Seis novidades pro dia dos Pais

Eu não tô bravo com você, só estou um pouco decepcionado” – foi a frase proferida pelo querido Cão pai, quando descobriu a razão do sumiço de algumas doses de seu whisky preferido. “Você deveria estar estudando pra faculdade“. Acenei com a cabeça. Continuou “seja responsável. Quando você tiver a minha idade, vai agradecer“. E completou com “eu só estou tentando te ensinar o caminho certo, não tô mandando nada“.

Mal sabia ele que aquelas frases pareciam quase uma profecia. De certa forma, eu estava mesmo estudando. Não para a faculdade de direito, mas, sim, o assunto que me fascinava. Whisky. Assumo, porém, que naquela oportunidade, o ato de beber tinha pouco a ver com devoção acadêmica. E, de outro modo um tanto curioso, também agradeci ao ficar mais velho. Afinal, o primeiro contato com uma boa bebida tinha sido ali – de novo, despropositadamente.

Talvez a paternidade seja isso. Aconselhar da melhor forma possível, aparar uma ou outra aresta pontuda, e esperar pelo melhor. E essa é a razão desta materia. Ajudar vocês, filhos e filhas, a escolher o melhor presente para a figura paterna. Separei aqui seis novidades no mercado brasileiro, para garantir a vanguarda da manguaça. Separados por preço, do mais barato pro mais caro, porque, assim como aquela figura paterna, você não é um banco e nem sócio da Eletropaulo.

É importante, aqui, fazer uma ressalva. O mercado de lançamentos de whiskies no Brasil, nos últimos meses, está de parabéns. Além das expressões ora listadas, foram lançados outros como AnCnoc, Royal Lochnagar, Glenfarclas 10 e Heritage, High West Double Rye e Bourbon e Basil Hayden. Tive uma boa dificuldade de escolher os que figurariam em destaque neste post. Mas, aí está.

Se não quiser seguir meus conselhos, sem problemas também. “Eu não tô mandando, só tentando ensinar o caminho certo.

EAGLE RARE BOURBON

Este foi um dos desembarques mais antecipados deste ano. O Eagle Rare 10 anos é produzido pela Buffalo Trace Distillery, localizada em Frankfort, no Kentucky, e controlada pela Sazerac. Ele é, basicamente, o Buffalo Trace, mas mais maturado. O que resulta em maior complexidade e suavidade. Nos EUA, é um “allocated bourbon”. Quer dizer, um whiskey cuja própria destilaria determina quantidades máximas de compra para cada varejista ou grupo, tamanha é sua demanda.

O Eagle Rare conquistou mais de trinta prêmios na última década, incluindo alguns da Los Angeles International Wine & Spirits Competition, International Spirits Competition e International Wine & Spirits Challenge, três dos mais importantes campeonatos mundiais de bebidas. Ele foi o único whiskey a conseguir cinco medalhas de duplo ouro na San Francisco Spirits Competition, sendo que três delas foram concedidas em anos consecutivos – de 2003 a 2005.

O preço até assusta, de tão bom. R$ 280, mais ou menos. Um pouquinho mais caro do que bourbons que antes eram conhecidos como os mais sofisticados do Brasil.

UNION AUTOGRAPH EXTRATURFADO PX FINISH

O Union Autograph Extraturfado PX Finish é uma edição limitada, da linha Autograph, da destilaria Union, localizada em Bento Gonçalves – RS. O malte turfado é importado, mas o whisky é totalmente produzido no Brasil – da fermentação à maturação. Aliás, é essa maturação que é o maior destaque deste lançamento.

O Union Autograph Extraturfado PX Finish foi maturado por 8 anos em barris de carvalho americano de ex-bourbon, e depois finalizado por 18 meses em barris de vinho Pedro Ximenes. Sensorialmente, é vínico, com notas de frutas vermelhas, e apimentado. É um whisky bem complexo, que mostra que a indústria nacional do destilado evoluiu maravilhosamente bem nos últimos anos.

Está em média R$ 460 no site da Union e no Caledonia.

OLD PULTENEY 12 ANOS

O Old Pulteney 12 é um whisky bem conhecido de entusiastas, por conta de um perfil sensorial curioso. Ele é salgado, mas não é defumado. Foi recentemente lançado no Brasil pela Cia. Hibernia de Bebidas, formada por este Cão que vos fala, e o sr. Alexandre Tito, da Whisky Rio – ou seja, é uma autopromoção. Mas mesmo que não fosse, eu indicaria, porque acho fantástico.

A maturação do Old Pulteney 12 anos ocorre em barris de carvalho americano de ex-bourbon, tanto de primeiro quanto segundo uso. A maturação ocorre na destilaria, em armazéns próximos ao mar – o que, em teoria, lhe empresta o sabor salgado. Ou não. Porque há muitas hipótess que tentam explicar este perfil, mas nenhuma com grande exatidão.

Custa em média R$ 520.

LAPHROAIG QUARTER CASK

O Laphroaig Quarter Cask é, na verdade, um re-lançamento. Ele já veio para o Brasil, em meados de 2016. Na época, a Laphroaig contava também com o Select e o maravilhoso Laphroaig 18. O portfólio foi encolhendo, até sobrar apenas o 10 anos em terras tupiniquins. Agora, está novamente expandindo.

O maior diferencial do Laphroaig quarter cask é sua maturação. Após algum tempo nos barris tradicionais de ex-bourbon, o whisky é transferido para o chamado quarter cask, que é uma barrica menor. Isso aumenta a área de contato entre a madeira e o líquido, acelerando o processo de maturação. Além disso, sua graduação alcoólica é mais alta do que o 10 anos – 48%.

É um whisky defumado, adocicado e intenso. Está à venda em varejistas por aproximadament R$ 700.

ROYAL SALUTE LUNAR NEW YEAR

Há alguns anos, a Royal Salute fez uma mudança corajosa em seus whiskies. Antes, suas garrafas possuíam três cores distintas: verde, azul e vermelho. As cores representavam as jóias da coroa britânica – respectivamente, esmeralda, ametista e rubi. O líquido, entretanto, era o mesmo.

Isso mudou em 2019, quando a marca de luxo introduziu dois novos whiskies em sua linha. O Royal Salute Malts Blend – que ficou com a garrafa verde – e o Royal Salute Lost Blend, ou Peated Blend, que recebeu uma nova ampola preta. A expressão clássica de Royal Salute passou a ser vendida exclusivamente na garrafa azul, e rebatizada de Signature Blend. A vermelha ficou reservada para edições especiais limitadas.

O Royal Salute Lunar New Year é uma dessas edições. Com a belíssima garrafa vermelha, e com uma caixa ilustrada por Trajan Jia, famoso designer chinês, a edição comemora o novo ano lunar daquele país. O líquido é o mesmo do Signature Blend.

O Royal Salute Lunar New Year está à venda no LeCercle, e-commerce especial da Pernod Ricard (sem a caixa gigante, somente com a decorada à direita da foto)

THE MACALLAN HARMONY COLLECTION INTENSE ARABICA

O The Macallan Harmony Intense Arabica é a segunda edição da Harmony Collection da The Macallan. A linha tem como objetivo criar whiskies para harmonizar com elementos da gastronomia. A primeira edição foi o Rich Cacao, que foi desenvolvido para harmonizar com chocolate. Desta vez, a combinação é com café.

Sensorialmente, o The Macallan Harmony Intense Arabica traz notas de chocolate amargo e -adivinhem só – café. O final é longo, com canela e especiarias, mas pouco apimentado. Puro, é um single malt cujo perfil de sabor agradará a maioria dos bebedores. Quando combinado com uma xícara de café, o perfil frutado e adocicado é ressaltado. A combinação realmente traz à tona um sabor novo. E é essa experiência que torna o The Macallan Harmony Intense Arabica realmente interessante.

Está à venda em varejistas por aproximadamente R$ 2.000.

Macallan Harmony Intense Arabica

Dois anônimos apaixonados por café sentam-se no balcão de uma cafeteria. O combustível da humanidade é o café – disse o primeiro, olhando para a frente. Eu sei. Não se toma café para acordar, mas se acorda para tomar café, respondeu o outro. Com um sorriso no rosto, concluiu o primeiro: o nível tecnológico da sociedade seria muito inferior àquele que é hoje, não existisse café. Ao que ambos brindaram com suas xícaras, e com as duas mãos, levaram o líquido quente e marrom à boca.

A história acima é totalmente fictícia. Mas, certamente, ocorre todo dia com milhares de admiradores de café. No panteão das bebidas, o café está quase par a par com o whisky, em nível de veneração. Prova disso são as centenas de citações e frases espirituosas sobre café. Ainda que, suspeito, a cafeína ajude nessa parte. É possível escrever uma matéria inteira utilizando apenas lugares comuns sobre café.

E até uma série.

Café é, também, um combustível para a arte. O cantor Henry Rollings disse, certa vez, que o melhor acompanhamento para uma xícara de café é outra xícara de café. Este Cão e a The Macallan, porém, discordam. A melhor combinação é com o novo The Macallan Harmony Intense Arabica, que acaba de chegar oficialmente ao Brasil.

O The Macallan Harmony Intense Arabica é a segunda edição da Harmony Collection da The Macallan. A linha tem como objetivo criar whiskies para harmonizar com elementos da gastronomia. A primeira edição foi o Rich Cacao, que – caso você não tenha percebido pela falta de cafeína no sangue – foi desenvolvido para harmonizar com chocolate.

Para evitar qualquer confusão, é preciso fazer uma observação prévia. Nenhum dos whiskies da Harmony Collection usam infusões ou saborizantes para chegar ao seu perfil sensorial. Nem poderiam. De acordo com as regras da Scotch Whisky Association, para que seja considerada whisky, a bebida não pode usar quaisquer destes artifícios. O perfil de aroma e sabor destes whiskies é alcançado pela combinação de barricas de carvalho – tanto europeu quanto americano – que antes contiveram vinho jerez. O whiskymaker, neste caso, foi Steven Bremner.

De acordo com o website da The MacallanA maior parte do café da Etiópia é cultivada em Oromia. É daqui que vêm os grãos de café que serviram de inspiração para o nosso requintado single malt. Steven selecionou os grãos de café etíopes Harrar e Guji para a expressão (…), devido ao perfil de sabor robusto e intensidade do café. O café de Guji e Harrar oferece um Arábica selvagem único, com um sabor intenso e robusto.

Ainda de acordo com a destilaria, o The Macallan Harmony Intense Arabica é o resultado do conhecimento compartilhado de seis mestres, muitos deles, do mundo do café. São Kenean, gerente de exportação do grupo de café etíope Dukamo; Lisa Lawson, fundadora da Dear Green Coffee Roasters de Glasgow, Jonathan Morris, professor e historiador especializado na história do café, a barista Andrea Allen, do Onyx Coffee Lab, o artista em café Dhan Amang e Michele Posocco, especialista em papéis, e criadora da embalagem especial do whisky. A seguir, um vídeo sobre a harmonização e processo de criação da bebida.

The Harmony Collection Whisky Pairing, Inspired by Intense Arabica | The Macallan®

Aliás, falando na embalagem, assim como o Rich Cacao, as referências ao café não terminam no líquido. A caixa do The Macallan Harmony Intense Arabica é feita de materiais reciclados, dentre eles, cascas de café. A ideia aqui é reduzir o impacto ambiental, e embarcar em práticas mais sustentáveis para a indústria do whisky. Algo muito bem vindo, especialmente de uma destilaria que produz mais de vinte milhões de litros de new-make por ano, e está na vanguarda das tendências de produção na Escócia. Aliás, imagine a quantidade de café consumido pra chegar nesse ponto.

Sensorialmente, o The Macallan Harmony Intense Arabica traz notas de chocolate amargo e -adivinhem só – café. O final é longo, com canela e especiarias, mas pouco apimentado. Puro, é um single malt cujo perfil de sabor agradará a maioria dos bebedores. Quando combinado com uma xícara de café, o perfil frutado e adocicado é ressaltado. A combinação realmente traz à tona um sabor novo. E é essa experiência que torna o The Macallan Harmony Intense Arabica realmente interessante.

Infelizmente, por ser uma edição limitada, com números tímidos, e estampar o nome da The Macallan, o preço da criação é um pouco intimidador. No Brasil, mais de dois mil reais por uma garrafa. Se vale a pena? Muito mais do que um whisky agradável, o The Macallan Harmony Intense Arabica é uma experiência interessantíssima, tanto para os apaixonados pela destilaria quanto para todos aqueles, que, como este Cão, acordam para beber café. Quero dizer, whisky.

THE MACALLAN HARMONY INTENSE ARABICA

Tipo: Single Malt

Destilaria: The Macallan

Região: Speyside

ABV: 43%

Notas de prova:

Aroma: caramelo, café, chocolate amargo.

Sabor: chocolate, canela, café. Final longo, com mais café, e levemente frutado. Ao ser harmonizado com café, as notas de frutas vermelhas são ressaltadas.

High West Double Rye – Da Vontade

O homem livre é senhor da sua vontade e escravo somente da sua consciência, escreveu Aristóteles. Schopenhauer, no entanto, séculos depois, discordou. Para o alemão, o homem é escravo de sua vontade. Como um hamster, correndo desesperadamente em uma roda de exercícios em sua jaula. Tão logo um passo é dado, há necessidade de outro. O conjunto destes passos, entretanto, não chega a lugar nenhum. É um movimento elíptico eterno.

Nas palavras de Schopenhauer, “o desejo, por sua natureza, é dor. A sua realização traz rapidamente a saciedade; a posse mata todo o encanto; o desejo ou a necessidade de novo se apresentam sob nova forma. Senão, é o nada, é o vazio (…).” Saciado um desejo ou necessidade, outro surgirá. A sina é estar sempre insatisfeito.

Segundo o filósofo, uma das formas de saltar da roda dos desejos é pela apreciação das artes. A contemplação da arte é o bálsamo que aplaca o desejo. Se Schopenhauer se erguesse do túmulo atualmente, ficaria surpreso com Romero Britto e o mercado das artes. Coitado. Arrisco dizer – quiçá um pouco enviesado – que a redenção da vontade é beber.

Só que tem que ser com moderação, né Schopen?

Mas, mesmo aí, há o desejo. Aquele, de experimentar sempre algo melhor. Mais sofisticado, lapidado, mais intenso ou exclusivo. Por muito tempo, para os entusiastas de rye whiskey no Brasil, este desejo era quase impossível de ser satisfeito. Nosso mercado simplesmente interrompia a corrida do roedor quase antes de começar. Até agora.

A oferta de Rye Whiskey em nosso país é bem limitada. Por algum tempo, tivemos duas expressões da Wild Turkey – dentre, eles, o queridíssimo 101, que possuía 50,5% de ABV. Atualmente, temos apenas a versão básica, com graduação de 40%, e com distribuição limitada. Além deles, há também o Jim Beam Rye. Que é bem decente, mas com 51% de centeio em sua receita, e 40% de graduação alcoólica, é um whiskey dócil, que às vezes carece do punch de alguns outros rye mais sofisticados.

Este não é o caso do High West Double Rye. Sua mashbill é quase inteiramente composta por centeio – como eram os whiskies de centeio antigos, anteriores à lei seca norte-americana. Isso faz com que ele funcione maravilhosamente em coquetéis clássicos, como o Sazerac ou La Louisiane . Soma-se a isso sua graduação alcoólica de 46%, ótima para misturar e também bem boa para se beber puro. Aliás, no copo, ele apresenta também uma bela complexidade, com álcool bem integrado e personalidade.

O High West Double Rye, como o nome indica, não possui apenas uma mashbill. Mas duas. Ele é na verdade um blend entre ryes de destilarias distintas. O primeiro é um Rye Whiskey bem jovem da MGP, de aproximadamente dois anos, com 95% de centeio e 5% de malte. O segundo, um rye produzido pela própria High West, e maturado por aproximadamente 7 anos. Este, produzido inteiramente com centeio, sendo 20% maltado e 80% não maltado. A proporção dos dois ingredientes na mistura não é divulgada.

A High West – quase um western moderno

A High West, inclusive, tem uma história curiosa. Ela foi fundada em 2006 por David e Jane Perkins, um casal entusiasta de whisky. O local escolhido foi Park City, em Utah. David começou destilando, mas, logo, notou que havia um problema de fluxo. Não dos alambiques, mas de caixa mesmo. Seu whiskey precisava maturar, mas os boletos não esperavam.

Aconselhado por Jim Rutledge, ex-master distiller da Four Rouses, passou a comprar whiskies de diferentes destilarias e blendar, engarrafando-os sob sua marca. O Double Rye, por exemplo, era composto de whiskies de centeio da MGP e da Barton. Quando o estoque próprio chegou ao ponto de maturação desejado, David substituiu o componente da Barton por seu proprio rye whiskey. Que é cem por cento de centeio, maltado e não maltado!

Para aqueles que procuram um Rye Whiskey com excelente drinkability e personalidade, mas ao mesmo tempo com intensidade suficiente para coquetéis clássicos potentes, o High West Double Rye é perfeito. Ele é também a satisfação de uma necessidade – ou melhor, uma vontade – antiga. O acesso a whiskies americanos mais sofisticados no nosso mercado. Uma materialização muito bem vinda. Ao menos até outra aparecer para substituí-la.

HIGH WEST DOUBLE RYE

Tipo: Rye Whiskey

Marca: High West

Região: N/A

ABV: 46%

Notas de prova:

Aroma: mel, caramelo, menta.

Sabor: mentolado e apimentado. Caramelo e baunilha. Final longo, apimentado, com notas de cereais e mais herbal.

Union Autograph Extraturfado PX Finish

Sábado, sete da manhã. Meu filho se esgueira pela porta entreaberta do meu quarto, e chega bem pertinho da cama. Mas eu não sabia disso, porque eu estava inconsciente, dormindo. Ele me olha do fundo daquele olho branco, e sussurra bem baixinho “papai, papai“, enquanto cucuta meu braço com a delicadeza de uma pluma. Vagarosamente abro os olhos e dou um pulo de susto que quase me faz quicar no teto e voltar. Cruzes, rapaz, quase tenho uma parada cardiorespiratória achando que você é o capiroto!

papai, hoje tem festa junina da escola, vamos?“. Proferida a frase, começo a me convencer que aquilo é, de fato, um pesadelo e ele é o capiroto. Ou que eu morri e fui pro inferno. Olho pra baixo, pra ver se meu corpo está inerte na cama. Mas tudo que eu vejo é o travesseiro. É verdade. Não só acordei de madrugada no sábado, como tenho que acompanhar a criança nessa quermesse do diabo. Mas nem sempre foi assim. Quando eu era criança, também amava festa junina.

Mas, pra mim, hoje, festa junina – especialmente da escola – siginifica pegar fila pra comer um hot-dog mais ou menos, carregar uma porção de prendas inúteis que vão abarrotar minha casa, e depois descobrir vinte reais em dinheirinho de mentira no bolso. Que raiva. E nem vem me falar que a festa junina do seu clube é genial porque tem comida daquela parrilla argentina caríssima e show do Falamansa. Isso aí não é a festa junina padrão.

A original tem que dar azia de tanto comer doce de leite e ter um sugar rush do quentão ou vinho quente. Tudo isso embalado pelo som de algum cantor de churrascaria. E não tem muito como fugir. Junho tem dessas. Mas tem coisa boa também. Como, por exemplo, o Mês da Turfa, na destilaria Union.

Viva São João

O “mês da turfa” na destilaria da Union é a época do ano em que destilam cevada maltada turfada, que mais tarde será destinada aos rótulos enfumaçados da destilaria. De acordo com Luciano Borsato, diretor da Union, o aroma de cevada turfada pode, inclusive, ser sentido durante as visitações à Union este período. E é para marcar essa data que a destilaria lançou mais um whisky de sua linha Autograph. O Union Autograph Extraturfado PX Finish

O “mês da turfa” – ou qualquer período, pra falar a verdade – é uma prática comum na Escócia. “Isso porque os aromas da turfa são tão marcantes que, além de espalhar-se pelos ambientes, impregnam os equipamentos, exigindo uma profunda limpeza antes de seguir a rotina de produção”, explica Borsato. É lógico, então, concentrar a destilação em um único período.

O Union Autograph Extraturfado PX Finish foi maturado por 8 anos em barris de carvalho americano de ex-bourbon, e depois finalizado por 18 meses em barris de vinho Pedro Ximenes. Apesar de ser o primeiro whisky brasileiro assim- turfa e PX – a combinação é bem conhecida no exterior. Há, inclusive, rótulos bem conhecidos, como o Laphroaig PX. O que, de forma alguma, tira o mérito da Union de produzir e equilibrar um malte com esse perfil.

Talvez pareça preciosismo, mas cabe aqui uma digressão. PX, ou Pedro Xímenez, Jimenez ou qualquer outra variação com “s”, “z”, “x” ou “j”, é um vinho de sobremesa, produzido com ao menos oitenta e cinco por cento das uvas homônimas. Essas uvas tem, naturalmente, bastante açúcar. Então, chega-se a uma graduação alcoólica alta ainda com açúcar residual, resultando num vinho adocicado e licoroso. É bem diferente do Oloroso, que é seco.

Uvas PX

Sensorialmente, o Union Autograph Extraturfado PX Finish é vínico, com notas de frutas vermelhas, e incrivelmente apimentado. O aroma defumado está lá, mas bem amenizado se comparado ao Extraturfado de linha. O que não é nada surpreendente – barris de vinho tendem a reduzir a percepção da turfa, e a finalização do Autograph PX é longa até mesmo para padrões escoceses. Quem dirá, então, no Brasil, onde o clima é menos ameno.

Para aqueles que – como este Cão – adoram whiskies vínicos e defumados, o Union Autograph Extraturfado PX Finish é uma pedida certa. Aliás, bem que podiam ter uma dose na quermesse. Para um desses, não ligava de acordar cedo no sábado e ir na quermesse.

UNION AUTOGRAPH EXTRATURFADO PX FINISH

Tipo: Single Malt

Destilaria: Union – produzido na unidade de Veranópolis

País: Brasil

ABV: 46%

Notas de prova:

Aroma: adocicado, frutas vermelhas. Levemente enfumaçado.

Sabor: Frutado. Uvas passas. Final longo e apimentado, com fumaça e frutas vermelhas.

Eagle Rare 10 anos – Medalhista

Você sabe quem é Michael Phelps? Provavelmente sim. Ele é o nadador mais famoso do mundo, maior medalhista olímpico da história e atualmente detentor de quatro recordes mundiais, ainda que eu não tenha a mais frágil ideia de quais sejam.

Para você ter uma ideia, há uns anos, o Phelps estava empatado com a Índia – sim, o país – no número total de medalhas. Mas ele tinha bem mais de ouro. Considerando toda a história dos jogos olímpicos, Phelps conquistou mais medalhas do que Portugal, Chile, Bahamas e o Quirguistão, seja lá onde isso for.

No universo dos bourbons, Phelps poderia ser comparado ao Eagle Rare 10 anos, que acaba de desembarcar oficialmente no Brasil. Ele é um dos mais premiados whiskies americanos do mundo. O Eagle Rare conquistou mais de trinta prêmios na última década, incluindo alguns da Los Angeles International Wine & Spirits Competition, International Spirits Competition e International Wine & Spirits Challenge, três dos mais importantes campeonatos mundiais de bebidas. Ele foi o único whiskey a conseguir cinco medalhas de duplo ouro na San Francisco Spirits Competition, sendo que três delas foram concedidas em anos consecutivos – de 2003 a 2005.

E o Eagle Rare é mais bonito que o Phelps.

O Eagle Rare 10 anos é produzido pela Buffalo Trace Distillery, localizada em Frankfort, no Kentucky, e controlada pela Sazerac. Além dele, a destilaria produz uma variedade enorme de whiskies, como o George T. Stagg, E. H. Taylor, W. L. Weller, Sazerac Rye, a preciosíssima linha de Pappy Van Winkle e os Blanton’s e Stagg. Jr., já revistos por aqui. O motivo disso será explicado a seguir.

O Eagle Rare, aliás, foi um desses bourbons que forjou e reergueu a indústria de whiskey americano. Ele foi lançado na década de 70, época que muitos consumidores preferiam beber vodka. Seu criador foi Charles Beam, master distiller da Four Roses e sobrinho neto de James Beam. Charles apostou em criar um bourbon premium, para paladares (e carteiras) distintas. Durante muitos anos, o Eagle Rare foi produzido na Four Roses.

Pouco depois de uma década, em 1989, entretanto, a marca foi comprada pela Sazerac Company. A empresa buscava expandir seu portfólio, e o Eagle Rare – junto com o Benchmark Bourbon – eram escolhas óbvias. A Sazerac, porém, não possuía uma destilaria. Assim, o Eagle Rare passou a ser produzido por alguns anos, sob encomenda, na Heaven Hill. Em 1992, a Sazerac comprou a Buffalo Trace. E até hoje, é lá que está localizado o ninho da águia.

Em 2008 ocorreu outro capítulo interessante na história do Eagle Rare. O caso virou até capítulo de uma série da Netflix, chamada Roubos Inacreditáveis. Gilbert Curtsinger, funcionário da Buffalo Trace, subtraiu e vendeu no mercado secundário quantidades copiosas de Eagle Rare – junto com outros produtos da Buffalo Trace, como Pappy Van Winkle. O homem chegou a roubar barris inteiros – 20 deles. O prejuízo estimado foi de mais de 100 mil dólares.

E bebeu algumas garrafas também

A composição da mashbill do Eagle Rare talvez tenha mudado ao longo do tempo. Atualmente, ela é conhecida simplesmente como a Buffalo Trace #1, e é secreta. Porém, sabe-se que há pouco centeio, resultando em um destilado adocicado e com poucas especiarias. É a mesma receita de mosto do querido Buffalo Trace. O que muda, aqui, é o tempo de maturação, que, como o nome indica, é dez anos.

O Eagle Rare é um whiskey muito equilibrado, relativamente adocicado, com notas de açúcar mascavo e caramelo. O álcool está completamente integrado e é pouquíssimo agressivo. E ainda que sejam semelhantes, o Eagle Rare é notadamente mais elegante e complexo que o Buffalo Trace tradicional. Se tiver a sorte de encontrar essa ave, não deixe de experimentar. Nem o Phelps deixaria passar.

EAGLE RARE 10 ANOS

Tipo – Bourbon Whiskey

ABV: 45%

Destilaria: Buffalo Trace

País: Estados Unidos

Notas de prova

Aroma: adocicado, com caramelo e baunilha.

Sabor: doce, com açúcar mascavo, caramelo, baunilha, trufas de caramelo. Final com mais açúcar mascavo e um pouco de especiarias. O alcool está completamente integrado e mal é percebido.

Onde comprar: Caledonia Bar, por WhatsApp: 11 93022-2291

Sal no Whisky – um complô sensorial

Eu não me lembro da primeira vez que vi o oceano. Nem deveria. Provavelmente tinha menos de um ano de idade. Mas bastava chegar perto de algo com o mesmo aroma, que minha memória remetia, imediatamente, àquela praia apinhada de guarda-sóis, com a rebentação das ondas no fundo. O cheiro de mar é inconfundível.

Muitos anos mais tarde, li uma matéria que dizia que o cheiro de mar não era sal. Mas, sim, um composto químico, chamado dimetilsufeto (DMS). É uma substância liberada por bactérias marinhas e plâncton. Para criaturas marinhas, tem cheiro de almoço, porque é desses microorganismos que os peixes menores se alimentam. E os maiores se alimentam dos menores. Não é poético, não tem água de coco, raspadinha e castelos de areia. Ao menos, não para os peixinhos convertidos em refeição. Mas é o que é.

Agora, imagine tentar identificar os aromas de certo whisky, e se deparar com essa memória do oceano. Soa estranho, e na verdade é mesmo. Mas, faz todo sentido. Muitos whiskies possuem um sabor salgado. É o caso, por exemplo, do Old Pulteney, recentemente lançado no Brasil. E muitos outros, como Clynelish, Oban e Talisker. Como um bom whisky geek, indaguei – e pesquisei – sobre a origem desse delicioso aroma.

Vamos nadando devagar

Vamos começar com o básico. Precisamos de sal – ou melhor, de sódio – para sobreviver. O sódio, convertido como vilão da boa alimentação, quando em quantidades razoáveis, auxilia numa porção de funções corporais, como a rigidez muscular e a realização de sinapses. Um ser humano relativamente saudável e de porte normal possui em torno de 92 gramas de sódio em seu corpo. Número que deve pular para uns mil e duzentos depois de comer miojo ou chuchar o sushi no shoyu – numa aliteração quase onomatopeica – naquele rodízio.

Eu, depois de saber que miojo faz mal

Quando bebemos água, nosso corpo elimina parte desse sódio, que deve ser reposto pela alimentação. Por isso, é importante que detectemos – e apreciemos – o sabor salgado. O sal é detectado, especialmente, na língua, juntamente com outros sabores básicos, como doce e amargo. Faz parte de nosso arsenal de sobrevivência. Salgado é bom. Doce também, porque traz energia. Amargo, talvez nem tanto. Pode denotar algo venenoso ou putrefato. O que explica o desvio de caráter de muita gente que bebe café puro. Eu incluso.

E no whisky?

Em teoria, num mundo acadêmico onde um trem de comprimento desprezível se choca com um caminhão de massa desprezível, não há sal no new-make spirit (o destilado sem maturação). Isso porque o processo de destilação é um dos mais eficientes para se dessalinizar líquidos. O sódio não evapora junto com a água, e fica preso na base do pote. Pense, por exemplo, em água destilada. Sensorialmente, também não tem muito sal. Entretanto, após alguns anos, ele aparece. É notável na língua, a ponto de ser descritivo sensorial de diversos maltes. Como, por exemplo, Old Pulteney, Talisker e Clynelish.

E eu sei o que você está pensando. Que essas três destilarias têm uma característica geográfica em comum. Estão, todas, bem pertinho do mar. E que isso explica por que tem sal no whisky, até porque você leu no rótulo do Talisker que ele é “made by the sea” (feito ao lado do mar), então isso deve ser relevante para alguma coisa, não só pra turma que pesca lá do lado.

Nessa versão romântica – eivada de uma verdade relativa – o sal está no whisky por causa da maturação à beira mar. O revolto oceano que banha a Escócia, com suas abespinhadas ondas que pulverizam sal no ar, criam um verdadeiro orvalho marinho. Ele penetra nos barris silenciosamente, ano após ano, transferindo sua alma iodada ao espírito. É bonito, é poético. Mas não explica como whiskies que foram maturados centenas de quilômetros da costa retém o mesmo sabor. Caol Ila, por exemplo. E nem como whiskies maturados à beira mar, como Glenmorangie, não possuem esse sabor.

Glenmorangie e o oceano, ao fundo

E aí, vem a ciência. Em um artigo publicado na Whisky Magazine, o jornalista Peter Woods aponta um fato muito curioso. A Universidade de Aberdeen estudou a concentração de sódio em 31 single malts diferentes. A concentração variou entre 3 e 23 miligramas por litro. Algo semelhante à concentração de qualquer água potável. É uma concentração que seres humanos nem sentem. E, incrivelmente, o whisky com maior concentração de sódio foi Glenfarclas – uma destilaria no coração de Speyside, que tem zero influência marítima.

Então talvez não seja sódio

E quiçá, aqui, eu esteja me aligeirando. Mas, se há sabor de sal em whiskies que tem pouco sódio, e se tem muito sódio em whiskies que não tem nenhum sabor salgado (vide Glenfarclas), talvez o sal que sentimos na língua não seja sal. Ou melhor, não seja sódio. Mas sim, algum outro composto químico, proveniente de algum processo – ou vários – de produção. Podem até ser vários. Worm tubs, que trazem aroma sulfúrico, aliado à cevada turfada, que, per se, já possui um sabor iodado e medicinal.

Aliás, worm tubs. Ou, melhor conhecidas aqui no país da cachaça como serpentinas de resfriamento. É um tubo de metal em forma de serpentina, que serve para resfriar o new-make spirit do whisky depois que ele passa pelo lyne arm do alambique. Na Escócia, poucas destilarias as usam. O método mais popular de arrefecimento lá é o shell-and-tube, que traz menos interferência sensorial para o destilado final. Mas há aquelas que ainda conservam as serpentinas.

Worm tub

A condensação do new-make nelas pode trazer um aroma mais carnudo, ou sulfúrico. Sulfúrico como (pausa dramática) dimetilsulfeto (DMS). Exemplos são Clynelish, Mortlach, Talisker e Old Pulteney. Então, será que o sal que está na nossa língua ao tomar uma bela dose de Old Pulteney não seja, na verdade, DMS? E por conta de memória sensorial, associemos este aroma ao mar, e consequentemente, ao sal?

Na verdade, o assunto aqui é um pouco mais geek e complexo. E tudo bem se você quiser pular esses próximos parágrafos e seguir pro título seguinte. Só os escrevi porque sinto-me na obrigação de concluir um pensamento. Eu prometo que só terá informação a mais (como foi o papo que gerou essas informações*), mas você continuará entendendo (ou não) o que estou a dizer. De verdade, se ficar chato, pula e vai pro próximo capítulo! Mas vamos lá:

Num estudo de Akira Wanikawa e Toshikazo Sugimoto para o Technical Development Center da Nikka Whisky Distilling Co., “whisky é produzido pelos processos de malteação, cozimento, fermentação, destilação e maturação. Durante esses processos, diversos compostos sulfúricos são formados e reduzidos. Há diversos apontamentos de formação de DMS durante a malteação” (…) adicionalmente, Além disso, sulfeto de hidrogênio e etanotiol podem ser transformados quimicamente em metanotiol. A partir do metanotiol, três alquilsulfetos (DMS, DMDS e DMTS) podem ser produzidos por reação química, enquanto o S-metil tioacetato pode ser formado por leveduras.

E talvez você esteja indagando, ou não, sobre o poder de remoção de compostos da destilação. Mas, acontece aqui um fato curioso. O cobre remove compostos de enxofre, mas também reagem com sulfeto de hidrogênio e tióis alquilos, que são os precursores do DMDS e DMTS. Ou seja, há a formação de compostos que podem trazer sabor salino durante a destilação.

Durante a maturação, os compostos se comportaram distintamente. DMTS não mudou. DMDS reduziu lentamente, enquanto o DMS reduziu drasticamente. Isso explica, de certa forma, a razão de whiskies mais maturados trazerem menos impressão de sal, como é o caso dos Old Pulteney 12 e 18. Pronto, vamos voltar ao normal.

Complica mais porque tá fácil

A discussão sobre o sal, inclusive, leva a uma mais complexa. Sobre terroir. De acordo com Mark Reynier, ex-CEO da Bruichladdich “há uma diferença entre os Bruichladdich maturados na ‘mainland’ escocesa, e na ilha (de Islay), baseado em percepção sensorial (…) desde que a Murray McDavid comprou a Bruichladdich em 2000, o estoque foi repatriado para Islay.”. Para Robert Ricks, da Laphroaig, é a mesma coisa “a gente tem Laphroaig maturado na ‘mainland’, e ele ainda retém um sabor iodado, mas é bem mais gentil“. Para eles, a maturação em Islay é responsável em boa parte pelo sabor salgado.

Bem pertinho

Outro ponto a se considedrar é o tempo. Novamente, em um mundo em que um ônibus de massa desprezível atravessa uma estrada de atrito desprezível, whiskies mais maturados deveriam trazer notas mais salinas do que seus pares mais jovens. Mas não é o que acontece. O pico sensorial salgado está lá pelos doze anos. Depois, ele se torna mais brando. Isso pode acontecer porque a influência do barril supera o aroma salino. Mas, também, pode ser uma pista que aponte para algo inconclusivo: talvez o sabor salgado venha do DMS.

E provavelmente é isso. Como tudo na ciência de produção de whisky, é a conjunção de diversas técnicas e características que faz daquele produto o que ele é. Raramente há uma única explicação. No caso do sal, talvez seja a aliança entre a poética maresia, os worm tubs, o DMS e a turfa. Ou talvez não seja nada disso. Mas só nosso cérebro, evocando memórias não vividas daquela dose ao lado da fogueira, em uma casa erigida sobre um penhasco ao lado do mar. Janelas fechadas, com sal cristalizando em suas bordas, e aquele maravilhoso aroma de ozônio no ar.


* Obrigado fellow geeks, Barman de Apartamento, Devore Meu Cérebro, Doutor Whisky e Whisky Justificado

Frisco Cocktail – Mergulho

Quando eu tinha uns vinte e poucos anos, decidi, durante uma viagem, que ia tentar mergulhar. Na verdade, não decidi. Fui delicadamente coagido pela Cã, que, àquela altura, era minha recém consorte, e eu faria tudo para agradá-la. Na vertical, eu não fazia o menor sentido. Snorkel na boca, calção florido, pés de pato. Não poderia estar menos à vontade em uma camisa de força. Na horizontal, cabeça no mar e costas ao sol, tudo fez sentido.

Mergulhar de snorkel era bem legal. Dava para ver um pequeno recife de corais e peixes que deslizavam graciosamente pelas cores do leito marítimo. Passei uma boa meia-hora lá – ou talvez umas três – e prometi que repetiria. Até, claro, descobrir que minhas costas haviam adquirido um curioso tom salmão, e ardiam ao primeiro toque. E, também, que meu ouvido, ao menor sinal de água, tornava-se uma enorme bexiga capaz de explodir, por pura pressão, meu canal auditivo.

Pelo menos nao dormi e acordei assim

No final das contas, adorei e destestei a experiência ao mesmo tempo. Mas descobri que, às vezes, não é preciso muito esforço para descobrir algo completamente novo. Só uma certa boa vontade e uma natural inconsequência. Que, reconheço, é bem mais fácil de ostentar às duas décadas de idade do que quase às quatro.

Com coquetelaria, a história é meio igual. Muitos de nós ficamos sempre nos mesmos. Negroni, Boulevardier, Gim-Tônica, Whiskey Sour, Manhattan, Dry Martini e, talvez mais recentemente, Fitzgerald. Mas acontece que cada um destes drinks representa uma pequena ilha num arquipélago de possibilidades. Troque o xarope de açúcar de um Old Fashioned, e você terá um fancy. O mesmo acontece com os sours – que talvez estejam par a par com os martinis em variações. Uma dessas é o Frisco, coquetel tema deste post.

O Frisco leva, basicamente, Rye Whiskey, Benedictine, Limão Siciliano e Limão Tahiti. Exceto talvez pelo Benedictine – que está em diversas outras receitas de clássicos – é um dos drinks obscuros a figurar nestas páginas com os ingredientes mais acessíveis.

De acordo com o website Tuxedo No.2, há duas versões de Frisco. O Frisco, e o Frisco Sour. O Frisco é basicamente rye com um xabláu de Benedictine e uma rodela de limão. O Frisco Sour, entretanto, leva suco de limão em sua receita, e tem as medidas um pouco mais definidas. O Frisco (não sour) apareceu pela primeira vez no livro World Drinks and How to Mix Them, de William Boothby, em 1934. Depois, ganhou diversas mudanças. Dentre elas, a conversão para um sour.

Uma dessas versões é a do bar Employee’s Only, de Nova York. Ela usa dois tipos diferentes de limão, para regular a acidez e trazer complexidade. Mas, você pode testar da forma que mais lhe agradar. Lembre-se que quanto mais ácida for a fruta, mais Benedictine será usado. Este Cão não aconselha trocar o rye por bourbon neste caso. O drink carece da pegada herbal, mentolada, dos rye.

Employees Only

Assim, caros leitores, sem maiores mergulhos, vamos à receita. Equipem-se com seus snorkels etílicos para uma submersão nos sabores cítricos e adocicados do Frisco. Ou Frisco Sour.

FRISCO

INGREDIENTES

  • 60ml Rye (use Jim Beam Rye. Vai dar certo, confie na minha visão)
  • 30ml Benedictine
  • 45ml suco de limao tahiti
  • 15ml suco de limão siciliano
  • Parafernália para bater

PREPARO

  1. Adicione tudo numa coqueteleira com bastante gelo e bata vigorosamente
  2. Adicione a uma taça gelada
  3. Se estiver se sentindo sofisticado, decore com uma cereja maraschino ou um twist de limão.

AnCnoc 12 anos – Homonimos

Na escola, eu tinha um amigo que se chamava Christiarley. Ninguém acertava a fonética de primeira. Por outro lado, o nome trazia certa singularidade. Nomes são uma coisa engraçada, alguns são terrivelmente comuns, e exigem que seu detentor compense pela personalidade. Outros são tão únicos que precedem qualquer juízo. Isso inclusive, acontece muito no setor de entretenimento.

Imagine tentar virar um grande artista, e, repentinamente, descobrir que alguém que já chegou lá tem o mesmo nome que você. Foi o caso de Michael Douglas e Michael Keaton, que, por acaso, se chama também Michael Douglas. Pode acontecer também de você ser um jogador de golfe profissional, e todo mundo te pedir autógrafo por causa de seu papel em Parks & Recreation. Aconteceu com o par de Adam Scotts.

Nem o mundo do whisky está isendo destes homônimos. O mais famoso caso é do Michael Jackson. Não, não o rei do pop. Mas o estudioso de cervejas e destilados, e um dos maiores especialistas em whisky de todos os tempos. Foram os estudos de Michael Jackson que levaram a Scotch Whisky Association a delimitar as áreas de produção de whisky na Escócia. Quiçá, ao som de thriller.

Michael Jackson: também com gravata personalizada

Há também outro par famoso de homônimos. Dessa vez, não de gente. Mas destilarias. Knockando e Knochdhu. Ainda que não sejam exatamente iguais, dá para notar uma similaridade um pouco desconfortável. Foi por isso que a Knockdhu, fundada em 1894, resolveu mudar o nome de seus single malts em 1993 para AnCnoc.

E é seu representante com doze anos de maturação – o AnCnoc 12 – que acaba de desembarcar no Brasil, também pela Cia. Hibernia de Bebidas, formada por este Cão que vos fala, e o sr. Alexandre Tito, da Whisky Rio . A destilaria pertence também à Inver House, empresa escocesa que detém também Pulteney, Balblair, Speyburn e Balmenach – além de uma série de blends distintos.

A Knockdhu está localizada no vilarejo de Knock, em Aberdeenshire, bem próximo da fronteira com a região de Speyside – veja aí, culpa do Michael Jackson. Entretanto, ele é considerado, geograficamente, um whisky das Highlands. Sensorialmente, o AnCnoc 12 é leve e floral no nariz, e tem um sabor adocicado com um leve cítrico, e uma textura que este cão poderia definir como amanteigada. Essa é, inclusive, a parte mais legal de seu perfil sensorial.

O Ancnoc 12 é feito utilizando métodos bem tradicionais. A água vem de quatro fontes em Knock Hill. O malte usado é “Concerto”, não turfado. A mostura acontece num mash tun de inox. Sâo cinco toneladas por vez, numa cocção que leva oito horas. A fermentação é feita em washbacks de pinho de 22.500 litros, e leva em torno de 75 horas.

Já a destilação emprega dois alambiques – um wash e um spirit still apenas. Sâo altos, com um domo de refluxo em sua base, para trazer mais leveza ao destilado. Para compensar, entretanto, utilizam serpentinas de resfriamento – algo incomum na Escócia – que trazem mais peso e são, provavelmente, as responsáveis pelo sabor residual amanteigado.

Alambiques da Knockdhu

A maturação do AnCnoc 12 anos acontece em barricas de carvalho americano de ex-bourbon, tanto de primeiro uso quanto de reuso. A expressão também emprega algumas barricas de ex-jerez, para trazer mais complexidade.

Você não precisa se chamar Christiarley e nem ser um grande especialista em whiskies, para gostar do AnCnoc 12 anos. Ele é aquele tipo de malte que agrada tanto entusiastas quanto iniciantes. É complexo, leve e distinto. Para cem por cento de aproveitamento, deguste ao som de Michael Jackson. Não, não o especialista em whiskies. O rei do pop.

ANCNOC 12 ANOS

Tipo: Single malt

Destilaria: Knockdhu

Região: Highlands

ABV: 40%

Notas de prova:

Aroma: Mel, baunilha, castanhas caramelizadas.

Sabor: Frutado, levemente cítrico, com mel, baunilha e capim santo. O final é adocicado e amanteigado.

Old Pulteney 12 anos – Aurora Boreal

Há milhares de anos, vikings e indígenas na América do Norte observavam o céu mesmerizados. Uma cortina de luz pulsante e sinuosa se apresentava no horizonte. Era como se um grande rio entremeado por montanhas se estendesse pelo céu, brilhando numa paleta de cores que variava do verde claro ao roxo, com vividez impressionante. Inuítes, Chipewyan e Vikings tinham nomes diferentes para aquele fenômeno, que hoje conhecemos como Aurora Boreal.

A explicação também era diferente. Os Nórdicos acreditavam que as luzes vinham das cintilantes armaduras das Valquírias, que cavalgavam no congelante céu do inverno. Atualmente, entretanto, a ciência já desvendou o mistério. São partículas carregadas de vento solar, que colidem com a atmosfera da terra e produzem este maravilhoso efeito. Curiosamente ou não, em minha opinião, a explicação moderna é muito mais bela e poética.

Mas há centenas de mistérios ainda não resolvidos, mesmo sob o excruciante olhar da ciência. O mecanismo de Antikythera, o chupacabras, o manuscrito Voynich e os raios-bola por exemplo. E claro que o mundo do whisky não sairia ileso desta. Ele tem seus próprios mistérios e segredos. Um deles envolve uma marca que acaba de desembarcar no Brasil. Old Pulteney. A indagação sobre a origem de seu perfil salino, mas não defumado, gera controvérsia entre os entusiastas da bebida.

Lá tem também Aurora Boreal

Vamos falar primeiro do whisky tema desta prova – o Old Pulteney 12 anos, que acaba de chegar ao Brasil pela Cia. Hibernia de Bebidas, formada por este Cão que vos fala, e o sr. Alexandre Tito, da Whisky Rio.

Sobre o Pulteney 12, vamos começar por seu perfil sensorial. Ele é um whisky relativamente seco, com notas salinas, mas não defumado. Por conta disso, a nota proveniente dos barris de carvalho americano se ressalta, com bastante baunilha e caramelo salgado. É um whisky encorpado e intenso, com um leve aroma sulfúrico.

A nota de enxofre vem da destilação. Os alambiques de primeira destilação da Pulteney tem uma espécie de bulbo, quase tão grande quanto sua base, para incentivar refluxo, e topo reto. O lyne arm sai da lateral do alambique. Já os de segunda destilação contam com purificadores e condensadores em forma de serpentina, que adicionam oleosidade e este curioso perfil um pouco malcheiroso.

A maturação do Old Pulteney 12 anos ocorre em barris de carvalho americano de ex-bourbon, tanto de primeiro quanto segundo uso. A maturação ocorre na destilaria, em armazéns próximos ao mar – o que, em teoria, lhe empresta o sabor salgado. Ou não. Porque há muitas hipótess que tentam explicar este perfil, mas nenhuma com grande exatidão.

A Pulteney Distillery fica localizada em Wick, uma pequena cidade portuária no norte da Escócia – tão ao norte que, provavelmente, os antepassados tiveram a oportunidade de se mesmerizar com a aurora boreal, em algum momento. A destilaria fica a aproximadamente dois quarteirões grandes da avenida (se assim puder ser chamada) que acompanha o mar. Esta avenida fica na parte de baixo de um aterro – e o resto da cidade, inclusive a Pulteney – em uma posição elevada, acima.

Alambiques da Pulteney

Este descritivo é importante para tentar desvendar o mistério salino. Soma-se a isso outra pista importante. Os Old Pulteney mais maturados, como o 18 anos, são menos iodados do que os mais jovens. É contraintuitivo – se a salinidade vem da maturação, ela deveria aumentar à medida que o whisky envelhece, e não diminuir, como sensorialmente parece. O que sugere que, talvez, o sal – ou qualquer coisa que traga este sabor salino – venha de algum processo anterior. O curioso é que o new-make da Pulteney não é salino.

Mas aqui, a subjetividade também compromete qualquer conclusão. À medida que os whiskies maturam, a influência da barrica aumenta. A combinação de barricas utilizada no Old Pulteney 18 anos é, também, diferente daquela usada em seu irmão mais jovem. Então, talvez, a impressão menos iodada se deva, na verdade, à maior influência da madeira, que se sobrepõe à influência salina nos barris, mesmo que ela ocorra constantemente.

Pelo princípio investigativo da Navalha de Ockham – que determina que a explicação mais simples geralmente é a correta – a origem misteriosa do sal no Old Pulteney 12 anos vêm da maturação. Entretanto, há outras teorias.

De acordo com uma excelente matéria da Whisky Magazine, é possível que o sabor iodado esteja lá de começo, mas esteja imperceptível até que suas arestas mais pontiagudas sejam aparadas pela maturação. A água usada na diluição do whisky, tanto antes do preenchimento dos barris quanto do engarrafamento pode também ser outra explicação. Ainda mais considerando que tais sabores podem ser ressaltados mais tarde, pela maturação.

Ainda que a maturação seja a explicação mais plausível, a questão segue inconclusiva. Só há uma certeza nessa história toda. Que o Old Pulteney 12 anos é um whisky interessantíssimo e delicioso, com personalidade e distinção – e para um entusiasta, quase tão impressionante quanto observar a bela dança da aurora boreal em um certo vilarejo ao norte da Escócia.

OLD PULTENEY 12

Tipo: Single Malt Whisky

Destilaria: Pulteney

Região: Highlands (Wick)

ABV: 40%

Notas de prova:

Aroma: herbal e iodado, com algas marinhas.

Sabor: Adocicado, com baunilha. Herbal, levemente apimentado. Algas marinhas. Final longo e salgado.

World Whisky Day – Whiskies do Mundo

Eu nem ia fazer este post, porque já fiz três vezes. Mas senti, num último minuto, que a data não podia passar em branco. Afinal, é um dos dias mais importantes do ano, que supera muito o natal, e nem se compara com o dia dos namorados. Ontem foi o World Whisky Day. Se você duvida da relevância da efeméride, só reflita: se você esquecer o dia dos namorados, provavelmente sofrerá retaliações nefastas. Esqueça o WWD e nada ocorrerá. O whisky é compreensivo e companheiro.

O World Whisky Day foi criado em 2012 por um rapaz chamado Blair Bowman. A ideia de Blair era simples: criar um dia para que as pessoas pudessem se encontrar, comemorar e descobrir mais sobre a bebida nacional da Escócia. A ideia não só deu certo, como decolou. Atualmente, o World Whisky Day é um dos dias mais importantes do ano para a cultura do whisky, juntamente com o segundo dia do whisky o International Whisky Day. Aliás, pense novamente. Dia dos namorados tem um só. Whisky tem dois. E não, Valentine’s Day é coisa de gringo, não conta.

Há uns anos, indiquei cinco whiskies para se beber com os amigos. Agora, vou indicar mais cinco, de cinco países diferentes, e com perfis sensoriais bem distintos, pra mostrar toda fauna que é o mundo do whisky. Pra evitar brigas, tirei a Escócia, mas sinto que este foi um esforço de futilidade, uma vez que Irlanda e EUA já causam bastante polêmica. Vamos à lista.

Irlanda – Jameson / Redbreast 12

É, tem dois. É que o Jameson é o único whisky irlandês a desembarcar oficialmente em nossas terras. Ele e seu irmãozinho IPA. Jameson – como você já deve saber – é um whisky leve, floral e extremamente bebível. Funciona bem em coquetéis, e, convenhamos, considerando seu preço, também é bem gostoso de se beber puro.

Mas acontece que a Irlanda tem muito mais a oferecer. E aí, minha indicação é o Redbreast. Ele é um Single Pot Still, uma categoria própria da irlanda, que define whiskies destilados em alambiques de cobre em uma única destilaria, mas que utilizam tanto cevada maltada quanto não maltada em seu mosto. O Redbreast 12 Cask Strength, da foto, além disso, é maturado em barris que antes contiveram vinho jerez e engarrafado sem diluição, o que lhe traz notas de frutas vermelhas, uvas passas e especiarias.

Brasil – Lamas The Dog’s Bollocks

Ninguém disse que essa lista tinha que ser imparcial. O Lamas The Dog’s Bollocks, como o nome sugere, é uma parceria entre a destilaria Lamas, de Minas Gerais, e este infame blog.

Nosso Dog’s Bollocks é um single malt triple-cask finished. A primeira expressão da Lamas a usar malte turfado, maturado em barris de ex bourbon e finalizado em barris de double IPA, combinado com malte não defumado finalizado em barris de rum, e malte defumado maturado em barricas que foram temperadas na destilaria com vinho moscatel brasileiro. Foram produzidas, ao todo, 500 garrafas. Desta vez, sem números individuais, para não dar briga. Ainda tem a venda no Caledonia, por pouco tempo.

Estados Unidos – Woodford Reserve Distiller’s Select

Woodford Reserve é um bourbon whiskey clássico, com uma mashbill de 72% milho, 18% centeio e 10% cevada maltada. Como todo bourbon, é maturado em barricas virgens e altamente torradas de carvalho americano. O Distiller’s Select é produzido pela destilaria Woodford Reserve, do Kentucky. Sua proprietária é a Brown-Forman Corporation, a mesma responsável pela marca de whiskey mais vendida no mundo, a Jack Daniel’s.

Mas as semelhanças terminam aí. O Woodford é um bicho bem diferente. É um bourbon extremamente equilibrado, com álcool bem integrado e muito versátil. É uma delícia para se beber puro, e fica ainda melhor em coquetéis. Aliás, tá em dúvida sobre qual bourbon usar em um drink que acabou de descobrir? Vá de Woodford.

Japão – Hakushu 12 / Akkeshi

Eu podia indicar só o Hakushu. Mas queria um whisky extremamente defumado. E se eu fizesse isso, não estaria mostrando a tamanha diversidade sensorial que tem o Japão. De toda forma, os whiskies da House of Suntory são os únicos japoneses a desembarcar oficialmente em nosso país. O Hakushu 12 é levemente defumado e traz notas florais. É equilibrado e muito elegante.

Já o Akkeshi não é. Akkeshi é uma destilaria localizada em Hokkaido, fundada em 2013. Seus whiskies são quase todos extremamente alcoolicos – de 50% pra cima – e bastante turfados. Algo bem incomum no Japão, que produz whiskies equilibrados, sem arestas pontudas. Os whiskies da Akkeshi possuem tiragem limitada, e normalmente fazem referência à época do ano em que foram engarrafados. Além de deliciosos, são quase um testemunho das constantes variações climáticas na na ilha que a abriga.

Austrália – Starward Tawny Port

A Starward é uma destilaria australiana, localizada em Melbourne. Ela foi fundada em 2007 por David Vitale, que abandonou a Lark para fundar sua própria marca. O Starward Tawny Port é um single malt edição limitada, que foi maturado exclusivamente em octaves de vinho do porto Tawny. Octaves são barricas ainda menores que quarter casks – metade delas – o que acelera bastante o processo de extração dos compostos da madeira e da bebida lá abrigada.

O Starward não está oficialmente à venda em nosso país. E pra ser sincero, não é muito fácil de achar lá fora também. Mas, com um perfil sensorial que remete a figos em calda, cravo e pimenta do reino, fica difícil não indicá-lo.