Quando era criança, fazia todo tipo de atividade inútil. Não academicamente inútil, como aprender sobre nematelmintos e platelmintos, mas realmente inútil. Como, sei lá, tentar não pensar numa coisa que eu acabei de pensar. Ou adivinhar a cor do próximo carro que passaria pela janela. Ou – uma das minhas preferidas – repetir uma palavra um zilhão de vezes até que a impressão de seu significado se esvaísse completamente, restando somente a sonoridade.
À medida que cresci, essas atividades se sofisticaram. Uma das mais elaboradas envolve uma lombada eletrônica quase em frente ao meu prédio. Toda vez que passo por ela de carro, tento chegar o máximo que posso perto do limite de velocidade, que é de quarenta quilômetros por hora. É um joguinho legal, especialmente quando marco trinta e nove ou trinta e oito. Sorrio por dentro em reconhecimento de minha precisão com o pedal do acelerador. Mas é tão legal quanto inútil, porque, quando eu venço, eu não ganho nada. Mas quando eu perco, levo uma multa.
Outra atividade da mesma natureza é tentar relacionar coisas quase não relacionáveis. Encontrar pontos de tangência entre John Lennon e papel higiênico ou entre McRib e loucura. Ou ainda filmes e whiskies. E foi justamente essa prosaica atividade que fiz pela primeira vez em 2017, quando falei sobre os filmes do Oscar de 2017. E que, para minha surpresa, teve uma repercussão bem positiva. Então, resolvi retomá-la para a festa deste ano.
Escolhi quatro indicados ao prêmio de melhor filme, que assisti e relacionei com suas almas gêmeas do mundo da melhor bebida do mundo. Então, caros leitores, preparem-se para um texto tão inútil quanto tentar encontrar padrão nas placas dos automóveis no trânsito ou – este mereceria o Oscar de atividade mais ridícula – tentar engolir a própria língua.
THREE BILLBOARDS OUTSIDE EBBING, MISSOURI
Three Billboards Outside Ebbing, Missouri, traduzido como Três Anúncios para um Crime (sério, quem inventa esses nomes?), é uma espécie de comédia-negra-dramática-policial dirigida por Martin McDonagh. O mesmo cara que dirigiu também as comédias-negras-dramáticas-policiais In Bruges e Seven Psicopaths. Mas, ao contrário destas, o humor é bem mais sutil. A película conta a história de Mildred, uma mãe que desafia a polícia da cidade de Ebbing a solucionar o assassinato de sua filha de uma forma bastante improvável – colocando uma mensagem em três outdoors de uma estrada que leva à cidade.
O filme, a princípio, parece um drama. Mas há um certo humor casual, irônico e pouco espalhafatoso. Ele se constrói sobre personagens que percorrem o longo caminho entre pontos opostos. Como vingança e conformismo, violência e passividade, resiliência e esgotamento, impulsividade e reflexão. E aí talvez esteja seu maior valor – certas atitudes levam a outras, e influenciam na vida de todos. O filme até explica demais isso, com a piadinha “anger begets more anger” (assista para entender). O roteiro é bem construído, ainda que, algumas vezes esteja um pouco ao sul da sanidade. As atuações de Frances McDormand e Sam Rockwell são irretocáveis.
A alma gêmea de Three Billboards Outside Ebbing, Missouri no mundo do whisky é o Woodford Reserve. Um bourbon relativamente complexo, equilibrado, acessível e bem construído.
TRAMA FANTASMA
Phantom Thread, ou Trama Fantasma, em português, se passa na década de 50, em Londres. Reynolds Woodcock – estrelado por Daniel Day Lewis- é um famoso costureiro, amargo e metódico, que se apaixona por Alma, uma jovem voluntariosa. Descrevendo dessa forma, parece a versão dramática adaptada de Melhor Impossível. Mas não é. Phantom Thread se assemelha muito a um Hitchcock, com a diferença de que o mistério é substituído por um frágil equilíbrio de poder, que está na relação entre os dois protagonistas.
A relação deles, aliás, já começa meio estranha. Woodcock conhece Alma durante um café da manhã, em um hotel no interior do Reino Unido. Alma é sua garçonete desajeitada, que por alguma razão que me foge à lógica fica terrivelmente encantada por aquele velho esquisito que pede mais da metade do menu. Woodcock galanteia Alma lhe pedindo suas anotações sobre sua refeição, e a convida para jantar consigo. O primeiro encontro dos dois ocorre no mesmo dia, quando Reynolds à leva para sua casa e fala de sua mãe. Enfim, um cara esquisito, num encontro com assuntos meio constrangedores. Mas o amor tem dessas, eu acho.
Apesar dessa passagem – que, aliás, é a premissa para o filme acontecer – a película é belíssima. A direção de Paul Thomas Anderson nos coloca no apaixonante e insular mundo da alta costura e da elite financeira de Londres, ambos de friezas encantadoras. Na singela opnião deste Cão, isso, aliada à atuação de Day Lewis, torna a Trama Fantasma um dos mais envolventes filmes a concorrer ao Oscar deste ano.
Se Phantom Thread fosse um whisky, seria provavelmente um Glenfiddich 26 anos. Um whisky que parece delicado, mas extremamente complexo, sutil e, claro, aristocrático.
LADY BIRD
Lady Bird, o segundo filme sob direção de Greta Gerwin, conta a trivial história de uma garota comum. Saoirse Ronan vive uma adolescente de dezessete anos, que inventa uma alcunha – Lady Bird – para parecer menos ordinária. O filme cobre seus últimos meses antes de se tornar maior de idade e, naturalmente, trata de imaturidade e amadurecimento. Fala sobre as complexas relações familiares e sobre tudo aquilo que não é dito, mas que é sentido. Lady Bird é indiscutivelmente autobiográfico – Greta nasceu na mesma cidade em que o filme se passa, e trilhou boa parte das mesmas experiências. Aliás, aí está uma atividade inútil para se fazer ao ver o filme: tentar adivinhar o que realmente aconteceu e o que foi inventado.
A película tem pouco mais de uma hora e meia. Os trechos que exploram a relação entre Lady e sua mãe são, de longe, os melhores. Mas o resto não passa muito de uma versão bem melhorada de algum seriado de high school. Veja bem, não é que o filme é ruim. Mas ele também não é nada genial. E, na humilde opinião deste Cão, o problema está justamente em sua premissa – ele é um longa metragem comum, sobre uma adolescente banal. Não há nada de extraordinário na protagonista. E a gente sabe que toda adolescente comum é chata e infantil, então, o filme adquire exatamente o mesmo tom. A salvação acontece nos últimos vinte minutos, que compensam os outros setenta de marasmo e prosaísmo. Quer dizer, se você tiver filhos.
Para este Cão, Lady Bird é um White & Mackay the Thirteen. Um whisky razoável, mas com uma finalização meio inesperada.
A FORMA DA ÁGUA
Shape of Water, no original, é uma versão anfíbia de A Bela e a Fera. A película conta a história de Eliza Esposito (Sally Hawkins), uma faxineira sem voz, que trabalha em uma organização supersecreta (OCCAM) e se apaixona por um monstro antropomorfo anfíbio, levado para lá e mantido em cativeiro para ser estudado.
Mas o filme não é apenas isso. Para este Cão, seu tema principal não é amor, mas preconceito. De muitos tipos. Contra o amigo gay de Eliza, brilhantemente estrelado por Richard Jenkins, a colega de trabalho negra, Zelda, funções de trabalho consideradas triviais e a criatura em si – que apesar de se assemelhar muito com uma pessoa, é tratada como um animal e objeto de estudo. Há um paralelo longínquo mas bem interessante com uma película que talvez já tenha sido esquecida: Coisas Belas e Sujas, de Stephen Frears. Ainda que, neste último, o único anfíbio seja um coração humano.
A direção de A Forma da Água é de Guillermo Del Toro, que constrói um mundo todo de fantasia ao redor da história. Enquanto ele tenta nos lembrar constantemente que estamos no mundo real – com notícias sobre a guerra fria ou a cena das mangueiras molhando manifestantes na televisão, por exemplo – o universo de Shape of Water é indiscutivelmente mágico, a ponto de superar o realismo fantástico. É como se a fantasia assistisse o mundo real pela televisão. O equilíbrio funciona, mas cria um certo ar de estranheza.
Se a Forma da Água se liquefizesse (viram o que eu fiz aqui?) em whisky, ele provavelmente seria um Johnnie Walker Blender’s Batch Red Rye. Um whisky que fica entre o centeio norte-americano e o blended whisky escocês, mas que funciona relativamente bem para os dois papéis.
Sensacional! Adoro essas comparações etílico-cinematográficas!
obeigado, meu caro!
Como sempre, texto muito bem construído e comparações perfeitas kkkkkk
Valeu, Roger!
Esse blog é realmente delicioso. Sou fã e o tenho como leitura obrigatória (apesar de nunca ter comentado aqui). O Cão é o tipo de pessoa (?!) com quem gostaria de conversar diariamente. Abraço etílico.
Fala Ricado, muito obrigado, meu caro! Comente mais por aqui, then! 😀
Como vai, mestre?
Texto excelente, mas cada vez mais tenho a impressão que apenas estando bêbado boa parte dos concorrentes ao Oscar começariam a fazer sentido haha.
Abraço!
PS: Vc acredita que vale investir um pouco mais em um Port Charlotte ou ele é semelhante demais ao Ardbeg Ten, o qual valeria mais a pena por ser menos caro?
Fala mestre! Hahaha, concordo contigo.
Eu investiria. A diferença hoje é pequena – o Ardbeg está mais caro e o PC mais barato!
Adorei o post! Ganhou o Red rye, quem diria…
Vou lhe pedir uma ajuda, se possível: vou para os EUA em maio. Que whisky de bons custo benefício que não encontramos aqui você poderia indicar? Um lagavulin já vai pra mala…
Grande abraço e obrigado!
Fala Paulo! Pois é, desbancou o Glenfiddich 26, que eu podia jurar que seria o escolhido!
Laga 16 é um clássico. Você está na onda de procurar classicos que não estão disponíveis no Brasil? Qual seu gosto?
Abraços,
Mauricio
Muito obrigado pela resposta. Exato, clássicos não disponíveis aqui. Eu adoro o Laphroaig quarter cask, mas também gosto dos mais “equilibrados” (bem entre aspas) como o Glenfiddich (qualquer um deles rs)
Outro dia segui uma dica sua e gostei muito do Glenmorandie Néctar dor. Mas não tenho preconceitos. Gosto do blue e do green label igualmente. E adoro bourbon. Bem variado, rs.
Ps. Eu achava que ia dar 3 anúncios!
Valeu de novo!
Eu achava que ia dar 3 anúncios, e queria que desse Trama Fantasma. Me ferrei, duplamente! Melhor beber – variado! 🙂
Por lá, procure Aberlour A’Bunadh, Bowmore 18, Clynelish 14. São clássicos e muito bons. Highland Park 18 e Springbank 12 também. Ou corra atrás de uma versão diferente de algo que tem por aqui, como um Glenfiddich Distillery Edition, Macallan Sherry 12, Glenmorangie Signet. São todos bem bons também!
Abração!
Uau, muito obrigado. que lista. Muitos eu nem tinha ouvido falar. Depois eu posto os que eu experimentei e minhas impressões.
Obrigado mesmo.
Abração