World Whisky Day – Whiskies do Mundo

Eu nem ia fazer este post, porque já fiz três vezes. Mas senti, num último minuto, que a data não podia passar em branco. Afinal, é um dos dias mais importantes do ano, que supera muito o natal, e nem se compara com o dia dos namorados. Ontem foi o World Whisky Day. Se você duvida da relevância da efeméride, só reflita: se você esquecer o dia dos namorados, provavelmente sofrerá retaliações nefastas. Esqueça o WWD e nada ocorrerá. O whisky é compreensivo e companheiro.

O World Whisky Day foi criado em 2012 por um rapaz chamado Blair Bowman. A ideia de Blair era simples: criar um dia para que as pessoas pudessem se encontrar, comemorar e descobrir mais sobre a bebida nacional da Escócia. A ideia não só deu certo, como decolou. Atualmente, o World Whisky Day é um dos dias mais importantes do ano para a cultura do whisky, juntamente com o segundo dia do whisky o International Whisky Day. Aliás, pense novamente. Dia dos namorados tem um só. Whisky tem dois. E não, Valentine’s Day é coisa de gringo, não conta.

Há uns anos, indiquei cinco whiskies para se beber com os amigos. Agora, vou indicar mais cinco, de cinco países diferentes, e com perfis sensoriais bem distintos, pra mostrar toda fauna que é o mundo do whisky. Pra evitar brigas, tirei a Escócia, mas sinto que este foi um esforço de futilidade, uma vez que Irlanda e EUA já causam bastante polêmica. Vamos à lista.

Irlanda – Jameson / Redbreast 12

É, tem dois. É que o Jameson é o único whisky irlandês a desembarcar oficialmente em nossas terras. Ele e seu irmãozinho IPA. Jameson – como você já deve saber – é um whisky leve, floral e extremamente bebível. Funciona bem em coquetéis, e, convenhamos, considerando seu preço, também é bem gostoso de se beber puro.

Mas acontece que a Irlanda tem muito mais a oferecer. E aí, minha indicação é o Redbreast. Ele é um Single Pot Still, uma categoria própria da irlanda, que define whiskies destilados em alambiques de cobre em uma única destilaria, mas que utilizam tanto cevada maltada quanto não maltada em seu mosto. O Redbreast 12 Cask Strength, da foto, além disso, é maturado em barris que antes contiveram vinho jerez e engarrafado sem diluição, o que lhe traz notas de frutas vermelhas, uvas passas e especiarias.

Brasil – Lamas The Dog’s Bollocks

Ninguém disse que essa lista tinha que ser imparcial. O Lamas The Dog’s Bollocks, como o nome sugere, é uma parceria entre a destilaria Lamas, de Minas Gerais, e este infame blog.

Nosso Dog’s Bollocks é um single malt triple-cask finished. A primeira expressão da Lamas a usar malte turfado, maturado em barris de ex bourbon e finalizado em barris de double IPA, combinado com malte não defumado finalizado em barris de rum, e malte defumado maturado em barricas que foram temperadas na destilaria com vinho moscatel brasileiro. Foram produzidas, ao todo, 500 garrafas. Desta vez, sem números individuais, para não dar briga. Ainda tem a venda no Caledonia, por pouco tempo.

Estados Unidos – Woodford Reserve Distiller’s Select

Woodford Reserve é um bourbon whiskey clássico, com uma mashbill de 72% milho, 18% centeio e 10% cevada maltada. Como todo bourbon, é maturado em barricas virgens e altamente torradas de carvalho americano. O Distiller’s Select é produzido pela destilaria Woodford Reserve, do Kentucky. Sua proprietária é a Brown-Forman Corporation, a mesma responsável pela marca de whiskey mais vendida no mundo, a Jack Daniel’s.

Mas as semelhanças terminam aí. O Woodford é um bicho bem diferente. É um bourbon extremamente equilibrado, com álcool bem integrado e muito versátil. É uma delícia para se beber puro, e fica ainda melhor em coquetéis. Aliás, tá em dúvida sobre qual bourbon usar em um drink que acabou de descobrir? Vá de Woodford.

Japão – Hakushu 12 / Akkeshi

Eu podia indicar só o Hakushu. Mas queria um whisky extremamente defumado. E se eu fizesse isso, não estaria mostrando a tamanha diversidade sensorial que tem o Japão. De toda forma, os whiskies da House of Suntory são os únicos japoneses a desembarcar oficialmente em nosso país. O Hakushu 12 é levemente defumado e traz notas florais. É equilibrado e muito elegante.

Já o Akkeshi não é. Akkeshi é uma destilaria localizada em Hokkaido, fundada em 2013. Seus whiskies são quase todos extremamente alcoolicos – de 50% pra cima – e bastante turfados. Algo bem incomum no Japão, que produz whiskies equilibrados, sem arestas pontudas. Os whiskies da Akkeshi possuem tiragem limitada, e normalmente fazem referência à época do ano em que foram engarrafados. Além de deliciosos, são quase um testemunho das constantes variações climáticas na na ilha que a abriga.

Austrália – Starward Tawny Port

A Starward é uma destilaria australiana, localizada em Melbourne. Ela foi fundada em 2007 por David Vitale, que abandonou a Lark para fundar sua própria marca. O Starward Tawny Port é um single malt edição limitada, que foi maturado exclusivamente em octaves de vinho do porto Tawny. Octaves são barricas ainda menores que quarter casks – metade delas – o que acelera bastante o processo de extração dos compostos da madeira e da bebida lá abrigada.

O Starward não está oficialmente à venda em nosso país. E pra ser sincero, não é muito fácil de achar lá fora também. Mas, com um perfil sensorial que remete a figos em calda, cravo e pimenta do reino, fica difícil não indicá-lo.

Revolver – Dos Triciclos

Quando eu era criancinha, tive um triciclo. Eu ia da sala pra cozinha pedalando como se o capiroto tivesse possuído minhas pernas, tão rápido que meus braços gordinhos nem conseguiam segurar o guidão reto. O que, naturalmente, resutlava em toda espécie de pequeno acidente doméstico. Raspar uma parede, acertar um vidro – esse foi um pouco mais grave – e passar por cima do pé dos adultos. Até aqui, nada demais sobre isso, afinal, quase toda criança teve um. Faz sentido – é um meio de transporte que transpira infância.

O que não cabe em minha cabeça, é o triciclo para o adulto que mora em cidade. E não tô falando de algo como um tuk-tuk, mas aquele bem caro, que parece que foi parido por um caça F-117. Há um sortilégio de modelos por aí, alguns bem bonitos. Aliás, tão belos quanto inúteis. O triciclo é o contrário da coxinha de calabresa, que une o melhor dos dois mundos. Ele reúne, sobre três rodas, todo desconforto de uma motocicleta com a impossibilidade de usar o corredor de motos. Em outras palavras, se começa a chover, você fica molhado e parado no trânsito igual um carro. Ridículo.

Tô com a cueca toda molhada, que divertido kkkk

Devo confessar que eu me sentia assim um pouco com High-Rye Bourbons. Essa é uma subclasse não oficial de bourbons, que usam um pouco mais de centeio na receita de seu mosto. Ou seja, cinquenta e um por cento ou mais de milho, e algo em torno de 20 a 25 por cento de centeio. Essa regra, entretanto, não é escrita: é apenas uma denominação convencionada entre entusiastas da bebida. Temos ao menos um representante aqui no Brasil: o Bulleit Bourbon.

High Rye Bourbons, pra mim, pareciam um triciclo porque não eram nem uma coisa, nem outra. Não traziam o adocicado do bourbon whiskey, com sua maior palatabilidade. Mas, também, careciam daquele apimentado seco e herbal, típico do rye whiskey tradicional. Ao menos era assim que eu pensava, ao experimentá-los puros. Mas, ao tentar utilizá-los em coquetéis, minha opinião mudou sensivelmente. Um ótimo exemplo é o Revolver.

O Revolver é – mais uma – variação de Manhattan, ou fancy, se você preferir, que, basicamente, substitui o vermute por licor de café, e equilibra a receita com bitters de laranja. Ele foi criado em São Francisco, no bar Bourbon and Branch, pelo bartender Jon Santer, e começou a ficar famoso à medida que rumores se espalhavam sobre a maravilha que era aquela mistura. Mais tarde, apareceu no Bar Book de Jefferey Morgenthaler, em 2014, e no Three Ingredient Cocktail, de Robert Simonson.

Bourbon & Branch

O curioso nome do coquetel é – e aí esta matéria vai fazer sentido – baseado no destilado usado em sua base. Bulleit Bourbon (entenderam, bulleit, revolver. Eu também não achei a menor graça). Bulleit se encaixa perfeitamente no perfil do drink. O herbal apimentado se equilibra com o café, enquanto o adocicado ressalta as características do bitter de laranja. Morgenthaler, em seu livro, inclusive, recomenda que se use bourbons mais secos e apimentados. Em momento algum, sugere a substituição por rye.

Um ingrediente olvidado mas, importantissimo, é o licor de café. O mais conhecido é Kahlua. Este Cão sinceramente recomenda o uso de um licor mais intenso, com complexidade e capaz de complementar a estrutura do coquetel. No coquetel fotografado, o licor usado foi o Illyquore. Mas um palpite educado sugere que o Heering Coffee Liqueur ou DeKuyper fiquem geniais. Mas se isso for um impedimento para testar a receita, vá de Kahlua.

Assim, meus caros, olhem pela janela para ver se não está chovendo, peguem seus triciclos e preparem-se para comprar mais uma garrafa pro bar. Licor de café. Anotem, aí, a receita de um coquetel tão simples quanto complexo. O Revolver.

REVOLVER

INGREDIENTES

  • 60ml High-Rye Bourbon
  • 15ml Licor de Café
  • 2 dashes Orange Bitters
  • Zest de laranja
  • Parafernália para misturar

PREPARO

  1. Combine todos os ingredientes num mixing glass com gelo e mexa.
  2. desça numa taça coupé ou similar, e adicione o zest.
  3. Se estiver inspirado, pode fazer o ritual de serviço do Bourbon and Branch: aperte o zest sobre um fósforo aceso. Isso fará com que os óleos essenciais da laranja peguem fogo. É divertido e traz um aroma delicioso ao coquetel.

Royal Salute 62 Gun Salute – Again, Sam

Um piano de estúdio sobre rodas, de madeira e com 58 teclas de plasticina, provavelmente fabricado pela Kohler & Campbell, em 1927. Goma de mascar petrificada na parte debaixo do teclado“. Ao que tudo indica, esta é a descrição de um piano qualquer. Aliás, um piano velho qualquer, com quase um século de idade, que algum ignorante colou um chiclete embaixo. Dificilmente, um item extremamente desejável.

A descrição, entretanto, começa a ficar intrigante no segundo parágrafo “A tampa do piano é articulada no centro, como costumeiro, mas pode ser totalmente removida, e fica presa com gancho e olhal“. Até que, finalmente, é revelado a razão de tamanha atenção aos detalhes para uma peça tão ordinária “(tampa alterada para a produção de Casablanca para que Rick possa abrir a tampa do piano por trás e esconder os papéis de imigração)”

Aquele era o pequeno piano armário, tocado por Sam em tantas cenas memoráveis do clássico Casablanca. Praticamente um protagonista do filme, foi vendido em um leilão da Bonhams em 2014, pela inacreditável bagatela de três milhões, quatrocentos e treze mil dólares. Um pequeno piano armário, todo pintado com temas marroquinos, virara um dos itens de filme mais caros já vendidos na história, logo depois do Aston Martin de James Bond e aquele vestido branco da Marilyn Monroe.

Mais barato que um piano velho.

Exceto pelas modificações da produção, nada diferenciava aquele piano de qualquer outro. O que contava, era a história. Mas ela, e só ela, já era suficiente para elevá-lo a níveis estratosféricos de desejo. O valor de algo tão raro é praticamente intangível. É como o Aston Martin de 007, e claro, alguns whiskies. Como, por exemplo, o recém-chegado ao Brasil Royal Salute 62 Gun Salute.

Mas, ao contrário do pianinho de Casablanca, o Royal Salute 62 Gun Salute não tem nada de ordinário. O whisky é um blend que usa uma bela porção de whiskies com mais de 40 anos, dentre eles, Longmorn e Strathisla. Muito provavelmente, em sua composição, esteja também Caperdonich, destilaria que pertencia ao grupo Pernod-Ricard, mas foi fechada em 2002 e produzia maltes turfados e tradicionais.

Este Cão teve a oportunidade de provar a raridade, em um incrível jantar no Hotel Rosewood, em São Paulo. O jantar contou tanto com o Royal Salute 62 Gun Salute quanto com outros rótulos da marca, puros e em coquetéis, harmonizados com pratos concebidos especialmente para o evento. Lá, o embaixador no Brasil da Royal Salute, Felipe London, contou um pouco sobre o blend.

A garrafa de cristal é feita sob encomenda por artesãos da Dartington Crystal. Cada garrafa é assoprada individualmente, e possui duas camadas de cristal: a primeira, interna, é incolor. Já a externa é azul. O vidro é então lapidado cuidadosamente, para que ambas as camadas transpareçam nas ranhuras em forma de diamante. O rótulo é feito com ouro 24 quilates, e a rolha conta também com um cristal lapidado. O video abaixo explica o processo, em inglês.

Falando em rótulo, o número sessenta e dois não indica a idade. Mas é uma alusão à máxima saudação de canhões, reservada às mais importantes datas comemorativas da coroa, como a ascenção ao trono de algum monarca. Há, inclusive, uma curiosidade histórica. A saudação somente pode ocorrer em Londres. São 21 tiros tradicionais, mais outros 20 a partir da Torre de Londres, por ser uma fortaleza real, e mais 21, em alusão à cidade de Londres e seus habitantes.

Mas, de volta ao whisky. Apesar do storytelling fantástico, uma das coisas que mais me chamou atenção no Royal Salute 62 Gun Salute, foi o perfil sensorial. Ele é muito mais carregado que os demais whiskies da marca – até mesmo que o 38 Stone of Destiny. O whisky taz notas de chocolate, café e frutas secas. A finalização é longa, e aponta claramente para a maturação em carvalho europeu de vinho jerez. O corpo, como de todos os Royal Salutes, é baixo, e o álcool é quase imperceptível.

No Brasil, uma garrafa do Royal Salute 62 Gun Salute custa, em 2023, em torno de trinta mil reais. Por extenso mesmo, assim, pra vocês não acharem que eu errei. E apesar de parecer um valor alto, das garrafas que chegaram, restaram apenas quatro. Faz sentido. Naquelas alturas estratosféricas de sofisticação, onde a atmosfera é mais rarefeita, ele não é apenas um piano decorado com temas marroquinos. Mas, sim, o piano. A expressão máxima na linha dos blends que começa onde outros terminam.

ROYAL SALUTE 62 GUN SALUTE

Tipo: Blended Whisky

Marca: Royal Salute

Região: N/A

ABV: 43%

Notas de prova:

Aroma: Frutas secas, ameixa, açúcar mascavo, cravo.

Sabor: Cacau, café, frutas secas. Uvas passas, ameixas secas. Final longo, com gengibre, mel e mais frutas secas. Extremamente delicado de corpo, com álcool quase imperceptível, mas intenso em sabor.

O Caso Cardhu (ou por que meu whisky não se chama “Pure Malt”)

Totô, o urso lutador, não é brinquedo de homem nenhum no ringue” dizia o título de uma matéria de 1939 no jornal The Times. Parece cômico, mas não era. A frase era um aviso do promotor Julius Sigel para um tal “Jim “Goon” Henry de Oklahoma, que enfrentaria, em menos de vinte e quatro horas, um urso de mais de cento e cinquenta quilos num evento de luta. “O Totô sabe de todos os macetes de luta (….). Ele foi cuidadosamente treinado, e não é um artista casual.”

Dois dias depois, outro certo Ivan Managoff enfrentou outro urso, no mesmo ringue. De fato, lutas com ursos tornaram-se moda em Oklahoma, naquela época. Animais como Victor, Gentleman Ben, Sonny, Ginger e, claro, Totô, apareceram constantemente nos artigos esportivos até a década de setenta. O que era, na verdade, um enorme problema. Na verdade, dois: lutar com ursos não era exatamente seguro – o bicho não vai parar e pensar “opa, tá bom, ganhei” antes de abrir a barriga do adversário e devorar seu intestino delgado.

Mas, mais que isso, era um ato de crueldade. O urso não tinha livre arbítrio para participar da luta. Era pura exploração animal, da mais perversa. Por conta disso, o estado de Oklahoma se viu obrigado a promulgar uma incomum lei. Ficava proibido, a partir de 1996 (tão recente assim!) “promover, participar ou ser empregado em uma exibição de luta livre de ursos“.

Mano, isso é real?

Leis são assim, na verdade. Muitas nascem como pressupostos óbvios de conduta. Como, por exemplo, que homicídio é crime. Outras – a maioria, na verdade – nascem de necessidades específicas da sociedade. É a função social do Direito, que não se limita, obviamente, a lutas com mamíferos de grande porte. Mas a todos os aspectos sociais. Whisky, inclusive. Um dos exemplos mais icônicos é o – singelamente apelidado – Caso Cardhu. Vou contar ele pra vocês.

Explica Pure Malt como se fosse pro urso entender.

Vamos começar com nosso personagem principal. A destilaria Cardhu, localizada em Speyside. Ela produz atualmente em torno de quatro milhões de litros por ano – produção semelhante àquela que tinha em 2002. Parece bastante, e realmente é. Entretanto, há um detalhe importante: Cardhu fornece malte para diversos blends da Diageo, sua proprietária. Dentre eles, inclusive, está o Johnnie Walker Black Label – cujo malte mais importante da composição é, justamente, Cardhu. Além dele, a Cardhu possui também uma expressão como single malt – atualmente, um 12 anos.

Em 2002, a legislação relativa à rotulagem de scotch whisky era um pouco distinta da atual. Era permitido usar a expressão “pure malt” ou “vatted malt” – como é o caso do Lagavulin, que ilustra este post. Os termos definiam qualquer whisky que fosse destilado em alambiques de cobre e usasse 100% de cevada maltada, mesmo que de diversas destilarias. Não era necessário que fosse produzido sob o mesmo teto – como seria o caso de um single malt. Ou seja, a expressão podia tanto referir-se a um single malt quanto um blended malt, que é a combinação somente de single malts de diversas destilarias.

Outro Pure Malt – Green Label antigo

De volta à Cardhu. Como você pode ter percebido, equilibrar a produção – ainda que grande – para atender a demanda tanto do mercado de blends quanto dos single malt freaks não parece uma tarefa fácil. E em 2002, ela se tornou impossível. Acontece que, naquele ano – por algum mistério daquele tipo que faz todo mundo descobrir junto um drink tão óbvio quanto um fitzgerald – a demanda pelo single malt decolou. No mediterrâneo, especialmente na Espanha, Portugal, França e Grécia. O que parecia um problema bom de se ter.

Mas não era. Porque produzir whisky não é algo imediato. Não adianta simplesmente virar uma chave, e da noite pro dia, centenas de milhares de garrafas são preenchidas. Whisky demanda tempo. O tempo de barril. Para que seja considerado scotch whisky, o mínimo são três anos em barris de no máximo setecentos litros. A Diageo, então, se viu num curioso impasse. A curva de demanda claramente superaria o teto de produção – considerando os estoques da época – da Cardhu. Mesmo re-direcionando parte dos maltes antes destinados à Johnnie Walker, a conta não fechava.

A solução? Fazer uma poção mágica.

A solução foi dada em abril de 2003, e pouco tinha a ver com a produção da destilaria. A Diageo aproveitou aquela prerrogativa legal, e lançou um novo produto no mercado. O Cardhu Pure Malt. Que era, basicamente, Cardhu, misturado com outros maltes de destilarias menos conhecidas do grupo, como Glendullan. O blend mantinha o perfil sensorial típico de Cardhu e Speyside.

As duas expressões lado a lado

Neste ponto da história, sinto-me obrigado a fazer mais uma digressão. O movimento da Diageo pouco teve a ver com a qualidade do produto. Os maltes usados na composição do tal Cardhu Pure Malt eram ótimos, e o resultado sensorial do líquido podia – talvez discutivelmente para os mais apaixonados – até mesmo superar o do Cardhu Single Malt. Mas, como vocês já devem imaginar, porque senão eu não estaria aqui contando essa história, o conflito tinha muito pouco a ver com qualidade.

Acontece que, percebendo a jogada de sua concorrente, a William Grant & Sons, outra gigante da produção de Scotch Whisky, acusou a Diageo de “enganar o público” e – espetacularmente na minha opinião – “apostar em estar certa“, algo que minha esposa faz com frequência, também. Os dejetos finalmente atingiram o ventilador. A imprensa publicou uma série de artigos transformando a mudança em um quase escandalo. Por fim, o Parlamento Escocês se envolveu. O líder do partido nacional John Swinney criou um comitê, só para discutir a matéria, e chamou a Scotch Whisky Association para chegar na voadora.

O comitê deve analisar o que deve formar a definição de single malt, vatted malt e blend, e trabalhando em parceria com a indústria, como podemos apoiar a Scotch Whisky Association enquanto ela se move para resolver esta questão espinhosa” – declarou Swinney. A Diageo se defendeu. Seu diretor global de marcas, Jonathan Driver, declarou que não havia opção para eles em vista do gargalo de produção, e que a estrondosa popularidade de Cardhu no mediterrâneo era sinal de prosperidade para toda a indústria do Scotch Whisky.

Havia uma certa lógica na explicação da Diageo. Os consumidores de Cardhu recém-recrutados nos países mediterrâneos não voltariam a beber blends comuns, como o Black Label. Libertados dos grilhões que os prendiam face à parede do mito da caverna do scotch whisky, mas ainda não totalmente prontos para encarar a realidade. Ou seja, provar maltes distintos, como Cragganmore, Oban ou Talisker. A solução era criar um malte com perfil sensorial próximo ao Cardhu. Até aí, tudo bem. O problema era visual: não precisava se chamar Cardhu e ter as mesmas cores do predecessor.

Pressionada por seus concorrentes, o parlamento e a SWA, a Diageo não teve alternativa senão retroceder de sua decisão. Em 2003, após aproximadamente um ano de luta, retirou o Cardhu Pure Malt do mercado. Mas a história teve enraizamentos mais profundos. Em 2008 a SWA alterou as Scotch Whisky Regulations, e determinou que em 23 de Novembro de 2011, as expressões “vatted malt” e “pure malt” estariam totalmente proibidas na rotulagem de whisky escocês. O prazo de 2008 até 2011 serviu para que a indústria adequasse seus rótulos.

O último episódio desta história teve a participação de uma nova personagem. A Compass Box Whisky Co., engarrafadora independente de blended malts espetaculares. Liderada por John Glaser, seu fundador e ex-executivo da Diageo, a Compass Box esperou até a noite de 22 de novembro de 2011 para engarrafar, ao vivo, no meio de Londres, um whisky histórico. O The Last Vatted Malt. Foram feitas 1323 garrafas – da noite pro dia, literalmente, transformadas em item de colecionador.

O rótulo da Compass Box

Então, está aí. As leis evoluem com a sociedade. Até 1996, alguém podia tranquilamente assistir uma luta com um urso bebendo um blended malt, achando que era single malt. Atualmente, entretanto, ambas as práticas são proibidas – e por bons motivos.

Monte Carlo – Simplicidade

Uma a cada três pessoas que vivem em Mônaco é milionária – em dólares. É a segunda renda per capita mais alta do mundo, somente depois de Luxemburgo. Incrivelmente, é também um dos países mais densamente populosos do mundo. São trinta e oito mil pessoas, vivendo em dois quilômetros quadrados. O que sugere que, talvez, muitos locais vivam dentro do diminuto espaço em suas Ferraris. O lugar tem também um dos cassinos mais famosos do mundo – o de Monte Carlo.

Curiosamente, Mônaco nem sempre foi a Praia Grande dos trilhardários do mundo. Essa história começou em 1866, quando o Príncipe Charles III resolveu transformar o lugar em um resort para os nobres e abastados da Europa. Antes, Monte Carlo – seu bairro mais proeminente – se chamava Speluges, e era um lugar onde cresciam oliveiras e algumas videiras. O nome antigo era inclusive meio que um motivo de piada por sua semelhança com a palavra alemã Spelunke (que tem o mesmo significado em português).

Depois da decisão do príncipe, o lugar – especialmente Monte Carlo – se transformou. Uma luxuosa ópera, um cassino e diversos hotéis foram erigidos. Muitos anos mais tarde, Monte Carlo virou também cenário de uma das provas automobilísticas mais importantes do mundo, e do Monaco Auto Show. Como se o rush hour de Ferraris e Lambos não fosse o suficiente.

Que transito, mêo.

É até irônico, então, que um coquetel tão simples tenha sido batizado em referência àquela municipalidade. O Monte Carlo. O drink não leva nem uma gota de Romanee-Conti, Armand de Brignac ou Macallan Fine and Rare 60 anos, o que justificaria este post. A guarnição está longe de ser caviar ou trufas brancas. O drink leva três singelos ingredientes: rye whiskey, bitters e Benedictine D.O.M. E ainda que o derradeiro não seja exatamente barato, está longe de corresponder ao PIB de uma pequena nação européia.

O Monte Carlo apareceu pela primeira vez no The Fine Art of Mixing Drinks de David Embury, em 1948. Existe uma divergência classificatória um tanto prosaica aqui. Alguns o consideram um “improved” – ou seja, um Old Fashioned com alguma variação, como seria o Fancy Free. Outros, o veem como um desvio do Manhattan, onde o Benedictine faria as vezes do vermute. A discussão, entretanto, é meramente teórica.

Se vivêssemos em Mônaco, provavelmente teríamos mais opções de rye whiskey. Entretanto, como estamos no Brasil, o único que pode ser usado amplamente é o Jim Beam Rye – o que talvez possa deixar o drink doce para alguns paladares. A receita original pede 60ml de whiskey, para 15 do licor. Se achar doce, reduza o último, ou pese mais a mão nos bitters.

Sem mais, aí vai a receita de um drink muito mais fácil e singelo do que comprar um carro de meio milhão de dólares pra ficar parado atrás de outro carro de meio milhão de dólares no trânsito de Monaco. O querido Monte Carlo.

MONTE CARLO

INGREDIENTES

  • 60ml rye whiskey
  • 15ml Benedictine D.O.M.
  • 2 dashes Angostura Aromatic Bitters
  • Gelo
  • Parafernália para misturar

PREPARO

  1. Adicione todos os ingredientes num mixing glass e mexa com bastante gelo
  2. desça emum copo baixo
  3. se estiver se sentindo em Monte Carlo, adicione uma cereja maraschino ou um twist de laranja de guarnição.

Visita à Nikka Miyagikyo – Shinkansen

Quando entrei pela primeira vez na Estação de Tóquio, fiquei mesmerizado. Dezenas de lojas – de grifes internacionais a especialidades locais. Um andar inteiro de restaurantes, alguns dedicados exclusivamente aos bentôs: essas lancheirinhas que os japoneses levam para comer enquanto viajam de trem. Pensei, sarcástico “calma galera, é só um trem, não precisa construir uma cidade autossuficiente ao redor dos trilhos“. Entretanto, ao cabo de quinze dias, minha impressão inicial se esvanescera.

Os japoneses são obcecados por trens. Tanto que tem dezenas de palavras diferentes para definir precisamente a obsessão férrea de cada um. O clássico trainspotter é “tori-tetsu”. Mas tem também “sharyo-tetsu”, que são os que gostam do design dos trens. E “oto-tetsu”, que gravam o barulho que eles fazem. Tem também “yomi-tetsu”, que é quem gosta de ler sobre trens, e “nori-tetsu”, que gostam de viajar de trem. Por fim, tem a categoria que me encaixo: “ekiben-tetsu”, o maluco que viaja de trem pra comer os bentôs mais esquisitos de cada estação. Pra voce ver, eu, um gaijin, nem sabia que eu sou essa coisa. Realmente, o japão é um país inclusivo!

E quando embarquei em Tóquio para Sendai, com objetivo de visitar a Nikka, eu nem sabia, Mas realizara o sonho de muitos nori-tetsus. Experimentar uma viagem no Hayabusa – um dos mais modernos shinkansens do mundo. Shinkansen, caso você não saiba, é o nome do trem-bala por lá. Mas antes de subir na plataforma, como um bom ekiben-tetsu, escolhi, cuidadosamente, meu bentô. Atum com ovas de salmão e arroz por baixo, com um clássico highball. Meu passatempo pelas próximas três horas de viagem.

Cheguei na estação de Sendai. De lá, podia pegar um trem local para uma viagem de trinta minutos, ou ir de táxi. Escolhi a segunda opção, mais por teimosia que conveniência. O taxista, que não falava inglês, no final das contas, se comunicou muito bem comigo. Apontou que havia neve – algo difícil naquela época do ano. E fez uma mímica elaborada, explicando sobre sua alergia ao pólen dos pinheiros, informação que será importante numa futura publicação aqui no Cão.

Enfim, cheguei à Miyagikyo. O tour, em japonês, contava com um audioguide, que explicava, razoavelmente bem, como a destilaria fora concebida. Por sorte, estava com uma guia que também falava inglês, e tive a oportunidade de entender um pouco mais sobre o lugar. A Miyagikyo é a segunda destilaria do grupo Nikka, fundada por Masataka Taketsuru depois de sair da Suntory. Sua localização foi escolhida por dois motivos: clima e água. Sendai está mais ao sul que Hokkaido, onde está localizada a primogênita Yoichi. Mas não tão ao sul assim a ponto de sacrificar o clima semelhante ao escocês, que Masataka tanto estimava.

O centro de visitantes da Miyagikyo

A Miyagikyo fora concebida para auxiliar sua irmã Yoichi a dar conta da demanda de whiskies, em 1969. Inicialmente, deveria ter uma vez e meia o tamanho da predecessora. No final, ficou três vezes maior, contando com a destilaria de grão. Aliás, isso é curioso – é tudo Miyagikyo, mas numa mesma localização, dois tipos distintos de whisky são produzidos. Single malts e single grains. Os single malts teriam, inicialmente, um perfil sensorial mais leve do que os da Yoichi. Mais herbais e menos enfumaçados – algo que, hoje, ainda é aplicado na maioria das vezes, ainda que haja exceções.

Atualmente, a Miyagikyo produz em torno de quatro tipos diferentes de malte. Os declarados são turfado, levemente turfado, turfado e um cuja tradução seria algo como “carnudo”, que, suspeito, seja “estery“, ou sulfúrico. A maioria avassaladora, no entanto, é de malte não turfado. Os mash tuns são de aço inox, assim como os washbacks. A fermentação leva entre 48 e 60 horas – a última, mais frequente.

Mash Tun

Entre o espaço dos mash tuns e dos washbacks há uma sala misteriosa, que mais parece o centro de comando de um gundam. Dezenas de telas, dispostas lado a lado e uma sobre as outras, com gráficos, imagens e escalas. Ainda que o espaço fosse todo transparente, ninguém permitia foto. A razão é óbvia: este é o cérebro da Miyagikyo. A destilaria é, hoje, totalmente informatizada. A transferência do wort para o washback e a carga dos alambiques é toda feita ao toque de um – ou alguns – botão. É inclusive, daí, que se comanda também a produção dos whiskies de grão nos coffey stills.

Os alambiques tradicionais da Nikka são dispostos em bases diferentes, em pares. Uma das duplas, inclusive, denota claramente ser mais idosa do que as demais, com seu cobre já meio opaco, e os rebites do lyne arm escurecidos. Todos os alambiques têm o mesmo formato: têm base larga, com bulbo , e lyne arm levemente voltado para cima, para incentivar o refluxo. Indaguei, corajosamente, sobre o aquecimento e os condensadores. Vapor e shell-and-tube. Tudo para produzir um whisky leve.

Alambiques com Shimenawa – símbolo xintoísta que afasta maus espíritos.

Visitamos, por fim, um dos armazéns da destilaria. Uma dunnage house, com barris dispostos em duas camadas apenas. Estranhei. A guia, entretanto, esclareceu: aquele espaço era dedicado a visitantes. Nos outros armazéns clássicos, havia quatro fileiras de barris. Mas havia também rickhouses, com barris dispostos em mais de sete andares. Todo o whisky de malte é maturado na própria Miyagikyo. O single grain, entretanto, matura em outra instalação.

Na volta ao centro de visitantes, passamos, rapidamente, pelos prédios que abrigam os destiladores contínuos. São coffey stills, com desenho clássico de Aeneas Coffey. Há o tradicional analyzer o rectifier. Este último contém vinte e quatro pratos. Mas o que é mais extraordinário, aqui, é o seu uso. A Miyagikyo produz diferentes estilos de whisky nestes destiladores, inclusive, usando cevada maltada. Algo bastante incomum, mesmo para padrões escoceses. Aliás, por muito tempo, antes de introduzir um “Miyagikyo” no mercado, seus dois produtos de prateleira mais comuns eram, justamente, os “Nikka Coffey Malt” e “Nikka Coffey Grain”.

Voltamos ao centro de visitantes, onde uma pequena bandeja com três copinhos de dose – não glencairns – nos aguardavam. Malte, grão e o produto finalizado. Aproveitei a oportunidade, também, para provar outros whiskies só disponíveis por lá. As destilarias do grupo Nikka, ao contrário da Suntory, possuem distillery-exclusives em seu portfólio. Eram três, que demonstravam toda a versatilidade da Miyagikyo. De “leve e herbal” a “vínico e intenso”.

Visita concluída, mas o dia estava longe de acabar. Aliás, um dos pontos altos ainda estava no futuro. Embarcar de volta no Hayabusa e encarar – na verdade, me divertir – as próximas três horas de volta a Tokyo. Mas antes, havia uma coisa mais importante a fazer. Escolher meu bentô. Afinal, além de entusiasta de whiskies, sou um “ekiben-tetsu”.

And To All a Good Night – Arriba, Adentro.

É curioso como a simples menção de algo faz nosso caldeirão de memórias e conceitos borbulhar. Whisky. O Joe comum – não vocês, obviamente – traz impresso em seu instinto a imagem daquele decadente senhor, sentado numa poltorna de couro capitonê. Em sua mão, um copo largo, com uma dose generosa de um líquido dourado, que tilinta com o som do gelo batendo em suas bordas. Esse é o clichê de whisky.

E muda, de bebida pra bebida. Tequila, por exemplo, é outra história. Obviamente, a primeira coisa que quase todo mundo pensa, quando ouve a palvra tequila, é o México. E da América Central, nossa massa cinzenta nos teletransporta mentalmente e de forma imediata para restaurantes de cadeia tex-mex, daqueles que você ia com a turma do trabalho quando queria desbundar. Daí pra frente, a evocação das recordação depende de cada um.

Recordação?

Muita gente lembra de sal e uma rodelinha de limão, de arriba-abajo-al centro-adentro. E margaritas também. Mais arriba, mais adentro. Falar cremoso, pisar fofo, dores de cabeça, náuseas. Arriba não dá mais, agora, é só adentro mas, inevitavelmente, abajo. É uma pena, porque pouca gente pensa na tequila como um ingrediente incrível para coquetelaria – como é o caso do coquetel tema desta matéria, o And To All a Good Night.

A mistura de nome sugestivo leva bourbon whiskey, tequila reposado, cherry heering e bitters aromáticos e de laranja. Ele remete a drinks clássicos, como o Remember The Maine e Vieux Carré. Não tem nada de arriba-abajo-adentro. É um coquetel para ser bebido em pequenos goles, à medida que ganha temperatura e revela seus sabores. Mesmo porque, para deglutir Cherry Heering irresponsavelmente, é melhor se certificar da solidez gástrica e financeira antes.

O And To All a Good Night foi criado pelo bartender Tim Stookey, do Presidio Social Club de San Francisco. Ele leva uma quantidade razoável de Cherry Heering, mas, é incrivelmente seco. Provavelmente, devido à combinação do bourbon whiskey com a tequila. Tanto que a recomendação deste Cão é a de usar um bourbon mais adocicado. Jim Beam Black funcionará bem, e Buffalo Trace o deixará simplesmente magnífico.

Cherry Heering é também ingrediente do Blood and Sand

A receita pede uma tequila reposado. Este Cão usou Herradura – simplesmente porque era o que tinha. Mas, de acordo com o website Tuxedo No.2, que traz um incrível detalhamento sobre a receita, o coquetel ficará bom também com uma anejo. Basta repensar a quantidade de bitters. Dito isso, prepare o copinho e vamos direto abajo. Uma boa noite a todos.

AND TO ALL A GOOD NIGHT

INGREDIENTES

  • 45 ml de bourbon
  • 22,5 ml de tequila reposado
  • 22,5 ml de Cherry Heering
  • 2 dashes de bitter de laranja
  • 1 dash de Angostura bitters
  • Casca de laranja para decorar
  • parafernália para misturar

PREPARO

  1. Mexa todos os ingredientes num mixing glass com bastante gelo
  2. desça na taça

Union Pure Malt Barley Wine Finish – Zigoto

Tudo começa de uma única célula, o zigoto. É ele que possui a mistura cromossômica de seus progenitores. Toda informação genética do novo ser vivo está lá, naquela única célula. Daí vem as clivagens, rápidas e repetidas divisões mióticas, gerando novas celulas. O resto do processo todo mundo já conhece – ou não. Blastocisto (tive que recorrer ao Google para esse daí), embrião, feto, parto.

Nos ovíparos, é um tantinho diferente, mas tem um ponto em comum: tudo começa numa única célula. Não importa se é gente, peixe, cachorro, galinha ou axolote. A centelha que dá início à fogueira da vida – nossa, que brega – é uma única célula. De certa forma, é ela a matéria prima da vida, compartilhada por todas as espécies.

Correndo o risco de ser cafona, no mundo do whisky e da cerveja, é assim também. O embrião, óbvio. Mas não apenas isso. Ambas as bebidas surgem da mesma origem – o grão. Se for um single malt, ou uma cerveja puro malte, a cevada. Que é maltada, cozida, fermentada. E no whisky, destilada e maturada. No caso da cerveja, normalmente, há clarificação. Já no whisky, normalmente não – ainda que haja exceções. De uma forma bem simplista, whisky é, na verdade, cerveja destilada.

O começo de tudo

Mas os pontos de tangência não estão apenas aí. Você pode maturar cervejas em barris de whisky. E whiskies em barris de cerveja, claro. Há muitos exemplos, como os Jameson Caskmates, e o Glenfiddich IPA. E, mais recentemente, na indústria brasileira, o novo Union Pure Malt Whisky Barley Wine Cask Finish – doravante, Union Barley Wine Finish, para fins sintéticos.

O Union Barley Wine Finish é o quinto rótulo da série Autograph, que já contou com um Virgin Oak, e três whiskies finalizados em barris que antes contiveram vinho tinto chileno. Nesta quinta edição, o whisky maturou por oito anos em barris de carvalho americano de ex-bourbon, e depois foi finalizado por 18 meses em barricas que antes contiveram uma cerveja barleywine.

Como o nome sugere, barleywines são feitos de cevada (barley). São cervejas complexas, de alta graduação alcoolica, e sensorialmente bem maltadas. Ao contrário de uma IPA, em que o lúpulo está em primeiro plano, é a base de grãos que fica em evidência. Assim, a proveniência da cerveja é importante – é ela que temperará os barris a serem usados na maturação. No caso do Union Barley Wine Finish, a destilaria encomendou um barleywine feito sob medida para a BBC Cervejaria, localizada em Vila das Flores, Rio Grande do Sul.

O próprio barleywine, inclusive, matura antes em barricas que antes contiveram whisky da Union. É um processo de reutilização bem interessante, e que traz complexidade para os dois produtos. Cerveja e whisky. Para você, querido entusiasta da cerveja, que chegou a este parágrafo, tenho boas notícias. A barleywine usada se chama Casa Rossa, e pode ser comprada diretamente da Union Distillery.

A cerveja

A graduação alcoólica do Union Barley Wine Finish é de 46%. Ele não é filtrado a frio e não utiliza corante caramelo. Sensorialmente, é relativamente oleoso, com notas de chocolate, café, mel, baunilha e pimenta do reino. O final é longo e persistente, e lembra bastante a cerveja que lhe emprestou a base – maltado e caramelado.

O Union Barley Wine Finish está disponível na loja da destilaria, no Vale dos Vinhedos, em Bento Gonçalves (RS), e pelo site oficial da Union Distillery. A cerveja, entretanto, somente pode ser comprada na destilaria. Mas lembre-se: tudo começa de uma única célula. Talvez o Union Barley Wine Finish seja o zigoto do embrião de sua paixão por whiskies brasileiros.

Union Pure Malt Barley Wine Finish

Tipo: Single Malt

Destilaria: Union

País: Brasil

ABV: 46%

Notas de prova:

Aroma: adocicado e maltado, com café e chocolate.

Sabor: maltado. Café, chocolate, mel, e pimenta do reino. Final longo, puxado para o açúcar mascavo e caramelo.

*a degustação do whisky tema desta prova foi fornecida por terceiros envolvidos em sua produção. Este Cão, porém, manteve total liberdade editorial sobre o conteúdo do post.

Visita à Yamazaki – Kaitenzushi

Eu sabia que existia. Mas, quando vi ao vivo, fiquei meio embasbacado. Pequenas porções de sushi em pratos nanicos, de todas as formas e cores, girando sobre uma esteira oval, como se fossem malas em um aeroporto. Ao redor da esteira, do lado de fora, clientes operando tablets e retirando os diminutos pratos de seu infinito looping. Do lado de dentro, um rapaz japonês, adicionando pedacinhos de peixe cuidadosamente cortados sobre montinhos de arroz. Era meu primeiro dia no Japão, e havia resolvido conhecer um Kaitenzushi.

É esse o nome que dão por lá para um estilo bem famoso de sushi – que em inglês, chamam de “conveyor belt sushi”. Apesar de parecer uma cena de algum filme futurista, os famosos “sushi de esteira” – como seria nossa melhor tradução – são, na verdade, os restaurantes mais acessíveis da espécie. E isso tem uma razão. A interferência humana é quase inexistente. Os comensais fazem seus pedidos usando uma espécie de iPad – caso queiram algo específico – ou simplesmente retiram os pratos que vagarosamente desfilam às suas frentes. O arroz é feito e porcionado por máquinas. O chef só coloca o peixe em cima. Até para pedir a conta, não precisa levantar a mão ou fazer o sinal universal da assinatura no ar. É só clicar na tela.

Tem uns que vem de shinkansen até

O mérito gastronômico dos kaitenzushis é contestável. Eles foram originalmente criados em meados de 1950, por Yoshiaki Shiraishi, que se baseou no modelo de linha de produção de cervejas. O objetivo era reduzir custos. Substituindo os bem remunerados chefs por máquinas, Yoshiaki conseguiu aumentar a velocidade de produção e reduzir o preço do alimento. Mas, tirou também algo que os comensais mais gourmetizados sentem falta. A experiência individualizada. A esteira não te pergunta se tá gostoso, ou qual sua preferência. É uma linha de produção. Bem gostosa, por sinal. Mas, uma linha de produção.

Quando, uma semana depois, concluí minha tão aguardada visita à Suntory, me relembrei dos Kaitenzushis. É que a visita – para nós, seres humanos comuns – é tão deliciosa quanto automatizada. O agendamento deve ser feito online. Os tours acontecem de hora em hora, e são levados a cabo em grupos de até vinte pessoas. Mesmo assim, garantir uma vaga não é fácil. A lista de espera é de quatro meses. Como eu, brasileiro que sou, tenho meu horizonte de planejamento de duas semanas, tive que recorrer a um artifício. Comprei o tour indiretamente, num desses sites de experiência para turistas. E não, ter um blog não ajuda. A Yamazaki é o centro de peregrinação dos blogueiros de whisky no Japão – não fosse a cordialidade japonesa, haveria uma fila preferencial para quem não é influencer de whisky.

Centro de visitantes

Chegando lá, fomos recepcionados – eu, a Cã e mais doze pessoas – por uma simpática guia, que contou a história da destilaria em japonês, enquanto um audioguide com fone traduzia para o inglês o que, teoricamente, ela falava. De acordo com a maquininha, a Yamazaki foi a primeira destilaria do Japão. Ela foi instalada na convergência dos rios Uji, Katsura e Kizu, por conta da qualidade de sua água. Eu, entretanto, sabia que havia outra razão. Shinjiro Torii, fundador da Suntory e da Yamazaki, morava em Osaka. E sabia que o futuro do whisky japonês estava nos grandes centros urbanos, de Kobe, Osaka, Kyoto e Tokyo. Navegar pela força gravitacional daquelas cidades era importante.

Ainda que não tenha sido mencionado – ao menos na língua ocidental – é interessante notar como aquela localização é especial. O espaço fora outrora um grande templo budista. Daí, alguns arcos Torii, com altares xintoístas nas redondezas. Fora lá, também, que o mestre de chás Sen no Rikyu refinou sua cerimônia, antes de apresentá-la a Hideyoshi. O espaço é histórico, sagrado. Mas é também uma fábrica.

Seguimos o tour pelos mash tuns e washbacks. A Yamazaki possui um par dos primeiros, enormes, feitos de aço. O wort é clarificado antes de ser adicionado nos washbacks. Aqui, meu audioguide-kaitenzushi explicou, de forma muito didática, que a fermentação leva em torno de 72 horas. Dois tipos diferentes de levedura são usadas. Distiller’s Yeast, que permite ganho alcoolico rápido, e Brewer’s Yeast, que traz complexidade por conta dos subprodutos da fermentação. O Wash é então carregado nos alambiques. É aqui que temos a maior diferença com as destilarias ocidentais.

Stillhouse

Ao contrário de uma Laphroaig ou The Macallan, a Yamazaki não possui apenas um formato de alambique. Mas diversos. A ideia não é criar um estilo único de single malt, “marca registrada” da destilaria. Mas o número mais diverso de single malts possíveis. Isso tem a ver com a concepção da Yamazaki. Shinjiro Torii jamais pensara em comercializar seus single malts. Isso aconteceu bem mais tarde, só na década de oitenta. A função da Yamazaki era produzir whiskies para compor blends – como o Shirofuda, primeiro whisky do grupo, ou o clássico Kakubin. Para isso, alambiques que produziam destilados distintos eram a chave.

A destilação da Yamazaki têm, entretanto, um traço bastante marcante. O aquecimento por fogo direto em seus wash stills. Atualmente, quase nenhuma destilaria escocesa utiliza o método. Preferem o vapor, que é mais seguro, aquece o alambique por igual, e evita deposição de matéria orgânica caramelizada na base do pote. Aqui, o Kaitenzushi foi substituído pelo Omakase. A eficiência e custo não soam tão importantes quanto a tradição. O aquecimento por fogo direto produz um new-make mais carnudo. Sempre foi assim, e sempre funcionou. Trocar não faria sentido. Quem me explicou isso não foi o audioguide. Eu já sabia, graças a um maravilhoso livro de Dave Broom.

Seguimos para os armazéns. Enormes dunnage houses, criadas ao estilo escocês. Lá, meu audioguide explicou sobre o angel’s share, e fez até a piadinha clássica sobre a cobiça dos anjos. Dei uma risada pela intervenção humorística. Acho que já estava humanizando a maquininha. A taxa de evaporação da Yamazaki é superior a 2% ao ano. A maturação é distinta da escocesa, também. Ela ocorre um pouco mais rápido, devido à maior variação térmica da região, se comparada à Escócia.

Barricas da Yamazaki

Senti vontade de perguntar sobre a reutilização das barricas, e a procedência do vinho tinto e jerez utilizado. Mas o aparelho não me deu ouvidos. Recorri, mais tarde, novamente à literatura de Dave Broom. Os barris de vinho são provenientes de Bordeaux, onde a Suntory detém o famoso Chateau Lagrange. Os de jerez são encomendados especialmente de diversas bodegas. Bourbon, bem, o nome Beam-Suntory já denuncia a procedência.

Por fim, chegamos à sala de degustação. E qual minha surpresa ao constatar que o lugar parecia, justamente, um sushi de esteira. Cabines individuais, separadas por uma barreira de acrílico, todas voltadas para a guia, que, de dentro de uma cabine – também de acrílico – explicava como degustar os whiskies, com o auxílio de um microfone. Pode parecer agressivo, mas, na verdade, foi delicioso. Yamazaki maturado em carvalho europeu, outro em americano. E, por fim, a mistura das barricas pronta.

Me levantei, e junto com meu grupo, seguimos para o famoso espaço do balcão. Aquele, que todo mundo faz foto, com centenas de amostras diferentes dos whiskies, preenchendo as paredes. Até aqui, estava em dúvida se a passagem de trem teria compensado a visita. Qualquer dúvida se esvanescera lá. Pudemos provar – claro, mediante um investimento ridiculamente baixo – whiskies muito especiais. Yamazaki e Hakushu 25 anos, Yamazaki Mizunara, Hakushu 18. Finalmente, o Kaitenzushi dera espaço para o Omakase.

Degusta

Sem falar uma palavra em japonês – e sem ser indagado de nada, também – agradeci meio que mecanicamente “arigatou”. Passei pela porta, atravessei novamente as cinco linhas de trem que separam a destilaria da cidade, e segui para a estação. Tudo levara duas horas, mas já estava faminto. Pensei em comprar um bentô, para comer no trem, mas a viagem era curta demais. Onde jantaria? Num kaitenzushi, sem a menor sombra de dúvidas.

Especial de St Patrick’s – Irish Maid

Este é um post especial de St Patricks. Eu poderia falar, mais uma vez, de São Patrício. Comentar que ele é o padroeiro da Irlanda, e que o consumo de álcool durante as festividades em sua homenagem teve origem em uma restrição etílica no século dezessete. E depois falar tudo que o país tem de característico, como trevos, o Colin Farrell e uma dezena de escritores geniais. Mas, não vou fazer isso, porque já falei nos anos anteriores. Hoje, vou falar de pepino.

Pepino, facilmente, é meu vegetal de dupla conotação preferido. Ele dá um pau na beringela e arregaça a cenoura em benefícios, versatilidade e sabor. Pepinos, por exemplo, te deixam hidratado. Eles possuem 96% de água, que é inclusive mais nutritiva do que água normal. Além disso, cotém um punhado de vitaminas. O vegetal cilíndrico é tão pica (ops) que você nem precisa comer ele. Colocar uma fatia na pele ou nos olhos ajuda a aliviar dores de queimaduras e olheiras.

Se você for um gato, talvez não goste. Veja aqui.

Além disso, ele fica uma delícia num sanduíche, com coalhada ou cream cheese. Em conseva, nem se fala. Introduza um pepino em conserva em seu sanduíche ou hambúrguer para uma versão muito melhorada do lanche. Naturalmente, com tamanha polivalência culinária, em algum momento, alguém pensaria em enfiar o pepino em um coquetel. E foi justamente isso que Sam Ross – o mesmo cara que inventou lendas como o Penicillin e Paper Plane – fez, com seu Kentucky Maid.

O Kentucky Maid leva bourbon, limão, xarope de açúcar, hortelã e pepino. Por ser refrescante e fácil de fazer, o drink alcançou fama rapidamente. E como tudo no mundo da coquetelaria que faz muito sucesso, gerou uma pletora de variações. Por exemplo, ao trocar o whiskey por gim, tem-se o London Maid. Rum, Cuban Maid. Single malt japonês, bom, aí é nada – só mostra que você é rico e estúpido o suficiente para usar um malte japonês num coquetel que não precisa de malte japonês. Mas, enfim. Introduzindo Irish Whiskey, temos o tema desta matéria. O Irish Maid.

Na opinião deste Cão o Irish Maid é superior ao Kentucky Maid por alguns motivos. Primeiro, o drink é essencialmente refrescante. Utilizar um whiskey mais pesado, carregado de sabor ou adocicado, como a maioria dos bourbons, reduz sua drinkability. Portanto, Irish Whiskey é uma escolha perfeita. Além disso, por ter um perfil mais delicado, o destilado faz com que os outros elementos do coquetel se sobressaiam – e o afasta um pouco da óbvia comparação com o whiskey sour ou o Mint Julep.

Fora do Brasil, temos muitas opções de Irish. Por aqui, só Jameson.

É importante notar uma adição à receita do Irish Maid. Licor de Elderflower. Para reequilibrar o coquetel, usa-se meia dose de St. Germain. Em suas pesquisas, este Cão não localizou a origem dessa adição. Entretanto, recomenda que se use o licor – ele evita que o coquetel se torne excessivamente doce, se você aumentar o xarope de açúcar, ou muito cítrico. Bem, sem mais, coloquem seus pepinos em riste para um coquetel simples e refrescante, perfeito para o St. Patricks Day brasileiro. O Irish Maid.

IRISH MAID

INGREDIENTES

  • 60ml Irish Whiskey (este Cão usou Jameson)
  • 22,5ml xarope de açúcar
  • 22,5ml suco de limão siciliano
  • 15ml licor de elderflower
  • 2 fatias de pepino para amassar, mais duas para guarnição
  • parafernália para amassar e bater

PREPARO

  1. Amasse duas fatias de pepino dentro de uma coqueteleira
  2. na mesma coqueteleira, adicione os ingredientes líquidos. Bata vigorosamente com bastante gelo
  3. desça, com coagem, o coquetel num copo baixo, com bastante gelo
  4. decore com outras duas fatias de pepino.