Coca-cola, Apple, Virgin. Há um monte de marcas com nomes curiosos. O refrigerante, por exemplo, tem uma explicação bem concreta. A receita original da Coca-Cola, inventada em 1885 pelo farmacêutico John Pemberton, de Atlanta, levava, literalmente, cocaína. Obviamente não o pó, mas um extrato da folha de coca, semelhante ao chá usado para o mal de altitude no Peru. A “cola” vinha da noz de kola, que contém cafeína.
A Apple, por outro lado, é um caso mais misterioso. Há infinitas teorias que tentam explicar a obsessão de Steve Jobs por maçãs. Uma delas é quase a síntese da navalha de Ockham – ele simplesmente curtia o gosto. Outras são mais sofisticadas. O nome Apple vem antes de Atari na lista telefônica, e Jobs trabalhara para a Atari. Ou seria uma homenagem ao matemático Alan Turing, um dos pais da computação e que morrera ao comer uma maçã com cianeto. Ou, talvez, seja uma conjugação de tudo isso. Como normalmente é no mundo real. As coisas tem mais e uma explicação. Mas, até hoje, muita gente se pergunta sobre a origem da Apple e da maçãzinha mordida em seu logo.
Quando você menciona o Presbyterian – o coquetel, claro – para alguém, a reação é parecida. Ninguém pergunta sobre os ingredientes, o que é raro. Mas, sim, sobre o curioso nome. Devo, aqui, no entanto, e de forma apologética, admitir que não sei a real razão de um Presbyterian se chamar Presbyterian – assim como a Apple. Na verdade, provavelmente, ninguém sabe. Uma teoria é que haja uma referência a um de seus ingredientes, como o drink leva scotch whisky, e a igreja presbiteriana foi fundada na Escócia. Ou isso, ou é só uma forma passiva-agressiva de algum ébrio homenagear a temperança cristã.
Uma certeza temos: não foi criação dele.
Independe da origem de seu curioso nome, porém, o Presbyterian é um drink extremamente versátil. E ridiculamente fácil de fazer também. É mais fácil até do que um Boulevardier, porque, no Boulevardier você usa três ingredientes, e no Presbyterian, só dois. Uma matéria do Liquor.com tem uma citação interessante de Alex Day e David Kaplan, do Death&Co, que ora transcrevo e traduzo de uma forma porca: “O Presbyterian clássico é parecido com o Moscow Mule ou Dark and Stormy, sendo, simplesmente, um destilado misturado com ginger ale”. A versão do bar – e do livro – inclusive, não pede scotch, mas Rye.
De certa forma, o Presbyterian é uma variação de outros infinitos coquetéis que já conhecemos, como o Highball e o Mamie Taylor. A ideia é a mesma. E o objetivo também – um drink fácil de beber e equilibrado, que pega emprestada a complexidade do whisky e devolve drinkability e refrescância. Perfeito para os momentos mais abrasadores de nosso ano. Como, por exemplo, o atual.
É importante mencionar aqui a questão do destilado. A versão mais clássica – e presbiteriana – do Presbyterian leva scotch whisky. Entretanto, atualmente, o coquetel pode ser feito com qualquer whisky que desejar. Além dos clássicos blends defumados, um que realmente me agrada é a versão com Rye. O apimentado herbal, que às vezes remete a hortelã do Rye realmente combina com uma ginger ale mais seca. Assim, querido leitor, use sua criatividade.
Por fim, vale apontar que algumas versões do Presbyterian pedem por partes iguais de ginger ale e água com gás, ou club soda. Faz sentido, se você utilizar um whisky leve, e que pode ficar escondido pela intensidade da Ginger Ale. A receita deve ser adaptada para cada gosto e de acordo com o destilado usado. Aliás, vamos a ela.
PRESBYTERIAN COCKTAIL
Ingredientes
50ml whisky (teste com Rye!)
100ml ginger ale, ou 50-50, ginger ale e club soda.
Preparo
Num copo Highball, adicione bastante gelo
Adicione o whisky e depois a ginger ale e a club soda (ou não).
com o auxilio de uma colher bailarina, dê uma mexidinha no fundo do copo, para certificar-se que os ingredientes foram misturados.
Há um aforismo de Seneca que diz que a sorte é onde a oportunidade encontra a preparação. Por ser o pai do estoicismo, e por estar convenientemente separado por dois milênios e poucos de história, posso quase certamente afirmar que Seneca não proferiu a máxima durante uma palestra de coaching. Aliás, coaches que proventura leiam este post, por favor, sejam mais estoicos e resistam à tentação de empregar Seneca em suas apresentações. Mas, enfim, mal comecei e já estou a divagar.
De volta, tenho minhas dúvidas sobre a irrefutabilidade do aforismo. E longe de mim falar de meritocracia, especialmente nessa prova. Mas conheço uma pá de gente, cujos nomes não vem ao caso, que está viva e bem só pela mais cândida sorte. Por outro lado, e confirmando Seneca, o Premio Darwin e o padre do balão estão aí (estou um pouco confuso sobre que tempo verbal usar) pra mostrar que às vezes um pouco de capacitação não faz mal a ninguém.
Preparação.
De uma forma pouco estoica, devo sucumbir à tentação de “apetrechar” a máxima do filósofo e transmutar um pouco seu sentido. Muitas vezes, reconhecer que teve sorte exige preparação e oportunidade. Foi meu caso, por exemplo, quando provei pela primeira vez o The Macallan 18 anos sherry oak. Tinha pouco mais de dezoito anos, e nenhuma preparação. Fora oferecido uma dose pelo pai de um amigo. Bebi sem muita cerimônia, sob um olhar semelhante àquele de um clérigo que condenava um herege, vindo do progenitor de meu coleguinha. Legal, Macallan 18 anos. Não tinha muita ideia do que estivera em meu copo.
Naquela oportunidade, eu não sabia. Mas levaria bons cinco anos para beber aquele whisky pela segunda vez – em uma degustação na antiga destilaria da The Macallan – e mais uma década para prová-lo pela terceira vez. Dessa vez, em terras brasileiras, no lançamento do rótulo por aqui. Depois de quinze anos, a expectativa era grande. Especialmente porque, dessa vez, eu sabia exatamente o que encontraria pela frente, e almejava saber se minha memória sensorial correspondia àquela maravilha. Um dos rótulos mais famosos de uma das mais famosas destilarias da Escócia – e um whisky que – inependente de qualquer esforço estoico – já começava a emocionar só pela tarjeta de preço.
Primeiro, vamos aos fatos. O The Macallan Sherry Oak 18 anos é maturado exclusivamente em barricas de carvalho europeu que antes contiveram vinho jerez espanhol. A idade estampada no rótulo indica que o componente mais jovem passou dezoito anos em ditas barricas. Sem prejuízo, entretanto, de whiskies bem mais maturados na mistura. Foi este perfil – o de carvalho europeu de ex-jerez – que contribuiu imensamente para a fama da The Macallan durante a década de oitenta. Seus rótulos mais reconhecidos e cobiçados utilizam, justamente, tais barricas. Dentre eles está o Sherry Oak 18 anos.
Aqui cabe um aviso e um respiro. Se você for um whisky geek, siga pelos próximos três parágrafos. Entretanto, se você só quiser saber se deve ou não dispender o equivalente ao PIB de uma pequena república européia neste single malt, te vejo daqui três paralelepípedos de palavras.
UMA DIGRESSÃO PARA OS WHISKY GEEKS
A The Macallan utiliza, de uma forma um pouquinho confusa, a palavra “seasoned” em seus rótulos – traduzido para cá como temperado – para explicar as barricas da linha Sherry Oak. “Maturados em barris temperados de vinho jerez”, dizem os rótulos. Essa é uma situação irônica. Uma destilaria que guarda tantos segredos, ao tentar esclarecer algo para o consumidor, causou ainda mais confusão. A confusão foi ainda maior porque a frase foi incluída após um rebranding da marca. O que poderia indicar que havia também uma guinada de processo. Mas nada disso aconteceu. Ao menos, não no mesmo momento do emprego da expressão.
A introdução da expressão “seasoned” serviu apenas para apontar algo que a The Macallan já fazia. E demonstra seu cuidado especial com as suas barricas. A destilaria encomenda de tanoarias espanholas, como a Tevasa, Vasyma e Hudosa, barris de carvalho europeu temperados com um jerez produzido sob medida para a The Macallan. Em outras palavras – o controle sobre o processo passa pela padronização do jerez também. Aquele jerez não é produzido para ser comercializado. Mas, tão somente, para trazer sabor às barricas que mais tarde serão preenchidas com o new-make da The Macallan.
Vasyma: barris de jerez para a The Macallan
O tempo, aqui, também é chave. Há um equilíbrio fino entre a potência do barril e a influência de jerez. O prazo que o barril deve guardar o vinho espanhol deve ser somente suficiente para que este entre em seus poros, e influencie no sabor do whisky. Mas, não grande o suficiente para roubar a potência da madeira. É um tradeoff, numa progressão bem ardilosa. Mais tempo pode, discutivelmente e até certo limite, trazer mais influência do indrink, mas menos da madeira. Seja como for, a própria The Macallan diz que o prazo de cura – que aliás, é um termo bem melhor do que tempero – é de um a dois anos.
PERFIL SENSORIAL E MAIS
O The Macallan Sherry Oak 18 anos traz notas de frutas secas, pimenta do reino, gengibre, canela, cravo e um certo floral bem sutil. O final é longo e seco. Essa é a parte mais interessante. Em comparação com o The Macallan Rare Cask, o Sherry Oak 18 anos é mais elegante, menos doce e mais apimentado. Mas, é também, mais sisudo. Se me permitem mais uma digressão para comparação. Se ambos fossem carros, provavelmente, seriam o mesmo modelo de carro esportivo. Mas o Rare Cask seria vermelho com faixas brancas. O Sherry Oak 18, todo preto.
O The Macallan Sherry Oak 18 anos é uma edição limitada anual da The Macallan. Cada whisky aponta, em seu rótulo, o ano de seu engarrafamento. O whisky provado para este post foi o do ano de 2021, que acaba de desembarcar no Brasil oficialmente. A introdução do ano no rótulo aponta duas coisas: primeiro, que pode haver pequenas variações de lotes, dependendo do ano. Em segundo, que este é um produto que pode apelar bastante para um colecionador.
Alambiques da The Macallan
Agora, preparem-se para talvez a parte que mais se afasta do estoicismo desta prova. O preço. No Brasil, uma garrafa de The Macallan Sherry Oak 18 anos custa, aproximadamente, sete mil reais. Nem Sêneca, com seu cinismo, poderia ficar indifrente a um preço destes. É uma quantidade de dinheiro que ultrapassa a barreira do valor relativo, e passa para a categoria do valor absoluto. Por conta disso, não vejo como poderia responder à dicotomia do “vale a pena”. Não seria justo – isso dependerá exclusivamente do comprador.
Mas – e colocando o pensador de lado – caso você tenha sorte, ou a oportunidade, prove o The Macallan 18 anos. Além de ser um single malt irretocável, é um dos mais clássicos, cobiçados e inspiradores single malts da Escócia. É inevitável reconhecer que, ter um single malt deste calibre à venda em nosso mercado é, irrefutavelmente, uma vitória e uma emoção. Na frente de um The Macallan 18 anos, não há estoicismo que resista.
THE MACALLAN 18 ANOS SHERRY OAK
Tipo: Single Malt com idade (18 anos)
Destilaria: The Macallan
Região: Speyside
ABV: 43%
Notas de prova:
Aroma: uvas passas, especiarias, gengibre.
Sabor: Frutas secas, ameixas secas, uvas passas. Pimenta do reino, cravo, canela. Final longo, apimentado, com gengibre e pimenta.
Na primeira parte deste texto expliquei, de uma forma bastante resumida, a questão das cinco regiões escocesas. Discorri sobre minha inveja daqueles que apreciam vinhos, uma bebida que transpira sofisticação e elegância. Também falei sobre as duas maiores regiões produtoras de whisky na Escócia: Highlands e Speyside. Se perdeu este texto, leia-o aqui.
LOWLANDS
Girvan, nas Lowlands
De uma forma pouco acadêmica, podemos dizer que tudo que não está dentro das Highlands e não é a ilha de Islay nem Campbeltown faz parte das Lowlands. Infelizmente a Escócia está longe de um país avantajado em extensão territorial. Por isso, não sobra muita coisa nesta estranha intersecção entre a matemática e a geografia.
Seja como for, a região das Lowlands está ao sul da Escócia e ao norte da Inglaterra. Segundo a SWA, numa definição brilhantemente econômica, Lowlands é aquilo que “está ao sul da linha que divide a região das Highlands da região das Lowlands”.
Estudiosos da história do whisky apontam que as destilarias das Lowlands seriam famosas por empregar tripla destilação. Algo bastante comum para whiskies irlandeses, mas bastante raro nos Escoceses. Esta regra, no entanto, faz pouco sentido. Apenas Auchentoshan continua empregando a técnica em seu core range. Ainda que exista poucas destilarias de malte, grande parte das de grãos estão nesta região – é o caso da Girvan.
Apesar da pequena quantidade de destilarias nos dias de hoje, as Lowlands já foram um importante polo de produção de whiskies. Se você é um apaixonado pelas famosas destilarias do passado, desativadas ou demolidas, talvez reconheça alguns nomes bastante concorridos em nossos dias, como St. Magdalene, Rosebank e Littlemill.
CAMPBELTOWN
Campbeltown
A história da região de Campbeltown é quase uma lição de economia. No começo do século XX, havia mais de trinta destilarias na região, que correspondia a pouco mais do que um vilarejo em uma península, localizada na parte oeste da Escócia. Naquela época, Campbeltown era conhecida como a capital mundial do whisky.
Acontece que – perdão pela ambiguidade cretina – as destilarias exageraram na dose. Elas produziram tanto whisky que em pouco tempo não havia mercado consumidor capaz de dar cabo dos produtos vendidos. Para piorar, o maior mercado consumidor da época eram os Estados Unidos, que sofria com a recessão e a instauração da Lei Seca na década de vinte.
Assim, por conta da abundância de produção e o minguante mercado, pouquíssimas destilarias resistiram. Atualmente, Campbeltown possui apenas três. Springbank, Glen Scotia e Glengyle – que na verdade é uma espécie de extensão da Springbank. Aliás, aqui está uma história confusa. A destilaria Glengyle produz um single malt chamado Kilkerran, que é, na verdade, o nome de outra destilaria que foi demolida. É que os direitos sobre o nome Glengyle pertencem à Glen Scotia, vizinha da Springbank.
Segundo a SWA, Campbeltown é “o sul do ward de Kintyre do conselho de Argyll & Bute, conforme a Ordem Eleitoral de Argyll & Bute de 2006”. Ainda que Campbeltown esteja longe de ser um importante polo produtor de whisky da atualidade, seus maltes são bastante reconhecidos.
ISLAY
Kildalton Cross, em Islay
Tento tanto quanto posso manter minha imparcialidade. Mas dessa vez terei que abrir uma exceção, já que deixei o melhor para o final. Islay é uma ilha localizada a oeste da parte continental da Escócia. A classificação da SWA é até redundante: a região de Islay engloba a ilha de Islay, em Argyll.
Islay talvez seja o melhor exemplo de uma região com perfil sensorial bem delineado. É que a maioria das destilarias da ilha produz um malte incontestavelmente defumado e medicinal. Algo que, apesar de ser produzido também nas destilarias das demais regiões, é predominante nesta ilha.
Islay conta com oito destilarias ativas: Ardbeg, Bowmore, Bruichladdich, Bunnahabhain, Caol Ila, Kilchoman, Lagavulin e Laphroaig. Há também uma celebridade do passado, a Port Ellen, um dos mais valorizados maltes por colecionadores, que foi convertida em malting floor e fornece matéria prima para outras destilarias.
Todas as destilarias de Islay possuem ao menos uma expressão enfumaçada. A maioria delas, porém, tem quase seu portfólio inteiro com essa característica. Exceções são a Bruichladdich e Bunnahabhain, que possuem linhas inteiras de single malts sem qualquer traço de fumaça.
CONCLUSÃO
Apesar da quase irrelevância das regiões – com exceção de Islay – muitos ainda insistem em suas características históricas. Talvez por uma histeria classificatória, ou por não lidarmos bem com o fato de que tudo tende ao caos e a entropia. Ou, quiçá, seja porque temos uma necessidade inata de identificação. Precisamos classificar para separar, de alguma forma, aquilo que gostamos daquilo que não nos agrada. Polarizar –de uma forma saudável – é uma forma de arriscar menos.
O problema disso é que arriscar é justamente a alma do negócio. Como já repeti uma centena de vezes, a formação do gosto passa pela experiência. Eu jamais poderia dizer que gosto dos whiskies enfumaçados se não os tivesse experimentado. Da mesma forma, não poderia afirmar que não gosto dos single malts das Highlands só porque, em algum momento de minha vida, tenho tomado meia dúzia de whiskies medíocres de lá.
Abrir mão das classificações e criar seu próprio gosto é aumentar seu próprio leque de opções. Assim, o conselho deste Cão é que experimente tudo aquilo que lhe interessar. Leia, pesquise, entenda. Crie sua própria classificação. Afinal, ela é a única que realmente deveria importar para você.
Uma vez disse por aqui que eu queria gostar mais de vinho. Pois é.
É que vinho quase não é bebida alcoólica. Tenho um par de amigos que não bebe, mas toma uma taça de vinho de vez em quando. Afinal, faz bem para o coração.
Vinho é elegante. Em certas situações, beber vinho é quase excêntrico. Sonho em degustar um belo Dolcetto D’Alba vestindo um colorido robe de chambres ao som de algum compositor pós-gótico. Mas, infelizmente, nem saberia identificar um belo Dolcetto D’Alba. Além disso, não tenho nem roupão e sou bem mais propenso à música clássica moderna ou ao rock.
Vinho também é cultura. É quase um curso em gastro-eno-geografia, se o termo gastro-eno-geografia existisse. As pessoas comentam sobre diferenças entre regiões, safras e uvas. Sobre aquele pequeno produtor cujo chateau produz apenas mil garrafas por ano, mas que é o melhor vinho daquele terroir. Aliás, adoraria poder falar sobre terroir de certo whisky. Mas isso é outro papo. Ou não.
Queria que whisky fosse legal como vinho.
Caso você já tenha dado seus primeiros passos no mundo do whisky, talvez tenha esbarrado na clássica divisão de regiões da Escócia. São cinco. Highlands, Campbeltown, Speyside, Islay e Lowlands. Esta é a classificação oficial fornecida pela Scoch Whisky Association, e proveniente das Scotch Whisky Regulations de 2009 – documento que regulamenta a produção e comercialização da bebida.
E caso você já tenha certa intimidade com a bebida, talvez tenha notado que não há qualquer menção ao território das ilhas na classificação oficial. Acontece que, oficialmente, as “Islands”, como são conhecidas, fazem parte das Highlands. Ainda que certa empresa do mundo dos destilados tente nos convencer do contrário. Uma grande empresa, que criou uma linha de maltes clássicos, com representantes de seis regiões da Escócia.
Seja como for, trago más notícias. Atualmente, as regiões possuem pouquíssima importância. Até meados do século XX, elas ainda poderiam fornecer algumas pistas sobre as características dos maltes, mesmo que já existissem numerosas exceções. Hoje em dia, e perdão pela opinião um pouco extrema, a classificação faz pouco sentido.
Ainda assim, a divisão permanece. Talvez porque nós, seres humanos, sempre tentamos classificar e dividir, mesmo o inclassificável ou indivisível. Ou talvez porque nós, amantes de whiskies, temos uma certa inveja dos apreciadores de vinho, e todo aquele papo sobre terroir. Por conta desta insistência, explicarei brevemente as regiões e suas características históricas, de acordo com a classificação da SWA.
É importante apontar que, ainda que a própria SWA insista que há um perfil sensorial clássico para cada região, a origem da classificação pouco tem a ver com aroma ou sabor. A divisão foi feita com base nos estudos de Michael Jackson (não, não o rei do pop, mas o estudioso de cervejas e whisky), que levou em conta fatores históricos de cada região.
O verdadeiro rei.
Assim, por exemplo, a região de Campbeltown está separada das Highlands não por qualquer diferença em seu perfil sensorial -afinal, o lugar tem apenas três destilarias. Mas, porque, históricamente, faz sentido. Campbeltown foi o centro da produção de scotch whisky antes da época da Lei Seca Norte-Americana. E, depois do Volstead, encontrou sua ruína. Leia mais sobre isso aqui.
De toda forma, vamos às regiões, como manda o livrinho.
HIGHLANDS
Eilean Donan Castle, na região das Highlands, a caminho de Skye.
Vamos começar pela maior delas. As Highlands incluem quase tudo que está ao norte da linha imaginária das Lowlands. Ou seja, quase a Escócia inteira. Por conta da extensão territorial, há uma enorme variedade de maltes, com as mais diferentes características organolépticas. Há whiskies florais e leves, como os Glenmorangie, e whiskies oleosos e turfados, como os Highland Park.
É virtualmente impossível estabelecer as características em comum entre os whiskies das Highlands – exceto, é claro, pelo fato de serem todos whiskies. A situação fica ainda pior se pensarmos que todas as ilhas a oeste da parte continental da Escócia – com exceção de Islay – fazem parte das Highlands.
Assim, destilarias tão diferentes como Highland Park, Tobermory, Jura, Arran, Ben Nevis, Oban, Aberfeldy, Pulteney, Clynelish e Glenmorangie fazem parte do mesmo grupo. Não há qualquer lógica que justifique esse agrupamento, considerando apenas perfil sensorial.
Para resolver esta aparente crise de personalidade da região, alguns autores propuseram uma subdivisão extraoficial do território. Por ela, haveriam diferenças entre os whiskies das regiões norte, sul, leste, oeste e das ilhas que compõe as Highlands. Mas como nem essa classificação funciona direito se submetida a escrutínio detalhado (Dalmore, e Glenmorangie? Scapa e Highland Park?), deixarei o assunto por aqui.
SPEYSIDE
O Castelo de Balvenie, em Speyside.
A região de Speyside está no coração das Highlands. É lá que está mais da metade das destilarias da Escócia, assim como as três maiores – Glenlivet, Glenfiddich e The Macallan. De acordo com a SWA, Speyside é constituída por wards – uma espécie de município – enumerados em seu texto. Se você não está com sono e quer saber quais são, os descreverei no parágrafo seguinte. Caso contrário, vejo vocês daqui um paralelepípedo de texto.
Bem, inspire profundamente, porque aí vai. Speyside é constituída pelos wards de Buckie, Elgin City North, Elgin City South, Fochabers Lhanbryde, Forres, Heldon e Laich, Keith e Cullen e Speyside Glenlivet do conselho de Moray, de acordo com a Ordem Eleitoral de Moray de 2006; bem como os wards de Badenoch e Strathspey do conselho das Highands, de acordo com a Ordem Eleitoral das Highlands de 2006.
A região de Speyside, como o nome sugere, é cortada pelo rio Spey. No passado, acesso fácil à água era importante. Assim, muitas destilarias preferiram se instalar próximas àquele rio ou seus afluentes – um dos maiores da Escócia em extensão, apenas atrás dos rios Tay e Clyde. Além do trio de gigantes, Speyside é o lar de destilarias como Aberlour, Mortlach, Glenfarclas, Craigellachie, Cardhu, Balvenie, Kininvie, Benromach, Tomintoul, Benriach, Longmorn, Glen Grant e Strahisla, entre muitas outras.
Em tese, o perfil de Speyside é frutado, equilibrado e complexo. São whiskies encorpados ou de corpo médio, e que utilizam maturações vínicas. Faz sentido até certo ponto – de fato, a maioria dos whiskies da região se encaixam nessa descrição. Mas há exceções.
No próximo texto este Cão tratará das regiões de Lowlands, Islay e Campbeltown – ACESSE AQUI
Ouvi – ou li – por aí. Dois mil e vinte e um foi um ano de crescimento. De amadurecer, ganhar experiência e exercitar a resiliência. Com toda a vênia, pra mim, não foi não. Pra mim, foi igualzinho dois mil e vinte, que também não teve nada de amadurecimento, experiência e resiliência. Mas, sim, de dedo naquele lugar que prefiro não nominar em prol dos bots do Google, e gritaria. Foi um caos. Se o último par de anos fosse uma peça de carne, seria um wagyu bem marmorizado. A gordura seria o tédio e a carne o desespero – que, muitas vezes, eram simultâneos ou minuciosamente entremeados.
Entretanto, dois mil e vinte e um não foi um completo desastre. Devo assumir que teve um pouquinho, bem pouquinho, de autoconhecimento. Reafirmei, por exemplo, que eu realmente gosto de beber. Muitas vezes sozinho. No escuro. E feliz. Outras vezes, assistindo filmes. Aliás, se tem uma coisa que realmente ganhou força nesse ano, foi minha paixão por cinema. Mas você, querido e fiel leitor, já sabe disso. É tipo naquele filme que saiu recentemente, quando uma coisa não precisa ser dita, mas mesmo assim aparece lá o Andrew Garfield cantando em off sobre um troço ultra óbvio, quebrando a quarta parede, e todo mundo acha incrível – menos eu.
Em resumo, aos trinta e sete, descobri que eu gosto mesmo é de ver filme em casa e beber. E me regojizo no sofá toda vez que um whisky que gosto – ou nem preciso gostar – aparece na tela. Normalmente, eles são personagens secundarios. Apenas lá como um pretexto para algum personagem bebericar enquanto conta cartas, escreve bilhetes ou discute com alguém. Mas, poucas vezes, eles assumem um papel importante na narrativa e (quase) ganham o protagonismo. Separei aqui cinco destes momentos. Vamos a eles.
ENCONTROS E DESENCONTROS – SUNTORY HIBIKI
Não dá pra começar de outra forma. For relaxing times, make it a suntory time. O engraçado é que da primeira vez que vi o filme de Sofia Coppolla, em que Bill Murray interpreta um ator decadente estrelando um comercial da Suntory, eu mal sabia o que era whisky japonês. Me parecia algo absurdamente inusitado. Hoje conheço a enorme qualidade do whisky nipônico, o que torna a cena ainda mais interessante – Especialmente do Hibiki, que protagoniza a cena. Gosto tanto dessa passagem que, às vezes, rio sozinho enquanto repito “can you do it like latpak?”. Mas, eu sou estranho.
SKYFALL – MACALLAN 1962
O final – da cena, não do filme – não é exatamente bom. Aliás, é terrível, e o comentário de Bond é bem infeliz. Mas, apesar disso, a cena em que o espião menos secreto do mundo divide um gole de The MAcallan 1962 com o vilão Silva é difícil de ser esquecida. A personagem de Javier Barden estende o copo a 007 e diz “Macallan cinquenta anos. Particularmente, um dos seus preferidos, não?”. Olha, eu queria ter mais inimigos como o James, pra ganhar um whisky de meio século de idade deles, de vez em quando.
KINGSMAN I – DALMORE SINCLAIR 1962
O gosto de James Bond por The Macallan 1962 é tão conhecida que virou até um easter egg em um outro filme de espionagem. Em Kingsman, um agente secreto tem em mãos outra garrafa de single malt daquele ano. No entanto, um Dalmore Sinclair – atualmente um líquido preciosíssmo de mais de cem mil libras. Ele diz expressamente “1962 Dalmore. Seria uma pena derramar nem que seja uma gota.”. E aí, ele é fatiado em dois pela Sofia Boutella. E não, isso não é um spoiler.
GOODFELLAS (OS BONS COMPANHEIROS) – CUTTY SARK
“Spider, vem aqui, me traz um Cutty e água, hein“. Quando o gangster Tommy DeVito vivido por Joe Pesci pede uma dose, é melhor que o bartender esteja esperto. Porque, se a ordem não for atendida, poderá levar uns tiros no pé. É exatamente o que acontece com o coitado do Spider, em uma das mais célebres cenas do filme de Scorcese. É engraçado que o Cutty Sark nem precisa entrar em cena para ser relembrado pela passagem, de tão clássica que é.
BLADE RUNNER – JOHNNIE WALKER BLACK LABEL
Tá, eu sei. Aqui a menção é proposital. Tão proposital que a própria Johnnie Walker lançou um Black Label com garrafa comemorativa do filme. Mas, independente da ação de marketing, o whisky exerce um papel importante em uma cena chave do filme. Aliás, se você tiver uma dessas garrafas, guarde. Virou item de colecionador.
Na escola, nunca fui um grande aluno de matemática. Ou física. O espectro todo de minhas notas variava de 1 a 9. Um a nove frações decimais, com o número inteiro sendo o cinco. E isso não tinha nada a ver com esmero. Por maior que fosse o esforço – e eu realmente tentava – o teto de minha performance era um cinco virgula nove. Biologia, entretanto, era outra história. Eu não fazia grande esforço em biologia. Pra falar a verdade, passava a aula desenhando tetrápodes escamados das mais variadas formas, de saurios a dragões. Mas, de alguma forma, a informação era assimilada, meio como num processo de osmose intelectual, e eu me saía bem.
Mas o mais surpreendente é que, apesar de todo conhecimento útil que adquiri na escola – como calcular juros compostos e desenhar gráficos de progressão geométrica – foi a parcela absolutamente inútil que triunfou. Aquela, que não fiz o menor esforço para adquirir. Como, por exemplo, saber o que é um platelminto e um nematelminto, um cnidário e uma pteridófita. E entender – de uma forma um pouco básica – o que é uma simbiose.
Dizer que o conhecimento foi completamente inútil, entretanto, é injusto. Na semana passada o Cãozinho me disse que o Venom, da Marvel, era um simbionte, e me pediu pra explicar o que significava aquilo. Sem ajuda do google, respondi, quase em um transe “filhotinho, o conceito de simbiose varia, mas ela pode ser definida como uma associação a longo prazo entre dois organismos de espécies diferentes. A fronteira do conceito está em definir se ela é benéfica para ambos, ou apenas para um, mas há sempre uma parte que se beneficia da interação“. E sem dar tempo para que ele retrucasse, continuei “é tipo a orquídea, que lança suas raízes sob as árvores para crescer, ou as mitocôndrias, que vivem no inteiror de suas células – e aliás, são idênticas às mitocôndrias da mamãe“.
Saí do transe. Talvez houvesse uma simbiose entre eu e minha professora de biologia. Aí, pensei em algo mais próximo de meu universo do que flores ou células. Whiskey. E coquetelaria. De certa forma, a história do rye whiskey e da coquetelaria é uma forma de simbiose. O Rye Whiskey somente retornou a nossas prateleiras graças à coquetelaria. E a coquetelaria clássica, pré Lei Seca norte-americana, devia muito ao Rye Whiskey. Vou me esforçar para explicar tudo isso aqui, sem que este texto se torne tão enfadonho quanto assistir uma orquídea crescer ao redor de uma árvore.
É importante começar por dizer que o Rye Whiskey não era o destilado de preferência nos Estados Unidos colonial. E nem o bourbon. Na verdade, o troféu era do rum. Basta lembrar que os Estados Unidos fazia parte da constelação de colônias da Inglaterra, juntamente com o Caribe. Parte do rum vinha pronto do Caribe. A outra parte, era destilado na terra do frango frito. Bastava que as ilhas caribenhas fornecessem a matéria prima – melaço de cana. O que era natural, considerando que todos estavam sob o comando da coroa britânica, e havia uma prolífica atividade de troca entre as colônias.
A Ryevolução Americana
Entretanto, em 1775 houve um pequeno percalço nesse maravilhoso escambo etílico. Foi o começo da Revolução Americana. Os Estados Unidos declararam guerra contra a Inglaterra, o que culminou na independência daquele, em 1783. Por conta disso, o melaço e o rum passaram a rarear na jovem nação independente. Natural, considerando que aquele país acabara de romper relações com uma das maiores potências navais do século dezoito. Os atletas do álcool norte americanos se encontraram em um dilema. Finalmente livres, mas sóbrios. Por sorte – ou engenho – porém, essa falta foi rapidamente suprida.
Pelo centeio!
Os estados de Maryland e Pensilvânia tiveram boa parte de sua colonização feita por irlandeses e escoceses. Com eles, veio a tradição de destilar cevada e produzir whisky. O problema é que a cevada não se adaptava bem ao clima daqueles estados. Então, os colonos optaram pela alternativa mais próxima. Centeio. Whiskey de centeio – ou melhor, um destilado de centeio – era produzido nos Estados Unidos mesmo antes da independência. Entretanto, a produção era suficiente apenas para matar a sede da população local. O estilo predominante na Pensilvânia era conhecido como Monongahela Rye, por conta do local em que foi primeiro produzido – às margens do rio Monongahela.
Com a falta de rum, porém, o centeio teve finalmente espaço para crescer. E os colonos, descendentes dos irlandeses e escoceses, aproveitaram bem a oportunidade. Rapidamente a produção de whiskey de centeio passou do artesanal para o quase industrial. Maryland e Pensilvânia começaram a fornecer Rye Whiskey para todo território dos Estados Unidos. E a maturação era quase uma consequência. Não havia grandes linhas férreas ou estradas. Levava quase dois anos para atravessar do gélido norte até o úmido e acalentador sul, como Louisiana e Mississipi. O whisky, acondicionado em barris de carvalho, maturava durante a viagem.
O Rye Whiskey era algo tão difundido e consumido nos Estados Unidos durante os séculos dezoito e dezenove que George Washington passou a produzir whiskey de centeio na destilaria de sua fazenda, Mount Vernon, ao invés de rum. Para os padrões da época, sua destilaria era relativamente grande. Até hoje, por conta de esforços de preservação, é possível visitar o local e provar um pouquinho de um whiskey produzido até hoje por lá – destilado hoje em dia!
O encontro entre o Rye Whiskey e a coquetelaria sempre aconteceu. Era comum beber rye misturado. Entretanto, o casamento se intensificou em meados de 1850. É que assim como no norte o destilado predominante era o rum, no sul – especialmente em Louisiana – a bebida de preferência era o conhaque. Em boa parte, por conta da parcela de colonização francesa, especialmente em Nova Orleans, uma das mais prolíficas capitais do país. Mas, como sabemos, naquela época outro detalhe permitiu que o Rye Whiskey novamente ganhasse espaço. A phylloxera – um fungo que destruiu os vinhedos da frança, e reduziu em muito a produção do mais famoso brandy do mundo.
Deixe-me fazer uma breve pausa para explicar sobre Nova Orleans. Ao longo de sua história, New Orleans foi influenciada por franceses, espanhóis, ingleses e negros de diversas nações africanas. Foi a combinação de elementos destes povos que trouxe à cidade sua riqueza cultural – hoje um pólo turístico para amantes de música, literatura, cinema, arquitetura e culinária. E álcool. No século dezenove, a população daquela linda cidade era capaz de deglutir tudo que possuía álcool, mesmo que às vezes produzido sem muito esmero, e com gosto quiçá indesejado. Nova Orleans era um metafórico ralo para pastis, absinto, conhaque, whiskey, rum e vinhos dos mais distintos tipos.
O lugar.
Esta predisposição pelo álcool, aliada à enorme riqueza cultural, deu origem a alguns dos coquetéis mais famosos da história, como o Sazerac, Vieux Carré e – um preferido pessoal – La Louisiane. Foi lá também que nasceu uma das mais conhecidas marcas de bitters do mundo, a Peychaud’s. O Sazerac, aliás, é a chave para entender esta questão. Originalmente, o coquetel era produzido com um conhaque, chamado Sazerac de Forge et Fils. Porém, por conta da phylloxera, faltou Sazerac pra fazer Sazerac. E seu criador, então, passou a usar Rye Whiskey.
Este é um ponto importante para entender a simbiose dos dois elementos. O estilo predominante de whiskey no século dezenove, nos EUA, era Rye Whiskey. Assim, todos os coquetéis clássicos que conhecemos daquela época foram criados com Rye. Old Fashioned e Manhattan, por exemplo, eram originalmente feitos com Rye. E um rye whiskey um tanto diferente daquele que hoje conhecemos – com um pouco mais de centeio, menos milho, e menos maturado. Mais seco, mais herbal e apimentado. O que faz todo sentido, e nos ajuda a entender por que algumas receitas clássicas soam tão adocicadas para nosso paladar de hoje em dia.
O Volstead Act
Tudo ia bem. A indústria do Rye Whiskey prosperava, e os americanos cada vez mais iam aos copos. Tanto, mas tanto, que em 1919, o Congresso Norte-Americano aprovou o Volstead Act, por conta de pressão do movimento de temperança. Batizada por conta de Andrew Volstead, presidente do comitê judiciário que a produziu, a lei proibida o comércio, transporte e produção de quaisquer bebidas “intoxicantes” em todo o território americano. O “nobre experimento” como foi batizado, trouxe consequências para a indústria de bebida do mundo inteiro. No entanto, aquela mais afetada foi justamente a do whiskey americano, obviamente.
A Lei-Seca funcionou, a prinípio. Havia menos bêbados nas ruas, menos crime e também bem menos consumo de bebida. Ao longo dos anos, porém, a história mudou. A produção ilegal de álcool decolou, assim como o contrabando. Fortunas inteiras de foram erguidas sob o alicerce da venda de whiskey. Personagens lendários surgiram, como William McCoy e Al Capone. E nasceu também um estilo de balcão que hoje voltou à voga. Os speakeasies. Estima-se que apenas em Nova Iorque, durante a proibição, havia mais de cem mil deles. Aqui, a coquetelaria novamente proliferou. Com destilados de baixa qualidade, a habilidade do bartender era mais do que necessária para esconder o sabor terrível de algumas bebidas.
Bom, o pessoal tinha senso de humor.
Infelizmente, entretanto, a espinha dorsal da produção de Rye Whiskey não sobreviveu à Lei Seca. Com estoques literalmente jogados no ralo e a proibição do conusmo, a maioria das grandes destilarias legalizadas fechou suas portas. E quando, em 1933 o Volstead Act foi finalmente revogado, não foi o Rye Whiskey que preencheu o vácuo deixado pelo Rye Whiskey! Mas, sim, o Bourbon.
Existem algumas explicações para este fenômeno. E, como tudo, nem sempre a resposta é única. A primeira razão é geográfica. A maioria das destilarias de Rye Whiskey de Maryland e Pensilvânia se localizavam em pequenas fazendas, com logística difícil. A terra era mais cara também, e a economia não andava bem – era a época da Grande Depressão. No Kentucky e no Tennessee, porém, havia muita terra barata. E infraestrutura. O sistema férreo destes estados em 1940 era bem desenvolvido.
Ademais, havia também uma questão político-econômica. Para aliviar os efeitos da recessão, o governo dos Estados Unidos criou uma série de incentivos para os agricultores. Em razão de um lobby feito pelos produtores de milho, porém, o primeiro incentivo recaiu sobre o milho. Demorou mais de sete anos para que os produtores de centeio recebessem qualquer subsídio governamental. Naquele estágio, a indústira do whiskey de milho já criava rizomas bem mais profundos. Era bem mais barato produzir bourbon do que rye. Por fim, o perfil de sabor também não ajudava. Rye Whiskey passou a ser considerado um produto inferior, ultrapassado, forte e apimentado demais. O Bourbon, porém, era mais próximo do paladar médio do joe norteamericano.
Você pode querer qualquer coquetel, desde que ele seja um harvey wallbanger.
É curioso pensar também que a coquetelaria deu uma certa embarrigada depois da década de quarenta. Boa parte dos coquetéis clássicos, criados antes da Lei-Seca, perderam espaço. Na verdade, de 1939 até 1945, qualquer coisa que não atirasse projéteis ou tivesse hélices e um compartimento de bombas ficara em segundo plano. E quando o álcool voltou a ser prioridade no mundo, o foco do consumo havia alterado completamente. A vodka era a bebida de preferência, e a velocidade e padronização haviam suplantado a qualidade. Este é meio que um all-is-lost moment.
A produção de coquetéis passou do artesanal para algo quase industrial. Claro, fazia sentido, tudo devia ser rápido, fácil de ser feito e padronizado. Quanto mais industrializado, maior a garantia de padrão. E foi nessa época que nasceram coquetéis como o Long Island Iced Tea, Harvey Wallbanger e tudo aquilo que você consegue imaginar que sua avó beberia em um cruzeiro econômico para Punta del Este, só pra dar aquela brisa. E convenhamos, este não era um cenário que favorecia o Rye.
Que?!
De acordo com o bartender Rodolfo Bob, autor do O Bar Virtual “Quando voce pega a história da alimentação nos EUA, voce percebe que na primeira e segunda guerra, há uma preocupação enorme em conservação de alimentos. Não é apenas a ideia de industrialização fordista, mas também de cataclismas, e guerras“.
A questão da padronização trouxe também uma série de consequências, inclusive sociais. Conforme Marco De La Roche, do Mixology News “há a reorganização dos meios de Trabalho. A CLT começa a rolar em alguns países. E há um novo organograma, onde você não trabalha mais para o dono do negócio, mas para uma empresa. E cria-se uma estrutra básica do restaurante – com copeiro, bartender, gerente de bar etc. “
“Com isso, começa-se a trabalhar na especialização de cada um. Então você tem um grupo de bartenders que começa a se organizar. O resultado foi a Associação Internacional de Bartenders. (…) O objetivo era padronizar. Se voce tomasse um Manhattan em NYC, ele seria o mesmo em Massachussets num hotelzinho. (…) e isso deu origem a primeira carta-magna da coquetelaria, os IBA drinks.”
A padronização permitiu, com o tempo, que negócios vitoriosos fossem replicados quase ao infinito. O mesmo padrão de serviço – inclusive na gastronomia – podia ser aplicado em qualquer lugar. Aqui, estamos na década de cinquenta. Foi quando surgiram as grandes cadeias, como o TGI Friday’s, por exemplo. “Há aí meio que um limbo de não-criação, mas de reprodução, ainda que tenham surgido alguns poucos que hoje consideramos clássicos” explica Marco.
Foi esse movimento que se esticou até a década de oitenta. Juntamente, claro, com uma intenção de ruptura, cisão social e de gerações. Mas conflitos geracionais não se limitavam a ideologia política e social. Mas, também, hábitos, especialmente de consumo. E o Rye, assim como os coquetéis clássicos, representavam em boa parte estes valores considerados ultrapassados.
Golfinho de banana e drink azul. Ah, os anos oitenta!
O Ryenascimento
O centeio, no entanto, mais uma vez encontrou seu lugar no sol. E, em boa parte, por conta de sua história, e da coquetelaria. O movimento, entretanto, veio da cozinha para o balcão. Ou melhor, da nouvelle Cuisine, movimento que nasceu na década de 70, e foi ganhando bojo ao longo das três décadas seguintes. A ênfase estava na apresentação, leveza e equilíbrio, com forte intercâmbio com a culinária japonesa. Boa parte dos ingredientes industrializados passou a ser substituída por produções artesanais, próprias – uma forma de ajustar os mínimos detalhes sensoriais de cada receita. E foi essa nouvelle cuisine que estimulou o retorno da coquetelaria às suas raízes. Raízes, estas, entrelaçadas com aquelas do Rye Whiskey.
Seria presunção canina demais resumir, aqui, o que seguiu. Mas, feita essa ressalva, e pelo bem da coerência, vou tentar. O retorno da coquetelaria artesanal se deu por uma série de motivos. Um deles, a nouvelle cuisine. Outro, pelo anseio de rompimento com valores antigos, e criação de algo diferente. Seja como for, alguns bartenders durante o final da década de 80 passaram a resgatar receitas clássicas. Dale DeGroff, em 1988, encheu a carta de reabertura do Rainbow Room de Nova Iorque com clássicos esquecidos do Volsted Act.
Hide your pain Dale?
“Quando o Dale DeGroff começou a estudar elementos que são da gastronomia, fancy, procurar novos coqueteis, ele está influenciado por um movimento que veio no final da década de setenta, que é a nouvelle cuisine. Os grandes chefs começam a perceber que aqueles grandes pratos franceses não fazem muito sentido, e a inspiração vem em boa parte da gastronomia japonesa, como o empratamento, olhar para o ingrediente como algo especial“, explica Bob.
Em 1999 Sasha Petraske abriu o Milk and Honey, também em Nova Iorque. O bar era um rompimento com o cliché da época. Um lugar mais silencioso, cujo foco era o que estava no copo, e não na estética dos comensais. Boa parte de seus coquetéis era também baseado naquela coquetelaria, do começo do século vinte e um. De lá pra cá, o movimento decolou. Os nomes dos autores e bartenders no centro deste movimento são bem familiares hoje em dia. David Wondrich, Audrey Saunders, Julie Reiner, Morgenthaler, Sam Ross, dentre outros.
Estes autores e bartenders se debruçaram – às vezes literalmente – sobre a história da coquetelaria. E lá, encontraram referências a diversos coquetéis produzidos com Rye Whiskey. Notando o crescente interesse nos balcões pelo destilado ancestral, algumas destilarias americanas voltaram a olhá-lo com interesse. Foi o caso, por exemplo, da Buffalo Trace, proprietária da Sazerac, e que relançou seu famoso Sazerac Rye no mercado. Em pouco tempo, toda grande destilaria americana já tinha um rótulo de whiskey de centeio. George Dickel, Wild Turkey, Jim Beam. Havia até rótulos baseados na clássica lei do bottled-in-bond, como o Rittenhouse!
Com o tempo, a oferta cresceu e amadureceu. O Rye whiskey renasceu, mas não da mesma forma que era antes. Agora, o foco era o consumidor. Aquele que misturaria o whiskey no coquetel, mas que também, eventualmente, beberia puro, e às vezes inadvertidamente. Marcas como Jim Beam e Wild Turkey voltaram seus olhos para as receitas, de forma a adaptar o grão ao paladar médio atual. Reduziram um pouco o centeio, aumentaram o milho, bombaram a maturação. Tudo para aumentar a versatilidade do destilado. O jogo deu certo. Atualmente, é impossível pensar em coquetelaria sem rye whiskey.
Talvez você não se recorde o que é um nematelminto, uma pteridófita; ou se lembre como calcular uma integral. Mas, ao menos, não esquecerá por um bom tempo o que é uma simbiose. E, mais do que isso, agora sabe a história por trás de uma das mais incríveis bebidas do mundo – e de sua incrível relação de interdependência com a coquetelaria.
Eu acho engraçado como algumas línguas tem umas palavras super específicas. Alemão, por exemplo, tem duas que eu amo, e que – brilhantemente, na minha opinião – se ligam ao sentimento de culpa. A primeira é Drachenfutter. Drachenfutter define, de uma forma incrivelmente sucinta para um germânico, aquele presentinho safado que a gente dá pro companheiro ou companheira depois de fazer alguma besteirinha inocente. Tipo – e os exemplos aqui são totalmente fictícios – esquecer o aniversário de relacionamento, ter uma crise histérica durante alguma discussão ou chegar em casa miando e se arrastando como um leão marinho de tão bêbado às duas da manhã.
A outra é Schadenfreude. Que é mais ou menos o resumo de nosso ditado popular, que pimenta no orifício inferior dos outros é refresco. A palavra deriva de “shaden” (dano) e “freude” (felicidade). Literalmente, Schadenfreude é o prazer que sentimos em ver os outros se ferrando, na forma mais pura, cristalina e pouco egregiamente deliciosa. Como, por exemplo, quando você vê o brilho nos olhos da mocinha do aeroporto, ao dizer que seu vôo foi cancelado e reagendado pro dia seguinte, mas ela vai te acomodar no melhor quarto do hotel ao lado do aeroporto. Aquele, que ela secretamente sabe que equivalente a uma masmorra com luz elétrica.
Japonês é outra língua que tem palavras específicas. Mas, diferente dos alemães, as palavras nipônicas se ligam a equilíbrio. Uma delas é omotenashi. O equivalente mais próximo em português seria, quiçá, hospitalidade. Mas o conceito japonês é um pouco distinto. É uma atitude de oferecer sempre o melhor, apenas pelo prazer de bem servir, sem segundas intenções. Outra é Shinrinyoku. Que é uma derivação também de duas palavras, e define a atitude de meditar no meio de uma floresta. Mas tem que ser floresta. Não pode ser praia, nem deserto. Tem que ser floresta.
E depois medita na lavanderia tirando a terra da roupa.
Se juntarmos as duas palavras japonesas, teremos a definição perfeita do que é a Hakushu. Uma destilaria do grupo Suntory, que oferece um dos melhores whiskies do mundo, construída no meio de uma exuberante floresta. A Hakushu foi fundada em 1973, próxima ao monte Kaikomagatake. De acordo com a Suntory “A majestosa floresta que circunda a Destilaria Hakushu abriga uma abundância de variedades de plantas que refletem as muitas expressões da natureza japonesa. Os whiskies de malte aqui nascidos são simultaneamente abençoados com um microclima muito particular, florestas verdejantes e uma água de rara suavidade e pureza, só possível graças à filtração da chuva e da neve através de rochas graníticas milenares.” De sua linha, duas expressões acabam de desembarcar – ou melhor, retornar – ao Brasil. Hakushu 12 anos e o Hakushu Distiller’s Reserve, tema desta prova.
O Hakushu Distiller’s Reserve é a expressão de entrada da Hakushu. Ao contrário de seu irmão mais velho, o Hakushu 12, o Distiller’s Reserve tem uma nota mais herbácea, fresca, e menos enfumaçada. É igualmente floral, mas menos perfumado. Excepcionalmente equilibrado, com final longo e delicadamente enfumaçado. Aliás, é somente aqui que a turfa, usada na produção dos Hakushu, fica aparente. Na finalização da língua. Mesmo no aroma, o enfumaçado é bem discreto.
Antes de falar da maturação, cabe um adendo para estabelecer um sarrafo. Como vocês já sabem – ou não – quase todo single malt é um blend (uma mistura). Mas, um blend de maltes de uma mesma destilaria. A palavra “single” em “single malt” não faz referência ao grão, que é a cevada maltada. Mas sim à localização. “única destilaria“. Assim, normalmente, para criar padronização e complexidade, as destilarias misturam whiskies por elas produzidos em diversas expressões. Por exemplo, um barril de Hakushu de ex-jerez pode ser misturado com um de Hakushu de ex-bourbon. Dito isso, seguimos.
A composição do Hakushu Distiller’s Reserve conta com três parcelas principais distintas de seus whiskies. O primeiro, batizado pela própria destilaria de “jovem talento”, é um Hakushu pouco maturado, apenas levemente turfado, que traz o frescor ao malte. O segundo é um malte com aproximadamente 12 anos, com a clássica assinatura enfumaçada da Hakushu. E o último é um Hakushu com mais ou menos dezoito anos de maturação em barris de carvalho americano de ex-bourbon.
Shinrinyoku com whisky.
Boa parte do processo de produção da Hakushu contribui para o perfil herbal e relativamente leve. Como por exemplo seus washbacks (tanques de fermentação), que são feitos de madeira. Para trazer complexidade e variedade, a destilaria usa uma série de alambiques de diferentes alturas e formatos – isso é bem importante. A Hakushu é gigantesca. Inclusive, na década de oitenta, a destilaria passou por uma expansão, que a dividiu em Hakushu Oeste e Hakushu Leste. São mais de vinte e quatro alambiques diferentes. Isso lhe permite criar destilados tanto encorpados quanto leves, tendo mais liberdade ao produzir seus single malts e fornecer whiskies para a produção de blends.
Outro ponto bastante alardeado pela Hakushu é a sua água. “A água excepcionalmente suave da montanha de Hakushu se origina como água da chuva e neve derretida, que passa pelo Monte Kaikomagatake dos Alpes do Sul japoneses e se junta aos rios Ojira e Jingu no sopé da montanha. Com quatro estações distintas, o ar limpo e o clima fresco e úmido das vastas florestas de Hakushu permitem que a destilaria, uma das poucas situadas a uma altitude de 700 metros ou mais, produza uísque de alta qualidade através de um processo lento e sem pressa.“
Assim, com um pouco de omotenashi, e sem qualquer vestígio de Schadenfreude, meu conselho é que provem o Hakushu Distiller’s Reserve. Equilibrado e complexo, e a prova de que o single malt japonês possui também variedade sensorial incrível. Perfeito para ser provado em qualquer momento – especialmente lá, em paz e silêncio, no meio de uma floresta. O Hakushu Distiller’s Reserve garante o sucesso de qualquer Shinrinyoku.
HAKUSHU DISTILLER’S RESERVE
Tipo: Single Malt
Destilaria: Hakushu
Região: N/A – Japão
ABV: 40%
Notas de prova:
Aroma: floral, cítrico e herbal.
Sabor: início adocicado e herbal. Campim-limão, baunilha, caramelo. Final longo, cítrico e muito levemente enfumaçado.
Disponibilidade: à venda no Caledonia Whisky & Co. (nosso espaço em São Paulo) e lojas brasileiras.
Clássicos são clássicos por resistirem ao tempo. Por permanecerem relevantes, apesar da enorme força centrifuga do oblívio. Clássicos atravessam eras intocados, em detrimento do caos. E clássicos são, invariavelmente e inevitavelmente, copiados. Copiados, modificados, adaptados. Pense, por exemplo, na clássica cena das escadarias de Odessa, do filme Encouraçado Potemkin. Você não precisa nem ter visto o filme para ter a referência. A cena apresenta um carrinho de bebê descendo sozinho e sem controle uma escadaria, em meio a um enorme massacre promovido por soldados czaristas.
A cena da escadaria de Odessa foi uma das primeiras vezes que o cinema utilizou uma sequência de diferentes planos, cortados e montados, para trazer emoção. E funcionou – a cena foi infinitamente reproduzida e homenageada, a ponto de se tornar um clássico maior do que o próprio filme. Ela é referenciada, por exemplo, em Os Intocáveis de Brian de Palma, no tiroteio entre Al Capone e os policiais. Cena essa, que, por sua vez, foi homenageada na paródia Corra que a Polícia vem aí.
Clica aqui caso você não tenha a mais rasa ideia do que eu esteja falando.
É engraçado como, apesar da enorme diferença de tema nas cenas – e mesmo de humor – a essência a torma imediatamente reconhecível. Mesmo em exemplos menos óbvios, como Correspondente Estrangeiro, de Alfred Hitchcock. Os elementos são os mesmos. Escadas, desespero, queda. Nem precisa mais do carrinho de bebê. Mas não é apenas no cinema que um clássico é reproduzido quase à exaustão, mas mantém sua essência. Na coquetelaria também. Um dos grandes exemplos é o Manhattan.
Há infinitas variações de Manhattan. Troque bourbon por scotch whisky e você terá um Rob Roy. Mude os vermutes e terá um Perfect Manhattan. Coloque licor de maraschino e vermute seco e terá um Brooklyn. Com um pouco de Cherry Herring, cria-se um Remember the Maine. Com Fernet e xarope de açúcar, consegue-se um Toronto. Scotch defumado e PX dão origem ao Rapscallion. Mas todos estes drinks, apesar da miríade de ingredientes, buscam um perfil de sabor em comum. O vínico, meio ácido e ao mesmo tempo adocicado do whisky – o mesmo do Manhattan clássico.
O que nos leva, finalmente, ao coquetel tema desta prova. O Whisky in Church. Criado por Erik Reichborn-Kjennerud e Todd Smith do Dalva, de São Francisco, o drink é basicamente um Manhattan – ou melhor, um Rob Roy, que é um manhattan de scotch – só que com oloroso ao invés de vermute, e um pouquinho de maple (xarope de bordo) para equilibrar. O frutado fica por conta de bitters de cereja, que, na singela opinião deste cão, podem muito bem ser substituídas por Cherry Herring, com uma pequena adaptação.
É curioso que com um nome tão sugestivo e deliciosamente pecaminoso, não haja qualquer explicação sobre seu batismo. Nos resta apenas conjecturar. Talvez Whisky in Church seja um convite? Ou uma pequena indulgência realizada por um clérigo? Não sei. Certamente não é referência aos ingredientes. A receira original leva Smokehead, um single malt de destilaria não divulgada que pouca coisa tem de sagrado. Caso algum abençoado leitor saiba, favor destacar nos comentários.
Dalva. Templo?
Jerez – especialmente oloroso – e scotch whisky não parecem uma combinação exatamente criativa. Décadas de maturação deste em barricas daquele mostra, entretanto, que é uma prática que já atingiu sua excelência. Assim como, aliás, o Manhattan e, talvez, o cinema. Bem, sem mais, vamos à receita.
WHISKY IN CHURCH
INGREDIENTES
60ml whisky defumado
22,5ml jerez oloroso
5ml maple syrup
6 dashes de bitters de cereja, ou 5ml Cheery Heering.
parafernália para misturar
PREPARO
Adicione os ingredientes num mixing glass com bastante gelo. Misture e verta em um copo baixo com gelo.
Três de Janeiro, onze da manhã. Nenhum compromisso à vista pelos próximos dois dias. Que delícia, fazia um tempão que almejava pela mais cândida agenda – penso. Acho que vou aproveitar para resolver algumas bobeirinhas que não conseguira, por falta de tempo. Tipo cortar o cabelo. Passo os dedos pela nuca, como se para reafirmar a necessidade da toza. Três meses sem cortar, meus mullets reminescem a um cruzamento entre o Billy Ray Cyrus do anos oitenta e uma samambaia. Ligo na barbearia costumeira, mas o telefone só toca. Naturalmente, em dois mil e vinte e dois, recorro ao Instagram. Recesso até o dia sete. Melhor esperar e pensar em alguma outra pendência.
Já sei. Revisão do carro – que, aliás, há quatro meses suplica por um tal “serviço A”. Não estivesse acostumado à minha displicência, certamente já teria terminado em uma poça de óleo e chamas. Mas carros são tipo cachorros – quase o reflexo dos donos. E a única certeza que teríamos, pudesse meu carro pensar, é que ambos já tivemos tempos mais gloriosos. WhatsApp para a concessionária “oi”. Mensagem automática. Olá, agradecemos sua mensagem, estamos de férias coletivas até o dia onze, boas festas e um feliz 2022.
Esperando voltar do recesso.
Dia onze. Que capricho. Me resigno que não será hoje que resolverei nenhum de meus problemas. Quando no dia seis tentar ligar o carro e ele explodir em um enorme cogumelo ígneo, a perícia poderá se certificar que o corpo carbonizado em seu interior é realmente eu por conta das displicentes madeixas. Repenso minhas opções. Limpar a casa, trocar as luzes queimadas. Nada disso me parece muito animador. Observo o relógio, que marca meio dia em ponto. Acho que vou tomar um whisky e pensar no que fazer.
A escolha não leva mais do que dois segundos. The Macallan Double Cask 15 anos. Uma garrafa que me auto-presenteei de Natal, e que havia tomado menos de cinco mililitros – só pra degustação. Verto uma dose padrão na taça. Com todo tempo do mundo, melhor experimentar sem pressa. No aroma, frutas vermelhas, ameixa seca, e um fundo adocicado característico dos whiskies da destilaria. De certa forma, me remete ao The Macallan Sienna – mas um pouco mais vínico.
Paladar. A primeira coisa que me chama a atenção é a oleosidade. É engraçado como os The Macallan tem essa característica quase inconfundível. Um certo resinoso, com untuosidade. Em tese, isso se deve aos alambiques da destilaria – os mais baixos de toda Escócia. E incrivelmente pequenos, também, apesar do enorme volume da destilaria. São trinta e seis alambiques – doze de primeira destilação, vinte e quatro de segunda. A carga é de três mil e novecentos litros e aproximadamente treze mil litros, respectivamente.
Aliás, o processo de destilação todo da The Macallan prima por trazer o máximo de congêneres. Essa é a razão dos alambiques diminutos. E de suas engenharia também. Lyne arms voltados para baixo evitam o refluxo, assim como pescoços largos e baixos dos spirit stills. A moeda de troca é o corte. Por permitir a passagem de compostos pouco voláteis, a separação da cabeça, coração e cauda devem ser bem restritivos. Apenas 16% é aproveitado e vira single malt.
Alambiques da The Macallan
Pausa para contemplar este fato. O new-make, extremamente oleoso, leva tempo para maturar, e exige barricas de qualidade. A The Macallan usa predominantemente barricas de grande volume – acima dos quinhentos litros. Isso significa que o ponto de equilíbrio é somente atingido lá entre os doze e quinze anos. O carvalho europeu ajuda – é ele que traz taninos e especiarias, e agrega complexidade ao whisky. Aliás, a coloração do whisky é totalmente natural. Não é usado corante caramelo. Assim, o trabalho de padronização é redobrado. Deve-se observar aroma, paladar e também a cor.
Notas de frutas secas, pimenta do reino, cravo, canela e um pouco de gengibre. Mais uma vez, o The Macallan Sienna vem à minha mente. Um pouco menos apimentado, talvez, e mais frutado. Aliás, bem mais frutado que seu irmão Triple Cask 15 anos. Aqui, o perfil é mais próximo àquele clássico da The Macallan. Isso se deve à maturação, que ocorre somente em barris que foram previamente temperados com vinho jerez espanhol. Barricas, estas, tanto de carvalho americano quanto europeu.
Finalmente, tenho uma epifania e sei exatamente o que farei com meu tempo. Sento-me confortavelmente no sofá, meia dose na mão. Mullets e automóveis podem esperar. Hoje, preencherei o dia com whisky e cinema. Não há iniciativa que resista à inércia do terceiro dia do ano. O melhor a fazer é se render.
MACALLAN DOUBLE CASK 15 ANOS
Tipo: Single Malt com idade declarada (15 anos)
Destilaria: Macallan
Região: Speyside
ABV: 43%
Notas de prova:
Aroma: frutado, com uvas passas e especiarias.
Sabor: Frutas secas, ameixas, uvas passas. Final longo, com pimenta do reino, cravo e frutas.
Tenho que confessar uma coisa óbvia. Estou com saudades de viajar. É tanta que eu tô com saudades até da parte ruim. De ficar com o nariz ressecado no avião, sentir aquela encostadinha constrangedora do passageiro do lado enquanto ele tenta se acomodar na cadeira justamente para não dar aquela encostadinha constrangedora. E do barulho, de dormir meio na vertical e de ficar horas sem fazer nada. Aliás, esses dias sentei na cadeira mais apertada aqui de casa, liguei o ar-condicionado no máximo e o secador de cabelo do lado, só pra tentar simular aquele desconforto aéreo-sonoro-ortopédico.
Talvez, em 2022, essa minha ressaca passe, e eu finalmente possa alçar voo novamente. Entretanto, apesar de meu hiato aeronáutico, minha obrigação de apontar as melhores compras aos nobres e destemidos viajantes não foi olvidada. Por isso, preparei este derradeiro post – o último de 2021 – de um jeito meio que teórico, meio que por proxy. Então, não estranhem que não há foto para algumas garrafas, tampouco aquela tradicional composição da mala com as bebidas dentro, lá em cima. Fato é que provei todos os wiskies, com exceção do submencionado Maker’s Mark. Mas não as tenho mais – e também, nem foto.
Apologias concluídas, vamos ao que interessa. Preparei uma lista de whiskies que podem ser encontrados nos Duty-Free (freeshops) de aeroportos brasileiros. A base de pesquisa foi o terminal de desembarque de Guarulhos (GRU). Portanto, caso esteja chegando em outra localidade – meio insone e seco – lembre-se de conferir antes a disponibilidade destas belezinhas. E de outras, como Glenmorangies, que não estão à venda em SP. Organizado do mais caro pro mais barato.
Macallan Enigma
Apesar do nome cretino e quase apologético (afinal, o que é o Macallan Enigma? Ah, isso é um enigma), este single malt é incrível. O perfil é o clássico da The Macallan, com maturação em barris de carvalho europeu de ex-jerez, com notas de frutas vermelhas, uvas passas e ameixa.
É quase uma sacanagem recomendá-lo, especialmente por conta do preço. Duzentos e noventa e cinco Bidens, só pra não ficar feio quando arredondar pra trezentos. E isso no Duty Free. Não é fácil, mas é bom. E o estojo é lindo, você pode depois usar pra guardar aquele monte de tralha de lojinha de 1,99 que trouxe da viagem e nunca mais vai ver na vida.
Laphroaig PX
Defumado, ioado, intenso, oleoso, medicinal. Difícil pensar em algo que falte num Laphroaig. Mas, isso não significa que não pode ficar um pouquinho melhor. Ou, talvez, apenas diferente. Essa é a ideia do Laphroaig PX, que passa por uma finalização em barris de ex-jerez Pedro Ximenes. Que como vocês sabem porque leem o Cão, é um vinho fortificado e adocicado espanhol.
O resultado é um single malt (e agora desculpem-me por ser redundante) defumado, iodado, intenso, oleoso, medicinal, frutado e licoroso!
Longbranch
Alright, alright, alright, this is a nice whiskay, diria Matthew Mcconaughey. Ou melhor, diria não, provavelmente disse. O Longbranch foi criado em parceria entre o ator e Wild Turkey. Mas este está longe de ser só um produto promocionado por uma celebridade. Matthew e Eddie Russell – master distiller – passaram quase dois anos ajustando a fórmula e os processos para finalmente chegar a um resultado com personalidade e delicadeza.
O Wild Turkey Longbranch é um Wild Turkey com aproximadamente oito anos de maturação, e que passa por um processo bastante conhecido, mas improvável para a destilaria do peruzão. A filtragem por carvão. Na verdade, duas. A primeira, usando carvalho americano, e, a segunda, madeira de Mesquite – uma árvore comum no Texas. O resultado é um bourbon muito suave, adocicado na medida e amadeirado. Perfeito para se beber puro ou misturar.
Jack Daniel’s Tennessee Rye
Não é apenas um rye whiskey. É um Rye Whiskey da Jack Daniel’s. E histórico. O Jack Daniel’s Tennessee Rye é o primeiro lançamento da Jack Daniel’s com uma mashbill – a composição do mosto – diferente desde a época da Lei Seca Norte-americana, que aconteceu de 1920 a 1933. São mais de oitenta anos utilizando uma única receita, e com um sucesso literalmente entorpecedor.
O Jack Daniel’s Tennessee Rye possui uma mashbill de 70% centeio, 18% milho, e 12% cevada maltada. É quase o inverso da receita do onipresente Jack Daniels Old No. 7 ou seu irmão o Gentleman Jack, que leva mais de 80% de milho, 8% de centeio e 12% de cevada maltada. Isso traz ao Tennessee Rye um sabor de especiarias, cravo e canela, além de uma sensação seca, bastante incomum para os Jack Daniel’s.
Maker’s Mark 101 Proof
Gosta do Maker’s Mark mas acha que podia ter um pouquinho mais de intensidade? Bem, este aqui é para você. O Maker’s Mark 101 é a versão mais alcoolica do Maker’s, com – como sugere o nome – 50,5% de graduação alcoolica. Por cinquenta e um dólares, numa garrafa de um litro. Ah, edição limitada, com o pomposo nome de “exclusive edition”, exclusiva de Duty Free. Só não vá vacilar tentando encontrar a garrafa com a cerinha mais bonita, porque, senão, acaba.