com água: o aroma fica quase totalmente defumado. Na boca, o amargor fica menos evidente e um sabor de frutas secas fica evidente.

Preço: £55,00 (cinquenta e cinco libras)

 

 

 

34 thoughts on “Fogo da paixão – Lagavulin 16 anos

  1. Uma curiosidade: não é a primeira vez que vc diz que o Lagavulin 16 já foi seu favorito.
    Qual é agora?

  2. Como sempre, belo texto. Em relação ao conteúdo, o que tenho a dizer é que compartilho com você a paixão especial por este malte e exatamente pelo mesmo motivo. Foi o primeiro que, de fato me fez ser um apaixonado pelos single malts. Em relação ao preço, vale cada centavo dessas 55 esterlinas, mas em Paris sai mais barato, paguei 50 euros em setembro e sempre encontro em qualquer mercado da rede monoprix.

    1. Marcelo, muito obrigado!! 🙂

      Você é um cara de bom gosto. E de sorte. Paris possui uma das melhores lojas de whisky fora do Reino Unido que conheço – a Maison du Whisky.

      abração!

  3. Eu definitivamente preciso parar de ler reviews dos nativos de Islay, mestre hahaha.
    Estamos injustamente defasados em nossas terras e por algum tipo de humor negro da mãe natureza temos apenas um fígado.
    Aproveito para tirar uma dúvida: até qual graduação o senhor acredita que um bom whisky pode ser apreciado sem adição de água?
    Grande abraço!

    1. Mestre, infelizmente temos pouco mercado para os enfumaçados. Uma pena!

      Isso vai de cada um. Acima de uns 45% adiciono um pouco de água depois. Abaixo disso, depende. Apenas se houver um sabor unico muito predominante.

    1. Mestre Robson, muito obrigado! rss

      Sim, foto autoral. Nas united kingdom inner hebrides de Ibiúna!! HAHAHA!

  4. Não sei se lê comentários de posts antigos, mas lá vai uma curiosidade:

    O bluezero John Mayer, questionado sobre qual whisk bebia quando escreveu a música “whiskey whiskey whiskey”, respondeu ser o Lagavulin 16. Quero degusta-lo ouvindo o som um dia. Abraços!

    1. Leio. E respondo 🙂

      Essa não sabia. Lagavulin é um arrebatador de corações. É o preferido do Nick Offerman também, comediante e ator americano (que mais parece britanico)

  5. Boa noite. Descobri seu post apenas hoje. Parabéns pelo texto! Me identifiquei perfeitamente com ele. Descreve exatamente o que senti quando experimentei o Lagavulin 16 anos pela primeira vez.
    De forma inusitada fui apresentado a esse magnífico whisky em uma passagem por Portugal em setembro de 2016. Uma história a parte.
    Ao retornar ao Brasil procurei no freeshop de Lisboa e de São Paulo para comprar, mas não havia e os funcionários nem conheciam.
    Em sentido literal, sonhei com esse whisky por 2 meses. Tentei comprar no Brasil, mas não encontrei.
    Até que em novembro de 2016 ao visitar um amigo em Barcelona ele comentou que tinha ganho um whisky, mas como não curtia e sabia que eu gostava muito resolveu guardar para me presentear. Não acreditei quando vi o Lagavulin 16!
    Agora há pouco recebi uma mensagem desse mesmo amigo solicitando o nome do whisky, pois havia esquecido, mas disse que lembrava muito bem da minha reação quando vi a garrafa e gostaria de presentear um cliente que adora whisky. Enviei a foto e o nome do Lagavulin 16, mas não satisfeito fui pesquisar um comentário de um especialista sobre o whisky para enviar o link, assim me deparei com seu excelente artigo.
    Parabéns mais uma vez!
    PS- Assistirei o filme indicado.

    1. Opa, fala Eduardo! Realmente, Lagavulin é amor ao primeiro gole para muitos. Bom saber que não estou sozinho nesta – as vezes bem esquisita – jornada do malte.

      Assista o filme! É muito bom!

  6. Texto incrível! Fui apresentada ao Lagavulin em Barcelona e se tornou o meu favorito! Bem acompanhado com o pata negra! Concordo contigo ao dizer que nos subestimam no paladar! Abraço, me identifiquei com sua posição!!

    1. Apenas hoje me deparei com essa incrível descrição do meu Whisky favorito.
      Gostaria de o parabenizar, pois conseguiu descrever exatamente o que eu sinto em relação a essa bebida divinal.
      Já tive a oportunidade de experimentar os de 8 e 12 anos, mas sinceramente nenhum deles chega aos “pés” do famoso 16 anos.
      Agora em dezembro vou ao Brasil, e levo comigo uma garrafa para apresentar ao meu pai e irmão. Vou mostrar a eles o que é um bom Whisky.

  7. Rapaz, que resenha linda! Tô indo pra África do Sul e vi este single malt entre as opções do Duty Free de lá. Procurei saber sobre ele e acabei aqui! mto obrigado!

  8. Caro,
    Estou aqui me decidindo por uma garrafa de single e depois de ler esta matéria a decisão foi tomada estou indo buscar minha garrafa de Lagavulin.

  9. Muito legal o texto e o site todo, é um prazer ler!
    Realmente, o Lagavulin é apaixonante. Pena não termos no Brasil. Quem sabe um dia!

  10. Bom dia Cão. Acabei de assistir a série Parks and Recreation, e como um apreciador do malte fui pesquisar sobre o Lagavulin 16, que o majestoso Ron Swanson, degusta e achei este comentário. Ainda estou inciando minha jornada no mundo do Whisky, mas achei seu site muito bom e espero aprender muito aqui.

  11. Lagavulin, é tudo isso que o senhor escreveu sobre, embora não me leve a nenhum pier, a primeira sensação foi de estar próximo a uma madeireira secular, com cheiro de couro e frio, que se esvai logo no primeiro gole, puro of course! Já assisti ao filme, no entanto sua narrativa técnica e pessoal revela tudo o que envolve a garrafa fechada à cortiça. Resumindo, um néctar tão puro, que o amargor relatado quase não existe devido a sensação tão reconfortante ao descer pelo esôfago.

  12. Olá amigo.
    Há alguns a venda no Mercado Livre. Recomenda a compra? Ou podem ser de procedencia duvidosa?
    Digo isto pelo preço entre 560 a 700 reais.

    1. Daniel, não arriscaria. Ele nao tem importação oficial para o Brasil. Assim, voce nao pode ter 100% da origem. Pode ser original. Mas pode ser que não.

  13. Prezado Maurício, conheci ontem um parceiro seu, o Marcelo Pardin. E tive a oportunidade de provar o Lagavulin 16. Achei exageradamente medicinal. Claro que provei pouco dele. E já tinha tomado da excelente cachaça produzida pelo Pardin. Talvez o Lagavulin seja como música clássica. É preciso ouvir mais dela pra sentir na alma.

    1. Caro Marcos, mande um abraço para o Pardin!

      Bem, acho que a analogia está certa. Mas, não fique preocupado. Na verdade, esse gosto pelo medicinal é meio inato: se você não gosta, normal. Tenho um amigo que é apaixonado por whiskies mas também não consegue se adaptar ao Laga.

  14. Lagavulin 16 Anos, Ardbeg 10 Anos, Laphroaig An Cuan Mòr, Talisker 10 Anos : estes são os “must”.
    Depois “Ledaig 10 Anos, Bunnahabhain 12 Anos, Longrow Peated, Kilkerran 12 Anos e Hazelburn 10 Anos…
    Depois destes a sua vida não pode mais ser melhor. … ” Slàinte Mhath !! “

    1. Belíssimo texto! Adoro o filme e o whisky. Foi o segundo single malt que eu comprei (o primeiro foi o Glenfiddich 12) e, após vários, continua sendo disparado o meu favorito.

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