Uso de whisky na coquetelaria – Transgressão

Hoje irei direto ao ponto. Sem longas introduções ou comparações, mesmo porque haverá oportunidade para isto no meio deste texto.

Há alguns dias lancei um post sobre um coquetel que sou apaixonado. O Rusty Compass. Ele é resultado do cruzamento entre um Blood and Sand e um Rusty Nail, e leva whisky turfado. Uma bela proporção de whisky insanamente turfado, capaz de superar o dulçor trazido pelo Drambuie. Depois de testar quase à exaustão e embriaguez, joguei a metafórica toalha e admiti – o melhor resultado levava Ardbeg. Um single malt de mais de trezentos reais. Era um drink tão delicioso quanto desesperadoramente caro.

Resolvi lançá-lo no Cão com essa ressalva. Relativizei um pouco a história, e até mesmo recomendei misturar outro whisky, e reduzir o Drambuie. Já esperava receber alguma repreensão de algum leitor, mas uma delas me pegou desguarnecido. É um pecado misturar whisky, whisky é pra tomar puro, já é cheio de sabor, ainda mais single malt. Me surpreendi. Eu não posso preparar coquetéis com whisky?

Meu futuro, depois de ter feito um Rusty Compass.

Deixe-me mudar o objeto para outro destilado. A vodka. Dave Wondrich uma vez disse que a ”A vodka é o peito de frango desossado e sem pele da coquetelaria – tudo tem a ver com o tempero“. Isso porque a vodka é um destilado cujo objetivo é ter o sabor mais neutro possível – ainda que, na prática, possamos notar até mesmo diferenças sensoriais por conta do terroir, como apontou Marcelo Sant’Iago, do Difford’s Guide.

Aliás, ela diverge da maioria dos destilados justamente por conta dessa característica, da busca pela neutralidade. Enquanto buscamos complexidade sensorial em destilados sofisticados, como whiskies e conhaques caros, procuramos o contrário na vodka. Quanto mais pura e neutra – ou seja, quanto menos sabor – mais sofisticada ela será.

Em relação à vodka, não há qualquer polêmica. Tanto entusiastas da vodka – devo confessar que conheço poucos – quanto produtores não veem qualquer problema em utilizar o destilado em coquetéis. Aliás, o mercado da vodka sempre foi essencialmente baseado na coquetelaria. Quando o consumo de gim aumentou, graças à preparação de coquetéis com o destilado, há alguns anos, o de vodka encontrou seu declínio.

Talvez isso tenha a ver com o fato da vodka ser, justamente, um destilado neutro. O que lhe dá sabor é a mistura. O whisky, porém, é uma bebida carregada de sabor. Seja por conta de seu new-make spirit defumado, no caso de certos maltes e blends, seja por conta de sua maturação em diferentes tipos de barricas, o whisky, sozinho, já possui imensa complexidade sensorial. Assim, alegadamente, utilizá-lo em um coquetel seria uma frivolidade.

Isso, no entanto, é uma tremenda simplificação. Talvez por preguiça, ou talvez pela enorme oferta de informações, em contraste com a escassez de tempo, somos induzidos a pensar – e escolher – entre pólos de dicotomias. Não há exceção ou ponderação, apenas absolutos. A é oposto a B, e só há A e B. Não há tons de cinza, exceto na subliteratura. E isso não apenas empobrece o discurso, como cria falácias. Mas já que você, querido leitor, chegou até este ponto do texto, vejo que esta é uma boa oportunidade para conduzir uma saudável – e cada vez mais rara – reflexão.

QUALQUER WHISK(E)Y.

Vou começar por uma observação simples. A Scotch Whisky Association (SWA) – a entidade de autorregulação escocesa responsável por produzir as mais importantes regras sobre Scotch Whisky – em seu website oficial, menciona a utilização de whisky em coquetéis. Segundo ela “não há regras para que tipo de scotch whisky deve ser usado em um coquetel, ainda que você vá descobrir que os blended scotch whiskies funcionam bem e são os mais comummente utilizados“.  A associação, inclusive, enumera e ensina a preparar algumas receitas. Então, bem, se a associação oficial escocesa responsável pela produção de whisky disse que pode, então, quem seria este canídeo para discordar?

Sede da SWA, onde todo mundo vai pro inferno quando morrer.

Além disso, há o argumento histórico. O (discutivelmente) primeiro coquetel do mundo – O Old Fashioned – utilizava whiskey. Whiskey, bitters, açúcar e gelo. Não há vodka, halls ou picolé. Drinks clássicos importantíssimos e muito mais antigos do que esta discussão purista, também. Como o Manhattan e o La Louisiane. Na realidade, o debate sobre o uso ou não de whisky como um insumo da coquetelaria nem deveria existir. O que deveria existir é uma discussão sobre qual whisky.

Para isto, deixe-me lançar mão de outra parábola. Imagine que você vá preparar um spaghetti carbonara. Há uma receita que pede queijo grana padano – que, aqui no Brasil, tem oferta escassa e preço um tanto elevado. Você, então, resolve substituir por parmesão. Não é a mesma coisa, mas a diferença não será tão gritante, exceto se seu paladar for muito treinado ou refinado. A receita vai funcionar. Talvez não tão bem quanto aquela de grana padano, mas ficará agradável. Porém, se você usar outro queijo muito diferente, um queijo frescal, por exemplo, ou requeijão, o resultado será muito diferente.

Você não precisa utilizar o queijo mais caro do supermercado, curado desde os tempos faraônicos e extraído das tetas de uma cabra virgem. Mas tampouco o mais barato. O custo de certo ingrediente é importante, mas não pode ser o único critério. Sua escolha deve se balizar no sabor da sua refeição. Em qual resultado você quer obter. Talvez um queijo mais curado e forte seja melhor do que algo mais delicado e cremoso para aquela receita. Da mesma forma – e voltando para o mundo do whisky – um coquetel como o La Louisiane exige um whiskey mais seco e picante – algo como um Bulleit ou Wild Turkey Rye – sob pena de ficar muito doce por conta do Benedictine.

OK. MAS NÃO COM SINGLE MALTS.

Bem, não é apenas a SWA que promove o uso de whisky na coquetelaria. Muitas marcas renomadas também o fazem. E nem estou falando de blends. A Glenfiddich, por exemplo, em seu website, enumera algumas receitas de drinks que levam seus maltes. Há, inclusive, uma criada pelo embaixador brasileiro da Glenfiddich, Christiano Protti. A Glenlivet, em seu website internacional, possui uma aba inteira apenas de coquetéis com seu malte – uma delas, inclusive, leva Glenlivet 15 anos, para aqueles que imaginam que apenas rótulos de entrada devem ser usados. A Auchentoshan, conhecido single malt das Lowlands escocesas, foi além. Desenvolveu um rótulo com o auxílio de bartenders, justamente para o uso em coquetéis – o Bartender’s Malt.

Todos os envolvidos também irão para o inferno.

Mas tudo bem, porque talvez você imagine que tudo isso é meramente marketing, e que whisky deve ser tomado apenas puro. Porque, sei lá, talvez não faça mesmo sentido usar um Glenfiddich onde se pode usar algo mais humilde. Há, entretanto, um elemento que deveria superar qualquer polêmica e abrir o gradiente entre o branco e o preto. Um elemento cada vez menos usado nos dias de hoje. O bom senso. Algo capaz de enriquecer a experiência sensorial. E não apenas por futilidade ou ostentação, como seria o caso de utilizar um whisky caro só por seu preço – mas por propósito. Meu caso, justamente, com o Rusty Compass.

Em certos casos, você somente conseguirá atingir determinado perfil sensorial se utilizar um single malt. Outro exemplo é um dos meus coquetéis favoritos – o Penicillin. O Penicillin é basicamente o remédio pra garganta da sua avó, se sua avó for uma entusiasta do whisky. Ele leva gengibre, mel, limão e dois tipos de whisky. Um frutado e outro bastante defumado – na receita original, o Compass Box Peat Monster, um blended malt de nicho, bastante defumado. Porém, por falta deste whisky no Brasil, as únicas opções que temos com perfil semelhante são single malts. Ardbeg 10 e Laphroaig 10.

Em casos como este, o uso do single malt não atende um capricho. Mas tem um propósito claro. Sensorialmente, é impossível atingir o mesmo resultado utilizando um whisky de outra categoria. É uma situação distinta da troca de um whisky mais em conta por outro mais caro – ou um single malt – com o mesmo perfil de sabor.

No final, o que mais importa é que a experiência seja boa. Da mesma forma que um entusiasta de whiskies investirá mais em uma garrafa mais sofisticada para ter uma experiência mais complexa, alguém que preza por seus coquetéis escolherá com esmero e propósito o whisky de sua receita, pelo mesmo motivo. A classificação nem importa tanto, ou, ao menos, não deveria importar.

O que todos buscamos é satisfação e alegria. E, para isso, há muito mais caminhos do que simplesmente A ou B.

13 thoughts on “Uso de whisky na coquetelaria – Transgressão

  1. Pecado seria, usar um Glenfiddich, Ardbeg 10 ou Laphroaig 10, misturado com energético. Certa vez um conhecido, comprou uma garrafa de Blue Label, na balada, e “TACOU” energético, só por “ostentação” ( Ao menos era o que ele queria mostrar)… Eu achei um pecado, mas… Sou a favor de coquetel com whisky… Na propaganda do Jack Daniel’s, eles misturam com Coca-cola, teve até uma promoção, que vinha na mesma caixa um Jack e uma Coca…

  2. Acho que nada melhor que a experiência pra desmistificar essas verdades..
    Ao me deparar com o que tinha disponível no ano novo, o único drink que poderia fazer (após uma breve busca) era o Green Gimlet (thanks dear dog). E as opções etílicas eram dois blends bem diferentes, o Red Label e o White Walker.
    Ainda bem que fiz não um, mas dois gimlets, usando um whisky de cada vez. Ver que o segundo (com o WW) ficou MUITO melhor foi quase tão prazeroso quanto cada gole. Não podia ter esclarecido melhor o que “perfil de sabor” significa.
    Ah, esse pessoal conservador..

    1. Haha, Vinícius, obrigado pelo relato. Adorei – e fiquei feliz que gostou do Green Gimlet. Assumo que foi um drink que testamos bastante antes de postar, justamente para nao desvirtuar o perfil de sabor do drink original.

      E sem provar, minha intuição etílica diz que com o White Walker, geladinho, deve ficar bem melhor que o Red. Vou testar. Deu vontade!

  3. Grande Cão!
    poderia dar carteirada, dizer que trabalho com misturas a muitos anos e que claramente esse não é um texto de um Bartender, mas não, só quero assinar em baixo e dizer que falta é bom senso mesmo nas misturas, queremos é proporcionar experiências e issonão tem regras e nem limites só bom senso e a maturidade de saber o que está sendo feito.

    abraços

    1. Wagner, muito obrigado! Fico feliz que profissionais leiam e aprovem o texto. Vocês são a espinha dorsal de nosso trabalho!

      É justamente isso que você disse. No caso dos bares, entendo que o CMV é importante. Que a maioria dos consumidores não verá diferença, e que é mais fácil encontrar um subterfúgio qualquer em nome do custo do que ir lá e misturar uma dose inteira de um single malt caríssimo. O preço final de um coquetel como o Rusty Compass, por exemplo, seria praticamente impagável. Mas acho que é importante, em alguns casos, e com bom senso, relevar em parte isso. O resultado é também importante!

      Um abraço e obrigado por acompanhar!!

  4. Caramba, mestre… texto veio muito a calhar.
    Primeiramente, pq tenho como uma de minhas prioridades de 2019 comprar um novo Ardbeg, segundo pq nestes tempos escaldantes cada vez mais estou tendo que trocar meu whisky puro por um drink gelado ou por alguma bebida, que não me causará culpa, caso eu sirva gelada hahaha. Acabo apelando para uma cerveja puro malte e estou estudando adquirir um vinho branco. Acabei lendo bastante a respeito, depois de passar pelo seu post sobre o JW Wine Cask Blend (inclusive não o encontrei na cady shop daqui).
    Bom, acho que o que vale é ter uma boa experiência, ainda que eu não tenho coragem de misturar meus whiskys mais “pesados” na coquetelaria hahaha.

    Abraço!

    1. Fala mestre! Desculpa a infinita demora em responder.

      O calor atrapalha mesmo. Assumo que tenho apelado para o ar-condicionado para exercer minha paixão pelo whisky.

      O Wine Cask é interessante. Mas acho que para você – no estágio que está – não vale a pena. É um blend simples, doce e jovem, com um frutado proveniente das barricas de vinho. Por enquanto, vá mesmo no fermentado de uva ou na lager geladíssima. Sem reprovações aqui. Muito pelo contrário, aliás!!

      Abraços!

  5. Sensacional a discussão!
    Nada contra o uso dos singles nos coquetéis, especialmente pela singularidade dos sabores. E como diz o velho ditado: mais vale um gosto do que um tostão no bolso, o uso do Ardbeg por conta do sabor da turfa está prá lá de justificado.

    1. Obrigado, Aluizio! É uma luta – muitas vezes, o preconceito (pré-conceito) supera a lógica. Bom saber que navegamos em águas amigáveis!

  6. Ótimo texto! (Inclusive pelos links para os drinks que eu ainda não tinha visto)

    Eu tinha esse “preconceito” até pouco tempo, para ser sincero. Achava uma heresia ver alguém desperdiçando o sagrado elixir dos deuses em coquetéis, mas vim mudando de ideia desde que percebi o quanto o calor infernal do verão deixa menos prazerosa a apreciação. Então se for pra por gelo, que pra mim altera muito o gosto, talvez seja melhor já fazer logo algo mais elaborado.
    Ainda não arrisquei nenhum, mas estou lendo sobre o assunto e acho que vou reservar uma dose do meu recém chegado Laphroaig e tentar um Penicillin.

    1. Julian, acho uma excelente ideia! Vai começar muitissimo bem, com talvez o meu coquetel preferido!

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