5 vezes que o whisky (quase) roubou a cena do filme

Ouvi – ou li – por aí. Dois mil e vinte e um foi um ano de crescimento. De amadurecer, ganhar experiência e exercitar a resiliência. Com toda a vênia, pra mim, não foi não. Pra mim, foi igualzinho dois mil e vinte, que também não teve nada de amadurecimento, experiência e resiliência. Mas, sim, de dedo naquele lugar que prefiro não nominar em prol dos bots do Google, e gritaria. Foi um caos. Se o último par de anos fosse uma peça de carne, seria um wagyu bem marmorizado. A gordura seria o tédio e a carne o desespero – que, muitas vezes, eram simultâneos ou minuciosamente entremeados.

Entretanto, dois mil e vinte e um não foi um completo desastre. Devo assumir que teve um pouquinho, bem pouquinho, de autoconhecimento. Reafirmei, por exemplo, que eu realmente gosto de beber. Muitas vezes sozinho. No escuro. E feliz. Outras vezes, assistindo filmes. Aliás, se tem uma coisa que realmente ganhou força nesse ano, foi minha paixão por cinema. Mas você, querido e fiel leitor, já sabe disso. É tipo naquele filme que saiu recentemente, quando uma coisa não precisa ser dita, mas mesmo assim aparece lá o Andrew Garfield cantando em off sobre um troço ultra óbvio, quebrando a quarta parede, e todo mundo acha incrível – menos eu.

Em resumo, aos trinta e sete, descobri que eu gosto mesmo é de ver filme em casa e beber. E me regojizo no sofá toda vez que um whisky que gosto – ou nem preciso gostar – aparece na tela. Normalmente, eles são personagens secundarios. Apenas lá como um pretexto para algum personagem bebericar enquanto conta cartas, escreve bilhetes ou discute com alguém. Mas, poucas vezes, eles assumem um papel importante na narrativa e (quase) ganham o protagonismo. Separei aqui cinco destes momentos. Vamos a eles.

ENCONTROS E DESENCONTROS – SUNTORY HIBIKI

Não dá pra começar de outra forma. For relaxing times, make it a suntory time. O engraçado é que da primeira vez que vi o filme de Sofia Coppolla, em que Bill Murray interpreta um ator decadente estrelando um comercial da Suntory, eu mal sabia o que era whisky japonês. Me parecia algo absurdamente inusitado. Hoje conheço a enorme qualidade do whisky nipônico, o que torna a cena ainda mais interessante – Especialmente do Hibiki, que protagoniza a cena. Gosto tanto dessa passagem que, às vezes, rio sozinho enquanto repito “can you do it like latpak?”. Mas, eu sou estranho.

SKYFALL – MACALLAN 1962

O final – da cena, não do filme – não é exatamente bom. Aliás, é terrível, e o comentário de Bond é bem infeliz. Mas, apesar disso, a cena em que o espião menos secreto do mundo divide um gole de The MAcallan 1962 com o vilão Silva é difícil de ser esquecida. A personagem de Javier Barden estende o copo a 007 e diz “Macallan cinquenta anos. Particularmente, um dos seus preferidos, não?”. Olha, eu queria ter mais inimigos como o James, pra ganhar um whisky de meio século de idade deles, de vez em quando.

KINGSMAN I – DALMORE SINCLAIR 1962

O gosto de James Bond por The Macallan 1962 é tão conhecida que virou até um easter egg em um outro filme de espionagem. Em Kingsman, um agente secreto tem em mãos outra garrafa de single malt daquele ano. No entanto, um Dalmore Sinclair – atualmente um líquido preciosíssmo de mais de cem mil libras. Ele diz expressamente “1962 Dalmore. Seria uma pena derramar nem que seja uma gota.”. E aí, ele é fatiado em dois pela Sofia Boutella. E não, isso não é um spoiler.

GOODFELLAS (OS BONS COMPANHEIROS) – CUTTY SARK

Spider, vem aqui, me traz um Cutty e água, hein“. Quando o gangster Tommy DeVito vivido por Joe Pesci pede uma dose, é melhor que o bartender esteja esperto. Porque, se a ordem não for atendida, poderá levar uns tiros no pé. É exatamente o que acontece com o coitado do Spider, em uma das mais célebres cenas do filme de Scorcese. É engraçado que o Cutty Sark nem precisa entrar em cena para ser relembrado pela passagem, de tão clássica que é.

BLADE RUNNER – JOHNNIE WALKER BLACK LABEL

Tá, eu sei. Aqui a menção é proposital. Tão proposital que a própria Johnnie Walker lançou um Black Label com garrafa comemorativa do filme. Mas, independente da ação de marketing, o whisky exerce um papel importante em uma cena chave do filme. Aliás, se você tiver uma dessas garrafas, guarde. Virou item de colecionador.

Uma breve história do Rye Whiskey e a coquetelaria

Na escola, nunca fui um grande aluno de matemática. Ou física. O espectro todo de minhas notas variava de 1 a 9. Um a nove frações decimais, com o número inteiro sendo o cinco. E isso não tinha nada a ver com esmero. Por maior que fosse o esforço – e eu realmente tentava – o teto de minha performance era um cinco virgula nove. Biologia, entretanto, era outra história. Eu não fazia grande esforço em biologia. Pra falar a verdade, passava a aula desenhando tetrápodes escamados das mais variadas formas, de saurios a dragões. Mas, de alguma forma, a informação era assimilada, meio como num processo de osmose intelectual, e eu me saía bem.

Mas o mais surpreendente é que, apesar de todo conhecimento útil que adquiri na escola – como calcular juros compostos e desenhar gráficos de progressão geométrica – foi a parcela absolutamente inútil que triunfou. Aquela, que não fiz o menor esforço para adquirir. Como, por exemplo, saber o que é um platelminto e um nematelminto, um cnidário e uma pteridófita. E entender – de uma forma um pouco básica – o que é uma simbiose.

Dizer que o conhecimento foi completamente inútil, entretanto, é injusto. Na semana passada o Cãozinho me disse que o Venom, da Marvel, era um simbionte, e me pediu pra explicar o que significava aquilo. Sem ajuda do google, respondi, quase em um transe “filhotinho, o conceito de simbiose varia, mas ela pode ser definida como uma associação a longo prazo entre dois organismos de espécies diferentes. A fronteira do conceito está em definir se ela é benéfica para ambos, ou apenas para um, mas há sempre uma parte que se beneficia da interação“. E sem dar tempo para que ele retrucasse, continuei “é tipo a orquídea, que lança suas raízes sob as árvores para crescer, ou as mitocôndrias, que vivem no inteiror de suas células – e aliás, são idênticas às mitocôndrias da mamãe“.

Não entendeu? Clica aqui, nerd.

Saí do transe. Talvez houvesse uma simbiose entre eu e minha professora de biologia. Aí, pensei em algo mais próximo de meu universo do que flores ou células. Whiskey. E coquetelaria. De certa forma, a história do rye whiskey e da coquetelaria é uma forma de simbiose. O Rye Whiskey somente retornou a nossas prateleiras graças à coquetelaria. E a coquetelaria clássica, pré Lei Seca norte-americana, devia muito ao Rye Whiskey. Vou me esforçar para explicar tudo isso aqui, sem que este texto se torne tão enfadonho quanto assistir uma orquídea crescer ao redor de uma árvore.

É importante começar por dizer que o Rye Whiskey não era o destilado de preferência nos Estados Unidos colonial. E nem o bourbon. Na verdade, o troféu era do rum. Basta lembrar que os Estados Unidos fazia parte da constelação de colônias da Inglaterra, juntamente com o Caribe. Parte do rum vinha pronto do Caribe. A outra parte, era destilado na terra do frango frito. Bastava que as ilhas caribenhas fornecessem a matéria prima – melaço de cana. O que era natural, considerando que todos estavam sob o comando da coroa britânica, e havia uma prolífica atividade de troca entre as colônias.

A Ryevolução Americana

Entretanto, em 1775 houve um pequeno percalço nesse maravilhoso escambo etílico. Foi o começo da Revolução Americana. Os Estados Unidos declararam guerra contra a Inglaterra, o que culminou na independência daquele, em 1783. Por conta disso, o melaço e o rum passaram a rarear na jovem nação independente. Natural, considerando que aquele país acabara de romper relações com uma das maiores potências navais do século dezoito. Os atletas do álcool norte americanos se encontraram em um dilema. Finalmente livres, mas sóbrios. Por sorte – ou engenho – porém, essa falta foi rapidamente suprida.

Pelo centeio!

Os estados de Maryland e Pensilvânia tiveram boa parte de sua colonização feita por irlandeses e escoceses. Com eles, veio a tradição de destilar cevada e produzir whisky. O problema é que a cevada não se adaptava bem ao clima daqueles estados. Então, os colonos optaram pela alternativa mais próxima. Centeio. Whiskey de centeio – ou melhor, um destilado de centeio – era produzido nos Estados Unidos mesmo antes da independência. Entretanto, a produção era suficiente apenas para matar a sede da população local. O estilo predominante na Pensilvânia era conhecido como Monongahela Rye, por conta do local em que foi primeiro produzido – às margens do rio Monongahela.

Com a falta de rum, porém, o centeio teve finalmente espaço para crescer. E os colonos, descendentes dos irlandeses e escoceses, aproveitaram bem a oportunidade. Rapidamente a produção de whiskey de centeio passou do artesanal para o quase industrial. Maryland e Pensilvânia começaram a fornecer Rye Whiskey para todo território dos Estados Unidos. E a maturação era quase uma consequência. Não havia grandes linhas férreas ou estradas. Levava quase dois anos para atravessar do gélido norte até o úmido e acalentador sul, como Louisiana e Mississipi. O whisky, acondicionado em barris de carvalho, maturava durante a viagem.

O Rye Whiskey era algo tão difundido e consumido nos Estados Unidos durante os séculos dezoito e dezenove que George Washington passou a produzir whiskey de centeio na destilaria de sua fazenda, Mount Vernon, ao invés de rum. Para os padrões da época, sua destilaria era relativamente grande. Até hoje, por conta de esforços de preservação, é possível visitar o local e provar um pouquinho de um whiskey produzido até hoje por lá – destilado hoje em dia!

O encontro entre o Rye Whiskey e a coquetelaria sempre aconteceu. Era comum beber rye misturado. Entretanto, o casamento se intensificou em meados de 1850. É que assim como no norte o destilado predominante era o rum, no sul – especialmente em Louisiana – a bebida de preferência era o conhaque. Em boa parte, por conta da parcela de colonização francesa, especialmente em Nova Orleans, uma das mais prolíficas capitais do país. Mas, como sabemos, naquela época outro detalhe permitiu que o Rye Whiskey novamente ganhasse espaço. A phylloxera – um fungo que destruiu os vinhedos da frança, e reduziu em muito a produção do mais famoso brandy do mundo.

Deixe-me fazer uma breve pausa para explicar sobre Nova Orleans. Ao longo de sua história, New Orleans foi influenciada por franceses, espanhóis, ingleses e negros de diversas nações africanas. Foi a combinação de elementos destes povos que trouxe à cidade sua riqueza cultural – hoje um pólo turístico para amantes de música, literatura, cinema, arquitetura e culinária. E álcool. No século dezenove, a população daquela linda cidade era capaz de deglutir tudo que possuía álcool, mesmo que às vezes produzido sem muito esmero, e com gosto quiçá indesejado. Nova Orleans era um metafórico ralo para pastis, absinto, conhaque, whiskey, rum e vinhos dos mais distintos tipos.

O lugar.

Esta predisposição pelo álcool, aliada à enorme riqueza cultural, deu origem a alguns dos coquetéis mais famosos da história, como o Sazerac, Vieux Carré e – um preferido pessoal – La Louisiane. Foi lá também que nasceu uma das mais conhecidas marcas de bitters do mundo, a Peychaud’s. O Sazerac, aliás, é a chave para entender esta questão. Originalmente, o coquetel era produzido com um conhaque, chamado Sazerac de Forge et Fils. Porém, por conta da phylloxera, faltou Sazerac pra fazer Sazerac. E seu criador, então, passou a usar Rye Whiskey.

Este é um ponto importante para entender a simbiose dos dois elementos. O estilo predominante de whiskey no século dezenove, nos EUA, era Rye Whiskey. Assim, todos os coquetéis clássicos que conhecemos daquela época foram criados com Rye. Old Fashioned e Manhattan, por exemplo, eram originalmente feitos com Rye. E um rye whiskey um tanto diferente daquele que hoje conhecemos – com um pouco mais de centeio, menos milho, e menos maturado. Mais seco, mais herbal e apimentado. O que faz todo sentido, e nos ajuda a entender por que algumas receitas clássicas soam tão adocicadas para nosso paladar de hoje em dia.

O Volstead Act

Tudo ia bem. A indústria do Rye Whiskey prosperava, e os americanos cada vez mais iam aos copos. Tanto, mas tanto, que em 1919, o Congresso Norte-Americano aprovou o Volstead Act, por conta de pressão do movimento de temperança. Batizada por conta de Andrew Volstead, presidente do comitê judiciário que a produziu, a lei proibida o comércio, transporte e produção de quaisquer bebidas “intoxicantes” em todo o território americano. O “nobre experimento” como foi batizado, trouxe consequências para a indústria de bebida do mundo inteiro. No entanto, aquela mais afetada foi justamente a do whiskey americano, obviamente.

A Lei-Seca funcionou, a prinípio. Havia menos bêbados nas ruas, menos crime e também bem menos consumo de bebida. Ao longo dos anos, porém, a história mudou. A produção ilegal de álcool decolou, assim como o contrabando. Fortunas inteiras de foram erguidas sob o alicerce da venda de whiskey. Personagens lendários surgiram, como William McCoy e Al Capone. E nasceu também um estilo de balcão que hoje voltou à voga. Os speakeasies. Estima-se que apenas em Nova Iorque, durante a proibição, havia mais de cem mil deles. Aqui, a coquetelaria novamente proliferou. Com destilados de baixa qualidade, a habilidade do bartender era mais do que necessária para esconder o sabor terrível de algumas bebidas.

Bom, o pessoal tinha senso de humor.

Infelizmente, entretanto, a espinha dorsal da produção de Rye Whiskey não sobreviveu à Lei Seca. Com estoques literalmente jogados no ralo e a proibição do conusmo, a maioria das grandes destilarias legalizadas fechou suas portas. E quando, em 1933 o Volstead Act foi finalmente revogado, não foi o Rye Whiskey que preencheu o vácuo deixado pelo Rye Whiskey! Mas, sim, o Bourbon.

Existem algumas explicações para este fenômeno. E, como tudo, nem sempre a resposta é única. A primeira razão é geográfica. A maioria das destilarias de Rye Whiskey de Maryland e Pensilvânia se localizavam em pequenas fazendas, com logística difícil. A terra era mais cara também, e a economia não andava bem – era a época da Grande Depressão. No Kentucky e no Tennessee, porém, havia muita terra barata. E infraestrutura. O sistema férreo destes estados em 1940 era bem desenvolvido.

Ademais, havia também uma questão político-econômica. Para aliviar os efeitos da recessão, o governo dos Estados Unidos criou uma série de incentivos para os agricultores. Em razão de um lobby feito pelos produtores de milho, porém, o primeiro incentivo recaiu sobre o milho. Demorou mais de sete anos para que os produtores de centeio recebessem qualquer subsídio governamental. Naquele estágio, a indústira do whiskey de milho já criava rizomas bem mais profundos. Era bem mais barato produzir bourbon do que rye. Por fim, o perfil de sabor também não ajudava. Rye Whiskey passou a ser considerado um produto inferior, ultrapassado, forte e apimentado demais. O Bourbon, porém, era mais próximo do paladar médio do joe norteamericano.

Você pode querer qualquer coquetel, desde que ele seja um harvey wallbanger.

É curioso pensar também que a coquetelaria deu uma certa embarrigada depois da década de quarenta. Boa parte dos coquetéis clássicos, criados antes da Lei-Seca, perderam espaço. Na verdade, de 1939 até 1945, qualquer coisa que não atirasse projéteis ou tivesse hélices e um compartimento de bombas ficara em segundo plano. E quando o álcool voltou a ser prioridade no mundo, o foco do consumo havia alterado completamente. A vodka era a bebida de preferência, e a velocidade e padronização haviam suplantado a qualidade. Este é meio que um all-is-lost moment.

A produção de coquetéis passou do artesanal para algo quase industrial. Claro, fazia sentido, tudo devia ser rápido, fácil de ser feito e padronizado. Quanto mais industrializado, maior a garantia de padrão. E foi nessa época que nasceram coquetéis como o Long Island Iced Tea, Harvey Wallbanger e tudo aquilo que você consegue imaginar que sua avó beberia em um cruzeiro econômico para Punta del Este, só pra dar aquela brisa. E convenhamos, este não era um cenário que favorecia o Rye.

Que?!

De acordo com o bartender Rodolfo Bob, autor do O Bar VirtualQuando voce pega a história da alimentação nos EUA, voce percebe que na primeira e segunda guerra, há uma preocupação enorme em conservação de alimentos. Não é apenas a ideia de industrialização fordista, mas também de cataclismas, e guerras“.

A questão da padronização trouxe também uma série de consequências, inclusive sociais. Conforme Marco De La Roche, do Mixology News “há a reorganização dos meios de Trabalho. A CLT começa a rolar em alguns países. E há um novo organograma, onde você não trabalha mais para o dono do negócio, mas para uma empresa. E cria-se uma estrutra básica do restaurante – com copeiro, bartender, gerente de bar etc.

Com isso, começa-se a trabalhar na especialização de cada um. Então você tem um grupo de bartenders que começa a se organizar. O resultado foi a Associação Internacional de Bartenders. (…) O objetivo era padronizar. Se voce tomasse um Manhattan em NYC, ele seria o mesmo em Massachussets num hotelzinho. (…) e isso deu origem a primeira carta-magna da coquetelaria, os IBA drinks.”

A padronização permitiu, com o tempo, que negócios vitoriosos fossem replicados quase ao infinito. O mesmo padrão de serviço – inclusive na gastronomia – podia ser aplicado em qualquer lugar. Aqui, estamos na década de cinquenta. Foi quando surgiram as grandes cadeias, como o TGI Friday’s, por exemplo. “Há aí meio que um limbo de não-criação, mas de reprodução, ainda que tenham surgido alguns poucos que hoje consideramos clássicos” explica Marco.

Foi esse movimento que se esticou até a década de oitenta. Juntamente, claro, com uma intenção de ruptura, cisão social e de gerações. Mas conflitos geracionais não se limitavam a ideologia política e social. Mas, também, hábitos, especialmente de consumo. E o Rye, assim como os coquetéis clássicos, representavam em boa parte estes valores considerados ultrapassados.

Golfinho de banana e drink azul. Ah, os anos oitenta!

O Ryenascimento

O centeio, no entanto, mais uma vez encontrou seu lugar no sol. E, em boa parte, por conta de sua história, e da coquetelaria. O movimento, entretanto, veio da cozinha para o balcão. Ou melhor, da nouvelle Cuisine, movimento que nasceu na década de 70, e foi ganhando bojo ao longo das três décadas seguintes. A ênfase estava na apresentação, leveza e equilíbrio, com forte intercâmbio com a culinária japonesa. Boa parte dos ingredientes industrializados passou a ser substituída por produções artesanais, próprias – uma forma de ajustar os mínimos detalhes sensoriais de cada receita. E foi essa nouvelle cuisine que estimulou o retorno da coquetelaria às suas raízes. Raízes, estas, entrelaçadas com aquelas do Rye Whiskey.

Seria presunção canina demais resumir, aqui, o que seguiu. Mas, feita essa ressalva, e pelo bem da coerência, vou tentar. O retorno da coquetelaria artesanal se deu por uma série de motivos. Um deles, a nouvelle cuisine. Outro, pelo anseio de rompimento com valores antigos, e criação de algo diferente. Seja como for, alguns bartenders durante o final da década de 80 passaram a resgatar receitas clássicas. Dale DeGroff, em 1988, encheu a carta de reabertura do Rainbow Room de Nova Iorque com clássicos esquecidos do Volsted Act.

Hide your pain Dale?

Quando o Dale DeGroff começou a estudar elementos que são da gastronomia, fancy, procurar novos coqueteis, ele está influenciado por um movimento que veio no final da década de setenta, que é a nouvelle cuisine. Os grandes chefs começam a perceber que aqueles grandes pratos franceses não fazem muito sentido, e a inspiração vem em boa parte da gastronomia japonesa, como o empratamento, olhar para o ingrediente como algo especial“, explica Bob.

Em 1999 Sasha Petraske abriu o Milk and Honey, também em Nova Iorque. O bar era um rompimento com o cliché da época. Um lugar mais silencioso, cujo foco era o que estava no copo, e não na estética dos comensais. Boa parte de seus coquetéis era também baseado naquela coquetelaria, do começo do século vinte e um. De lá pra cá, o movimento decolou. Os nomes dos autores e bartenders no centro deste movimento são bem familiares hoje em dia. David Wondrich, Audrey Saunders, Julie Reiner, Morgenthaler, Sam Ross, dentre outros.

Estes autores e bartenders se debruçaram – às vezes literalmente – sobre a história da coquetelaria. E lá, encontraram referências a diversos coquetéis produzidos com Rye Whiskey. Notando o crescente interesse nos balcões pelo destilado ancestral, algumas destilarias americanas voltaram a olhá-lo com interesse. Foi o caso, por exemplo, da Buffalo Trace, proprietária da Sazerac, e que relançou seu famoso Sazerac Rye no mercado. Em pouco tempo, toda grande destilaria americana já tinha um rótulo de whiskey de centeio. George Dickel, Wild Turkey, Jim Beam. Havia até rótulos baseados na clássica lei do bottled-in-bond, como o Rittenhouse!

Aliás, para se ter um Rye, nem era preciso ter uma destilaria. Foi por muito tempo o caso de marcas bem famosas, como o Bulleit Rye, Angel’s Envy Finished Rye e o High West Double Rye, que compravam seu whiskey de centeio da famosa MGP, localizada em Lawrenceburg, Indiana. É até irônico. Marcas super jovens, que nem destilaria possuíam, compravam de uma destilaria quase sem marcas – especializada em vender whiskies para outros produtores – criada há mais de cento e setenta anos. Aliás, uma das poucas destilarias sobreviventes da Lei-seca, por muitos conhecida como a antiga Seagram’s.

Com o tempo, a oferta cresceu e amadureceu. O Rye whiskey renasceu, mas não da mesma forma que era antes. Agora, o foco era o consumidor. Aquele que misturaria o whiskey no coquetel, mas que também, eventualmente, beberia puro, e às vezes inadvertidamente. Marcas como Jim Beam e Wild Turkey voltaram seus olhos para as receitas, de forma a adaptar o grão ao paladar médio atual. Reduziram um pouco o centeio, aumentaram o milho, bombaram a maturação. Tudo para aumentar a versatilidade do destilado. O jogo deu certo. Atualmente, é impossível pensar em coquetelaria sem rye whiskey.

Talvez você não se recorde o que é um nematelminto, uma pteridófita; ou se lembre como calcular uma integral. Mas, ao menos, não esquecerá por um bom tempo o que é uma simbiose. E, mais do que isso, agora sabe a história por trás de uma das mais incríveis bebidas do mundo – e de sua incrível relação de interdependência com a coquetelaria.

Hakushu Distiller’s Reserve – Schadenfreude

Eu acho engraçado como algumas línguas tem umas palavras super específicas. Alemão, por exemplo, tem duas que eu amo, e que – brilhantemente, na minha opinião – se ligam ao sentimento de culpa. A primeira é Drachenfutter. Drachenfutter define, de uma forma incrivelmente sucinta para um germânico, aquele presentinho safado que a gente dá pro companheiro ou companheira depois de fazer alguma besteirinha inocente. Tipo – e os exemplos aqui são totalmente fictícios – esquecer o aniversário de relacionamento, ter uma crise histérica durante alguma discussão ou chegar em casa miando e se arrastando como um leão marinho de tão bêbado às duas da manhã.

A outra é Schadenfreude. Que é mais ou menos o resumo de nosso ditado popular, que pimenta no orifício inferior dos outros é refresco. A palavra deriva de “shaden” (dano) e “freude” (felicidade). Literalmente, Schadenfreude é o prazer que sentimos em ver os outros se ferrando, na forma mais pura, cristalina e pouco egregiamente deliciosa. Como, por exemplo, quando você vê o brilho nos olhos da mocinha do aeroporto, ao dizer que seu vôo foi cancelado e reagendado pro dia seguinte, mas ela vai te acomodar no melhor quarto do hotel ao lado do aeroporto. Aquele, que ela secretamente sabe que equivalente a uma masmorra com luz elétrica.

Japonês é outra língua que tem palavras específicas. Mas, diferente dos alemães, as palavras nipônicas se ligam a equilíbrio. Uma delas é omotenashi. O equivalente mais próximo em português seria, quiçá, hospitalidade. Mas o conceito japonês é um pouco distinto. É uma atitude de oferecer sempre o melhor, apenas pelo prazer de bem servir, sem segundas intenções. Outra é Shinrinyoku. Que é uma derivação também de duas palavras, e define a atitude de meditar no meio de uma floresta. Mas tem que ser floresta. Não pode ser praia, nem deserto. Tem que ser floresta.

E depois medita na lavanderia tirando a terra da roupa.

Se juntarmos as duas palavras japonesas, teremos a definição perfeita do que é a Hakushu. Uma destilaria do grupo Suntory, que oferece um dos melhores whiskies do mundo, construída no meio de uma exuberante floresta. A Hakushu foi fundada em 1973, próxima ao monte Kaikomagatake. De acordo com a Suntory “A majestosa floresta que circunda a Destilaria Hakushu abriga uma abundância de variedades de plantas que refletem as muitas expressões da natureza japonesa. Os whiskies de malte aqui nascidos são simultaneamente abençoados com um microclima muito particular, florestas verdejantes e uma água de rara suavidade e pureza, só possível graças à filtração da chuva e da neve através de rochas graníticas milenares.” De sua linha, duas expressões acabam de desembarcar – ou melhor, retornar – ao Brasil. Hakushu 12 anos e o Hakushu Distiller’s Reserve, tema desta prova.

O Hakushu Distiller’s Reserve é a expressão de entrada da Hakushu. Ao contrário de seu irmão mais velho, o Hakushu 12, o Distiller’s Reserve tem uma nota mais herbácea, fresca, e menos enfumaçada. É igualmente floral, mas menos perfumado. Excepcionalmente equilibrado, com final longo e delicadamente enfumaçado. Aliás, é somente aqui que a turfa, usada na produção dos Hakushu, fica aparente. Na finalização da língua. Mesmo no aroma, o enfumaçado é bem discreto.

Antes de falar da maturação, cabe um adendo para estabelecer um sarrafo. Como vocês já sabem – ou não – quase todo single malt é um blend (uma mistura). Mas, um blend de maltes de uma mesma destilaria. A palavra “single” em “single malt” não faz referência ao grão, que é a cevada maltada. Mas sim à localização. “única destilaria“. Assim, normalmente, para criar padronização e complexidade, as destilarias misturam whiskies por elas produzidos em diversas expressões. Por exemplo, um barril de Hakushu de ex-jerez pode ser misturado com um de Hakushu de ex-bourbon. Dito isso, seguimos.

A composição do Hakushu Distiller’s Reserve conta com três parcelas principais distintas de seus whiskies. O primeiro, batizado pela própria destilaria de “jovem talento”, é um Hakushu pouco maturado, apenas levemente turfado, que traz o frescor ao malte. O segundo é um malte com aproximadamente 12 anos, com a clássica assinatura enfumaçada da Hakushu. E o último é um Hakushu com mais ou menos dezoito anos de maturação em barris de carvalho americano de ex-bourbon.

Shinrinyoku com whisky.

Boa parte do processo de produção da Hakushu contribui para o perfil herbal e relativamente leve. Como por exemplo seus washbacks (tanques de fermentação), que são feitos de madeira. Para trazer complexidade e variedade, a destilaria usa uma série de alambiques de diferentes alturas e formatos – isso é bem importante. A Hakushu é gigantesca. Inclusive, na década de oitenta, a destilaria passou por uma expansão, que a dividiu em Hakushu Oeste e Hakushu Leste. São mais de vinte e quatro alambiques diferentes. Isso lhe permite criar destilados tanto encorpados quanto leves, tendo mais liberdade ao produzir seus single malts e fornecer whiskies para a produção de blends.

Outro ponto bastante alardeado pela Hakushu é a sua água. “A água excepcionalmente suave da montanha de Hakushu se origina como água da chuva e neve derretida, que passa pelo Monte Kaikomagatake dos Alpes do Sul japoneses e se junta aos rios Ojira e Jingu no sopé da montanha. Com quatro estações distintas, o ar limpo e o clima fresco e úmido das vastas florestas de Hakushu permitem que a destilaria, uma das poucas situadas a uma altitude de 700 metros ou mais, produza uísque de alta qualidade através de um processo lento e sem pressa.

Assim, com um pouco de omotenashi, e sem qualquer vestígio de Schadenfreude, meu conselho é que provem o Hakushu Distiller’s Reserve. Equilibrado e complexo, e a prova de que o single malt japonês possui também variedade sensorial incrível. Perfeito para ser provado em qualquer momento – especialmente lá, em paz e silêncio, no meio de uma floresta. O Hakushu Distiller’s Reserve garante o sucesso de qualquer Shinrinyoku.

HAKUSHU DISTILLER’S RESERVE

Tipo: Single Malt

Destilaria: Hakushu

Região: N/A – Japão

ABV: 40%

Notas de prova:

Aroma: floral, cítrico e herbal.

Sabor: início adocicado e herbal. Campim-limão, baunilha, caramelo. Final longo, cítrico e muito levemente enfumaçado.

 Disponibilidade: à venda no Caledonia Whisky & Co. (nosso espaço em São Paulo) e lojas brasileiras.

Whisky in Church – Clássicos Sagrados

Clássicos são clássicos por resistirem ao tempo. Por permanecerem relevantes, apesar da enorme força centrifuga do oblívio. Clássicos atravessam eras intocados, em detrimento do caos. E clássicos são, invariavelmente e inevitavelmente, copiados. Copiados, modificados, adaptados. Pense, por exemplo, na clássica cena das escadarias de Odessa, do filme Encouraçado Potemkin. Você não precisa nem ter visto o filme para ter a referência. A cena apresenta um carrinho de bebê descendo sozinho e sem controle uma escadaria, em meio a um enorme massacre promovido por soldados czaristas.

A cena da escadaria de Odessa foi uma das primeiras vezes que o cinema utilizou uma sequência de diferentes planos, cortados e montados, para trazer emoção. E funcionou – a cena foi infinitamente reproduzida e homenageada, a ponto de se tornar um clássico maior do que o próprio filme. Ela é referenciada, por exemplo, em Os Intocáveis de Brian de Palma, no tiroteio entre Al Capone e os policiais. Cena essa, que, por sua vez, foi homenageada na paródia Corra que a Polícia vem aí.

Clica aqui caso você não tenha a mais rasa ideia do que eu esteja falando.

É engraçado como, apesar da enorme diferença de tema nas cenas – e mesmo de humor – a essência a torma imediatamente reconhecível. Mesmo em exemplos menos óbvios, como Correspondente Estrangeiro, de Alfred Hitchcock. Os elementos são os mesmos. Escadas, desespero, queda. Nem precisa mais do carrinho de bebê. Mas não é apenas no cinema que um clássico é reproduzido quase à exaustão, mas mantém sua essência. Na coquetelaria também. Um dos grandes exemplos é o Manhattan.

Há infinitas variações de Manhattan. Troque bourbon por scotch whisky e você terá um Rob Roy. Mude os vermutes e terá um Perfect Manhattan. Coloque licor de maraschino e vermute seco e terá um Brooklyn. Com um pouco de Cherry Herring, cria-se um Remember the Maine. Com Fernet e xarope de açúcar, consegue-se um Toronto. Scotch defumado e PX dão origem ao Rapscallion. Mas todos estes drinks, apesar da miríade de ingredientes, buscam um perfil de sabor em comum. O vínico, meio ácido e ao mesmo tempo adocicado do whisky – o mesmo do Manhattan clássico.

O que nos leva, finalmente, ao coquetel tema desta prova. O Whisky in Church. Criado por Erik Reichborn-Kjennerud e Todd Smith do Dalva, de São Francisco, o drink é basicamente um Manhattan – ou melhor, um Rob Roy, que é um manhattan de scotch – só que com oloroso ao invés de vermute, e um pouquinho de maple (xarope de bordo) para equilibrar. O frutado fica por conta de bitters de cereja, que, na singela opinião deste cão, podem muito bem ser substituídas por Cherry Herring, com uma pequena adaptação.

É curioso que com um nome tão sugestivo e deliciosamente pecaminoso, não haja qualquer explicação sobre seu batismo. Nos resta apenas conjecturar. Talvez Whisky in Church seja um convite? Ou uma pequena indulgência realizada por um clérigo? Não sei. Certamente não é referência aos ingredientes. A receira original leva Smokehead, um single malt de destilaria não divulgada que pouca coisa tem de sagrado. Caso algum abençoado leitor saiba, favor destacar nos comentários.

Dalva. Templo?

Jerez – especialmente oloroso – e scotch whisky não parecem uma combinação exatamente criativa. Décadas de maturação deste em barricas daquele mostra, entretanto, que é uma prática que já atingiu sua excelência. Assim como, aliás, o Manhattan e, talvez, o cinema. Bem, sem mais, vamos à receita.

WHISKY IN CHURCH

INGREDIENTES

  • 60ml whisky defumado
  • 22,5ml jerez oloroso
  • 5ml maple syrup
  • 6 dashes de bitters de cereja, ou 5ml Cheery Heering.
  • parafernália para misturar

PREPARO

Adicione os ingredientes num mixing glass com bastante gelo. Misture e verta em um copo baixo com gelo.

Garnish: zest de limão siciliano.

The Macallan Double Cask 15 anos

Três de Janeiro, onze da manhã. Nenhum compromisso à vista pelos próximos dois dias. Que delícia, fazia um tempão que almejava pela mais cândida agenda – penso. Acho que vou aproveitar para resolver algumas bobeirinhas que não conseguira, por falta de tempo. Tipo cortar o cabelo. Passo os dedos pela nuca, como se para reafirmar a necessidade da toza. Três meses sem cortar, meus mullets reminescem a um cruzamento entre o Billy Ray Cyrus do anos oitenta e uma samambaia. Ligo na barbearia costumeira, mas o telefone só toca. Naturalmente, em dois mil e vinte e dois, recorro ao Instagram. Recesso até o dia sete. Melhor esperar e pensar em alguma outra pendência.

Já sei. Revisão do carro – que, aliás, há quatro meses suplica por um tal “serviço A”. Não estivesse acostumado à minha displicência, certamente já teria terminado em uma poça de óleo e chamas. Mas carros são tipo cachorros – quase o reflexo dos donos. E a única certeza que teríamos, pudesse meu carro pensar, é que ambos já tivemos tempos mais gloriosos. WhatsApp para a concessionária “oi”. Mensagem automática. Olá, agradecemos sua mensagem, estamos de férias coletivas até o dia onze, boas festas e um feliz 2022.

Esperando voltar do recesso.

Dia onze. Que capricho. Me resigno que não será hoje que resolverei nenhum de meus problemas. Quando no dia seis tentar ligar o carro e ele explodir em um enorme cogumelo ígneo, a perícia poderá se certificar que o corpo carbonizado em seu interior é realmente eu por conta das displicentes madeixas. Repenso minhas opções. Limpar a casa, trocar as luzes queimadas. Nada disso me parece muito animador. Observo o relógio, que marca meio dia em ponto. Acho que vou tomar um whisky e pensar no que fazer.

A escolha não leva mais do que dois segundos. The Macallan Double Cask 15 anos. Uma garrafa que me auto-presenteei de Natal, e que havia tomado menos de cinco mililitros – só pra degustação. Verto uma dose padrão na taça. Com todo tempo do mundo, melhor experimentar sem pressa. No aroma, frutas vermelhas, ameixa seca, e um fundo adocicado característico dos whiskies da destilaria. De certa forma, me remete ao The Macallan Sienna – mas um pouco mais vínico.

Paladar. A primeira coisa que me chama a atenção é a oleosidade. É engraçado como os The Macallan tem essa característica quase inconfundível. Um certo resinoso, com untuosidade. Em tese, isso se deve aos alambiques da destilaria – os mais baixos de toda Escócia. E incrivelmente pequenos, também, apesar do enorme volume da destilaria. São trinta e seis alambiques – doze de primeira destilação, vinte e quatro de segunda. A carga é de três mil e novecentos litros e aproximadamente treze mil litros, respectivamente.

Aliás, o processo de destilação todo da The Macallan prima por trazer o máximo de congêneres. Essa é a razão dos alambiques diminutos. E de suas engenharia também. Lyne arms voltados para baixo evitam o refluxo, assim como pescoços largos e baixos dos spirit stills. A moeda de troca é o corte. Por permitir a passagem de compostos pouco voláteis, a separação da cabeça, coração e cauda devem ser bem restritivos. Apenas 16% é aproveitado e vira single malt.

Alambiques da The Macallan

Pausa para contemplar este fato. O new-make, extremamente oleoso, leva tempo para maturar, e exige barricas de qualidade. A The Macallan usa predominantemente barricas de grande volume – acima dos quinhentos litros. Isso significa que o ponto de equilíbrio é somente atingido lá entre os doze e quinze anos. O carvalho europeu ajuda – é ele que traz taninos e especiarias, e agrega complexidade ao whisky. Aliás, a coloração do whisky é totalmente natural. Não é usado corante caramelo. Assim, o trabalho de padronização é redobrado. Deve-se observar aroma, paladar e também a cor.

Notas de frutas secas, pimenta do reino, cravo, canela e um pouco de gengibre. Mais uma vez, o The Macallan Sienna vem à minha mente. Um pouco menos apimentado, talvez, e mais frutado. Aliás, bem mais frutado que seu irmão Triple Cask 15 anos. Aqui, o perfil é mais próximo àquele clássico da The Macallan. Isso se deve à maturação, que ocorre somente em barris que foram previamente temperados com vinho jerez espanhol. Barricas, estas, tanto de carvalho americano quanto europeu.

Finalmente, tenho uma epifania e sei exatamente o que farei com meu tempo. Sento-me confortavelmente no sofá, meia dose na mão. Mullets e automóveis podem esperar. Hoje, preencherei o dia com whisky e cinema. Não há iniciativa que resista à inércia do terceiro dia do ano. O melhor a fazer é se render.

MACALLAN DOUBLE CASK 15 ANOS

Tipo: Single Malt com idade declarada (15 anos)

Destilaria: Macallan

Região: Speyside

ABV: 43%

Notas de prova:

Aroma: frutado, com uvas passas e especiarias.

Sabor: Frutas secas, ameixas, uvas passas. Final longo, com pimenta do reino, cravo e frutas.

Whiskies para comprar no Duty-Free – 2021 / 2022

Tenho que confessar uma coisa óbvia. Estou com saudades de viajar. É tanta que eu tô com saudades até da parte ruim. De ficar com o nariz ressecado no avião, sentir aquela encostadinha constrangedora do passageiro do lado enquanto ele tenta se acomodar na cadeira justamente para não dar aquela encostadinha constrangedora. E do barulho, de dormir meio na vertical e de ficar horas sem fazer nada. Aliás, esses dias sentei na cadeira mais apertada aqui de casa, liguei o ar-condicionado no máximo e o secador de cabelo do lado, só pra tentar simular aquele desconforto aéreo-sonoro-ortopédico.

Talvez, em 2022, essa minha ressaca passe, e eu finalmente possa alçar voo novamente. Entretanto, apesar de meu hiato aeronáutico, minha obrigação de apontar as melhores compras aos nobres e destemidos viajantes não foi olvidada. Por isso, preparei este derradeiro post – o último de 2021 – de um jeito meio que teórico, meio que por proxy. Então, não estranhem que não há foto para algumas garrafas, tampouco aquela tradicional composição da mala com as bebidas dentro, lá em cima. Fato é que provei todos os wiskies, com exceção do submencionado Maker’s Mark. Mas não as tenho mais – e também, nem foto.

Apologias concluídas, vamos ao que interessa. Preparei uma lista de whiskies que podem ser encontrados nos Duty-Free (freeshops) de aeroportos brasileiros. A base de pesquisa foi o terminal de desembarque de Guarulhos (GRU). Portanto, caso esteja chegando em outra localidade – meio insone e seco – lembre-se de conferir antes a disponibilidade destas belezinhas. E de outras, como Glenmorangies, que não estão à venda em SP. Organizado do mais caro pro mais barato.

Macallan Enigma

Apesar do nome cretino e quase apologético (afinal, o que é o Macallan Enigma? Ah, isso é um enigma), este single malt é incrível. O perfil é o clássico da The Macallan, com maturação em barris de carvalho europeu de ex-jerez, com notas de frutas vermelhas, uvas passas e ameixa.

É quase uma sacanagem recomendá-lo, especialmente por conta do preço. Duzentos e noventa e cinco Bidens, só pra não ficar feio quando arredondar pra trezentos. E isso no Duty Free. Não é fácil, mas é bom. E o estojo é lindo, você pode depois usar pra guardar aquele monte de tralha de lojinha de 1,99 que trouxe da viagem e nunca mais vai ver na vida.

Laphroaig PX

Defumado, ioado, intenso, oleoso, medicinal. Difícil pensar em algo que falte num Laphroaig. Mas, isso não significa que não pode ficar um pouquinho melhor. Ou, talvez, apenas diferente. Essa é a ideia do Laphroaig PX, que passa por uma finalização em barris de ex-jerez Pedro Ximenes. Que como vocês sabem porque leem o Cão, é um vinho fortificado e adocicado espanhol.

Laphroaig PX

O resultado é um single malt (e agora desculpem-me por ser redundante) defumado, iodado, intenso, oleoso, medicinal, frutado e licoroso!

Longbranch

Alright, alright, alright, this is a nice whiskay, diria Matthew Mcconaughey. Ou melhor, diria não, provavelmente disse. O Longbranch foi criado em parceria entre o ator e Wild Turkey. Mas este está longe de ser só um produto promocionado por uma celebridade. Matthew e Eddie Russell – master distiller – passaram quase dois anos ajustando a fórmula e os processos para finalmente chegar a um resultado com personalidade e delicadeza.

O Wild Turkey Longbranch é um Wild Turkey com aproximadamente oito anos de maturação, e que passa por um processo bastante conhecido, mas improvável para a destilaria do peruzão. A filtragem por carvão. Na verdade, duas. A primeira, usando carvalho americano, e, a segunda, madeira de Mesquite – uma árvore comum no Texas. O resultado é um bourbon muito suave, adocicado na medida e amadeirado. Perfeito para se beber puro ou misturar.

Jack Daniel’s Tennessee Rye

Não é apenas um rye whiskey. É um Rye Whiskey da Jack Daniel’s. E histórico. O Jack Daniel’s Tennessee Rye é o primeiro lançamento da Jack Daniel’s com uma mashbill – a composição do mosto – diferente desde a época da Lei Seca Norte-americana, que aconteceu de 1920 a 1933. São mais de oitenta anos utilizando uma única receita, e com um sucesso literalmente entorpecedor.

O Jack Daniel’s Tennessee Rye possui uma mashbill de 70% centeio, 18% milho, e 12% cevada maltada. É quase o inverso da receita do onipresente Jack Daniels Old No. 7 ou seu irmão o Gentleman Jack, que leva mais de 80% de milho, 8% de centeio e 12% de cevada maltada. Isso traz ao Tennessee Rye um sabor de especiarias, cravo e canela, além de uma sensação seca, bastante incomum para os Jack Daniel’s.

Maker’s Mark 101 Proof

Gosta do Maker’s Mark mas acha que podia ter um pouquinho mais de intensidade? Bem, este aqui é para você. O Maker’s Mark 101 é a versão mais alcoolica do Maker’s, com – como sugere o nome – 50,5% de graduação alcoolica. Por cinquenta e um dólares, numa garrafa de um litro. Ah, edição limitada, com o pomposo nome de “exclusive edition”, exclusiva de Duty Free. Só não vá vacilar tentando encontrar a garrafa com a cerinha mais bonita, porque, senão, acaba.

Union Virgin Oak Finish – Truco

Sábado, dezoito de dezembro, oito horas da manhã. Sentado à mesa, observo a querida Cã verter um balde de coado numa xícara que mais parece um ofurô. A gente precisa comprar os presentes de natal das crianças, dos seus pais e dos meus, e tem que ser hoje, diz ela. Finjo ouvir apenas de forma contemplativa, por estar absorvido por alguma futilidade no celular. Como se ela fosse desistir. Achei que ela já tivesse comprado, e a perspectiva de gastar horas de meu sábado em algum shopping lotado não me agrada em nada. Dois segundos de silêncio. Faço um esforço descomunal para continuar com os olhos na tela e não olhar para ela e denunciar meu blefe.

A gente precisa comprar os presentes de natal das crianças. E dos nossos pais. De novo, ai meu deus. Ao menos ela não perguntou nada, então eu não preciso responder. Ah, e eu preciso comprar seu presente, o que você quer ganhar? Por um segundo me sinto apunhalado pela indagação. Admitindo derrota, respondo – ah, um whisky tá bom – e dou um sorrisinho. Ah, que bom, sabia que você ia pedir whisky, então vamos hoje no shopping, a gente já compra seu whisky naquela adega e resolve o presente das crias, vou tomar banho – diz ela, que termina a piscina de café numa golada só e levanta, animada. Meu semblante derrete para o pânico, preciso pensar rápido. O whisky que eu quero não tem no Shopping! grito.

Pausa, ela vira a cabeça meio de lado e aperta os olhinhos, como se suspeitasse de algo. Ah, e qual whisky é esse e onde compra? / Ah, é difícil, mal começou a vender, melhor a gnete deixar tudo pra outro dia. É o novo Union Virgin Oak Finish. É um lançamento bem legal da Union, finalizado em barris de carvalho americano virgem. / Entendi. Então me passa o link quando der que eu compro. Mas vamos pro Shopping agora. Vou. tomar. banho. Essas ultimas palavras, indicadas pela pontuação propositalmente inserida para dramatização, proferidas vagarosamente, como uma sentença prestes a ser executada pelo carrasco. Aceno com a cabeça. Tá, vamos.

Tá, vamos.

Fast foward para o carro. Escuta, eu lembro que você já comprou esse whisky há um par de anos, não comprou não? Você estava só tentando me enganar pra não ir no Shopping? Eu, então, sem titubear, respondo É que você deve estar confundindo com o Autograph. O Union Virgin Oak Finish não é exatamente o mesmo que o Union Virgin Oak da Autograph Series. A maior diferença entre eles está na maturação, e no fato de que um é precursor do outro. Enquanto o Virgin Oak da série Autograph é um whisky maturado por cinco anos em barris virgens, o Virgin Oak novo matura por cinco anos em barricas de carvalho americano de ex-bourbon, e depois é finalizado por dois anos em barris virgens. E completo – já meio azul de não respirar – “não tô te enganando não, você sabe que eu gosto de novidade”.

Ué, mas o que esse whisky tem de especial pra você querer tanto? Não dá pra gente comprar algo parecido lá na adega? Acenei de lado com a cabeça, porque, agora, afinal, tenho que manter a coerência. Não tem nada parecido lá não. respondi, mas, notando que ela não estava satisfeita, justifiquei. É que as barricas do Union Virgin Oak Finish foram encomendadas da World Cooperage – uma tanoaria especializada em produzir barris por encomenda – pela Union. Assim como o Union Virgin Oak Autograph, os barris virgens utilizados na finalização do Virgin Oak Finish foram carbonizados na origem, e tem níveis 1, 3 e 4 de carbonização. Cada um deles traz um perfil sensorial distinto. Nível um traz floral e frutado, nível 3, caramelo e mel. Já o nível 4, notas de café e chocolate. E como base está a maturação em carvalho americano de ex-bourbon, com o tradicional trio de caramelo, mel e baunilha. É um perfil de sabor bem único, sabe?

Entendi. Você parece saber bastante desse whisky, acho que você realmente pesquisou e quer mesmo. Me conta mais. Estranhei, não é muito do feitio da Cã se interessar tanto pelos meus whiskies, mas, segui com o geeking. Tem uma coisa bem legal. O new-make spirit utilizado no Union Virgin Oak Finish é ainda proveniente da destilaria de Veranópolis, porque a nova unidade, de Bento Gonçalves, começou a produção somente em 2015, e a cor dele é totalmente natural, e não é filtrado a frio. / Ah, e é daquele jeito defumado? / Não, não é não. Não tem nada de turfa.

As barricas do Union Autograph Virgin Oak originais

Observo o Waze, que indica que estamos já bem próximos do destino. Utilize as duas faixas da esquerda para virar à esquerda, e depois, vire a direita. Pronto. sentença em vias de ser executada. Você acha que eu ia gostar desse whisky aí também? / Ah, sei lá, você gosta dos turfados, mas é bem diferente, eu acho que é capaz sim. É aquele tipo de whisky que não tem muito como desagradar, o perfil de sabor é adocicado e floral. Tem complexidade e personalidade. Ela acena com a cabeça, enquanto se aproxima vagarosamente da cancela do shopping. Tá bom, vou comprar um pra você porque eu sei que você quer muito, mas então temos que escolher com cuidado e sem pressa o presente de todo mundo.

Puxo o ticket como se desligasse os aparelhos que mantém viva minha felicidade. Ela sorri, vitoriosa no blefe. Dou uma risadinha. Pelo menos vou ganhar um whisky bom. Nem tudo está perdido.

UNION VIRGIN OAK FINISH

Tipo: Single Malt

Destilaria: Union Malt

País: Brasil

ABV: 46%

Notas de prova:

Aroma: caramelo, baunilha, chocolate, mel. Levemente floral.

Sabor: Adocicado, com baunilha, caramelo e mel. O final é longo e levemente apimentado, com mais mel.

*a degustação do whisky tema desta prova foi fornecida por terceiros envolvidos em sua produção. Este Cão, porém, manteve total liberdade editorial sobre o conteúdo do post.

Whiskies para dar de presente – Edição 2021

Eu até tento fugir, mas o fim do ano me persegue. Desta vez, foi meu Spotify. As musicas que você mais curtiu este ano, todas reunidas em uma só playlist. O ano é de dois mil e vinte e um, mas minha seleção musical reminesce de algum ponto entre noventa e nove e setenta e cinco. Noventa e nove e setenta e cinco para um redneck americano recém-mudado para Louisiana, bêbado, irritado e obeso.

Esses dias, inclusive, comentei isso com minha querida Cã. Há uma pletora – para usar uma palavra incomum – de motivos que me fizeram casar com ela. Mas, o gosto musical certamente não foi um deles. Não há sequer um único ponto de tangência entre nossas mais ouvidas. Tudo bem, exceto por algum protesto durante uma eventual viagem de carro, isso não nos preocupa. Somos pessoas maduras. Mais ou menos.

E já que o tom aqui é de maturidade, listas e final de ano, vamos ao tema perfeito desta matéria. Um apanhado de presentes para os apaixonados por whisky. Separei aqui alguns dos mais importantes lançamentos deste ano. Uma lista que não tem a pretensão de ser exaustiva, obviamente – mas vocês já sabem e não ligam pra isso, porque somos maduros, como eu já disse. Foi um ano agitado para o fígado dos apaixonados pela melhor bebida do mundo.

Os whiskies foram separados por ordem de preço, do mais caro pro mais barato, porque eu quero que você leia até o final.

ROYAL SALUTE POLO ESTANCIA

Uma edição limitada de um Blended whisky com 21 anos de idade mínima, finalizado em barris de vinho malbec argentino. A garrafa, de cor terracota, se junta a um estojo ilustrado pelo artista Charlie Davis, num visual elegante mas sem afetação. O tema é igualmente elegante – o polo equestre argentino.

De acordo com Sandy Hyslop, master blender da Royal Salute “Para esta expressão singular, integramos perfeitamente os sabores robustos e altamente reconhecíveis dos barris de vinho Malbec com nossos delicados whiskies de 21 anos – uma tarefa que requer cuidado e atenção constantes” e continua “O Royal Salute Polo Estancia Edition” é um blended whisky excepcional (…) onde apenas os melhores barris de vinho malbec argentinos foram usados para finalização. A incorporação desta finalização em vinho Malbec não apenas nos permitiu dar ao blend uma nova dimensão, mas também ajudou a contar a história do lifestyle do polo argentino de uma forma multifacetada. “

A venda no Drinks&Co e varejistas selecionados. Para saber mais clique aqui.

MACALLAN DOUBLE CASK 12 ANOS

Este não é exatamente uma novidade. Minha vontade seria recomendar o recém-lançado Edition 6. Este, porém, sublimou das prateleiras das lojas em menos de um mês. E de nada adianta recomendar aqui algo que não pode ser comprado por ninguém. Então, à moda de minha playlist do spotify, voltei meus olhos para os clássicos. Mas clássicos revisitados. Como o The MAcallan Double Cask 12 anos – o mais jovem da linha Double Cask, que agora conta também com as expressões de 15 e 18 anos à venda no Brasil.

O Macallan Double Cask 12 anos é maturado em dois tipos distintos de barricas, ambas “temperadas” – nas palavras da destilaria – com vinho jerez espanhol. Barris de carvalho americano e carvalho europeu. Isso se traduz como um whisky adocicado e frutado no começo, que, progressivamente vai se tornando mais seco e apimentado no paladar. É o DNA clássico da The Macallan. Para saber mais, clica aqui.

BOWMORE 12 ANOS

Esta lista jamais estaria completa sem o Bowmore 12 anos. Recém chegado ao Brasil, é um single malt defumado, mas elegante e sofisticado. Ele é indiscutivelmente um single malt de Islay. Todas as credenciais estão lá: enfumaçado, medicinal e iodado. Mas, há também espaço para que o barril brilhe, e um equilíbrio que perigosamente te convida para o próximo gole. É uma das destilarias favoritas deste canídeo que vos escreve, e um lançamento há muito antecipado.

O Bowmore 12 anos é maturado principalmente em barricas de carvalho americano que antes contiveram bourbon whiskey. E ainda que a influência vínica pela qual os Bowmore sejam admirados não esteja lá – ao menos não escancarada – o Bowmore 12 anos traz a mesma genética de sofisticação de seus irmãos mais maturados. Quer saber mais sobre essa maravilha? Então clica aqui.

LAMAS CALEDONIA III

O Lamas Caledonia III é fruto da terceira colaboração entre a destilaria Lamas, de Minas Gerais, e o nosso querido bar de São Paulo, o Caledonia Whisky & Co. Nas primeiras duas edições, a fumaça estava em evidência. Já o Lamas Caledonia III é um pouco diferente dos dois últimos single malts. Na verdade, um pouco não. O oposto. Mantivemos a maturação em vinho licoroso, mas invertemos a base. Agora, o que está mais em evidência é a porção não enfumaçada – com apenas um toque de fumaça no background. Ele utiliza 80% de malte tradicional, e 20% de malte defumado. Aqui, a defumação não é o tema, mas, tão somente, o tempero.

Como a maior parcela é composta de malte não defumado, a Lamas caprichou na maturação. Aqui, a finalização em barricas de vinho licoroso é realmente longa, especialmente para padrões brasileiros. Dezoito meses ao todo. Assim, a parcela não enfumaçada não é apenas um Lamas Verus. Mas, um whisky mais maturado, que pende para as notas frutadas e apimentadas do carvalho europeu – algo que foi muito bem vindo por conta da graduação alcoólica de 50%.

A venda no Caledonia Whisky&Co

JOHNNIE BLONDE

De acordo com a Johnnie Walker, numa declaração um pouco lacônica “O Johnnie Blonde é feito usando trigo e whiskies de malte com perfil frutado. Maturado em carvalho americano doce, o resultado é um whisky cheio de sabores vívidos e vibrantes“. A maturação dos componentes do Johnnie Blonde acontece em barris de carvalho americano. É isto, somado ao whisky de grão utilizado, que traz suavidade e dulçor para o blend. É adocicado, com um fundo de mel e caramelo claros, e com pouca ou nenhuma defumação.

O Johnnie Blonde foi concebido pelo blender George Harper para ser utilizado em coquetéis de baixa graduação alcoólica, como collins e highballs. O site oficial da marca declara que “para os apaixonados por whisky curiosos, ou os que não bebem whisky, Johnnie Blonde é uma doce surpresa que irá confundir seus sentidos. Feito para ser misturado, ele desabrocha para vida com a intensidade cítrica de uma limonada, combinada com uma fatia de laranja“.

A venda no TheBar.

Campbeltown Cocktail – Especificidade

Me vê com ketchup, mostarda, maionese, batata palha, um pouquinho de vinagrete e purê“, dizia pro Roger, que tinha uma van de hot dog na frente do colégio, na minha época do colegial. Van de hot dog, não foodtruck. E colegial, não segundo grau. Dois termos propositalmente aqui usados, para auntenticidade, que talvez denunciem um pouco minha idade. Toda quinta-feira, esse era meu almoço, e o preferido da semana. O Roger acenava com a cabeça, cortava o pão torto, pegava a salsicha que já estava lá na água há umas boas duas horas, e, em menos de trinta segundos, entregava o lanche prontinho.

Apesar da época quase medieval – quando não havia segundo grau e nem dijon no foodtruck – o Roger já tinha um cuidado todo especial com padronização e composição. O Ketchup tinha que ser do mais barato, aquele, quase vermelho neon. A mostarda, amarelo enxofre. Podia parecer só economia, mas ele sabia que, se melhorasse, piorava. O Hot Dog do Roger custava o equivalente a meio litro de gasolina hoje em dia. Mas transbordava de sabor.

No entanto, como quase tudo no mundo, há opostos. E no universo do cachorro quente, não é diferente. Do outro lado do espectro do dogão do Roger, está o mais caro hot dog do mundo. O do restaurante novaiorquino 230 FIfth. Dois mil e trezentos dólares. O prato – uma edição especial – tinha que ser pedido com antecedência de dois dias, e contava com uma linguiça de wagyu curada por dois meses, com cebolas Vidalia caramelizadas em champagne Dom Perignon, chucrute com Cristal e caviar. De graça, você levava dois potinhos – um de ketchup e outro de mostarda.

Lanchinho

Há, porém, muito mais em comum entre os dois sanduíches do que um pão com salsicha. Que é a escolha dos ingredientes. Tanto o Roger quanto o maluco do 230 Fifth, seja lá quem for, sabem que a é importante ser bem específico ao escolher os ingredientes para o prato. Seja uma mostarda radioativa, seja ovas de esturjão virgem. E, na coquetelaria, isso não é diferente. Alguns coquetéis exigem bebidas bem específicas. É isso que traz equilíbrio. Mesmo que – assim como o caso do dog milionário – estas não sejam necessariamente baratas.

O Campbeltown, coquetel tema desta prova, é um destes. São basicamente três líquidos nada singelos. Single malt de campbeltown, que na receita original, é Springbank 10 anos (algo que seria impensável para a maioria dos apaixonados por whisky). Cherry Herring, um licor de cereja pouco acessível, também usado no clássico Blood & Sand. E. por ultmo, Chartreuse verde – um licor de ervas francês de alta graduação alcoólica, produzido pelos monges cartuxos. Além de ser relativamente difícil de ser encontrado, seu preço não é nada amigável. Uma garrafa da bebida tem preço semelhante àquele de excelentes single malts.

Dito tudo isso, sinto a obrigação de me contradizer. Ocorre que o Campbeltown foi inventado em 2006 no Bramble Bar & Lounge de Edimburgo, atualmente considerado um dos melhores da cidade. Localizado na Queen Street, pertence a Mike Aikman e o bartender Jas Scott – o criador do coquetel. Por lá, por uma série de fatores, como a cotação da libra e o acesso a bebidas distintas, o uso de um single malt pomposo como Springbank parece justificável. Aqui, entretanto, a escolha não me parece razoável. Mesmo porque Springbank nem chega oficialmente ao Brasil. E, ademais, os dois licores são insubstituíveis – nem pense em colocar Luxardo, é completamente diferente.

Horroroso, mas uma delícia.

Assim, minha sugestão é apostar em um blend com perfil sensorial levemente enfumaçado, e que tenha força suficiente para domar Chartreuse e Cherry Herring, que são bem intensos. Ou um single malt um pouco – mas não muito – mais acessível. Meu melhor resultado foi, pouco surpreendentemente, com Bowmore 12 anos. Mas reduzindo um pouco a proporção dos licores, uma versão com Famous Grouse Smoky Black funcionou também maravilhosamente bem.

Lembre-se, entretanto, que a receita original é equilibrada ao redor de Springbank. Um single malt discretamente defumado, amadeirado e salino. Não vá chutar qualquer scotch whisky. Escolha com conhecimento. Aliás, com conhecimento, e não preço. Lembre-se do Roger, com seu delicioso dogão multicolorido. Se melhorar muito, estraga.

CAMPBELTOWN

INGREDIENTES

  • 60ml whisky levemente defumado e intenso
  • 30ml Cherry Heering
  • 15ml Chartreuse verde
  • parafernália para misturar

PREPARO

  1. Adicione todos os ingredientes num mixing glass com bastante gelo.
  2. gire, até resfriar bem. Cuidado com a diluição. A ideia é que este coquetel seja bem intenso
  3. desça em uma taça coupé previamente resfriada

Yamazaki Distiller’s Reserve – Confinamento

Tempo. Tempo é a coisa mais importante do mundo, de acordo com o lugar comum. Também é a essência de nossa existência, ou, para parafrasear Borges, é a substância da qual todos nós somos feitos. Ter pouco tempo a disposição é terrível, ainda que seja algo bem comum em nossa rotina. E, na maioria das vezes, ter bastante tempo – aquele, para contemplar as nuances de um bom whisky enquanto seu pescoço se encaixa suavemente naquela deformação do sofá criada pelo tempo, por exemplo – é uma dádiva.

Mas, nem sempre. Ontem, por exemplo, me vi numa situação sui generis. A de ter bastante tempo, mas não poder disfrutar como deveria. Sui generis e um pouco claustrofóbica. Tudo começou como deveria. O interfone tocou, avisando da chegada de alguma encomenda feita pela cã nessas lojas chinesas de gadgets inúteis. Desci até a portaria, resgatei o pequeno pacote com etiquetas em mandarim e entrei no elevador. Foi quando notei que estava sem meu celular. Tudo bem. A porta fechou vagarosamente, meio à la twilght zone. Senti que havia algo de errado, mas, já era tarde para qualquer reação.

kkkk morri.

O elevador começou a subir lentamente – talvez não lentamente, mas eu estava ansioso – até que, num balanço abrupto, parou. Pronto. Nunca tive medo de elevador, mas nunca é tarde para desenvolver uma nova fobia. No interfone, o zelador murmurou algo ininteligível, o que me deixou ainda mais angustiado. Silêncio. Meia hora. Olhei para o pacote em minha mão e notei uma nota em alfabeto ocidental “choque elétrico lifting facial aparelho“. Por um momento, fui absorvido pela ordem aleatória das palavras, até que comecei a considerar auto-aplicar choques no meu ouvido para não morrer de tédio.

Mais uma hora. Sem celular e sentado no canto do elevador. Finalmente ouvi alguns ruídos metálicos, uma conversa alta. Mais ruídos e, finalmente, movimento. Como se fosse a coisa mais natural do mundo, o elevador voltou a se movimentar, e me deixou a salvo em meu andar – assim, como se fosse a coisa mais casual do mundo. Resolvi que precisava beber algo para comemorar que não morreria de inanição em confinamento. Escolhi um rótulo que há pouco havia comprado. Yamazaki Distiller’s Reserve – recém chegado ao Brasil.

Resolvi pesquisar a respeito dele. O Yamazaki Distiller’s Reserve é um whisky sem idade declarada, resultado de uma comibnação de barricas de diferentes idades e usos. Há um whisky jovem, maturado em barris de vinho tinto de Bordeaux, bem como um bem mais maturado em barris de jerez. Há também a participação dos famosos barris de carvalho japonês Mizunara, que trazem uma nota floral, de baunilha, e côco para o single malt.

Relembrei, rapidamente, a história por trás do rótulo. Ele foi lançado para substituir o Yamazaki 10 anos, num momento em que os whiskies japoneses viram seu consumo disparar. Tanto que os próprios produtores não estavam totalmente preparados para atender essa demanda. Por isso, descontinuaram alguns de seus rótulos com idade, e recorreram a técnicas novas e criativas de maturação e produção. Uma produção, que, apesar de tudo, já tinha bastante tradição.

A Yamazaki foi a primeira destilaria do Japão. Ela foi fundada em 1923 no vilarejo de homônimo, entre as cidades de Kyoto e Osaka. Sua localização foi especialmente escolhida por ser a convergência dos rios Katsura, Uji e Kizu. Isso garantiu suprimento de água de excelente qualidade para a destilaria numa época em que acesso a este recurso não era tão fácil quanto hoje. Além disso, a variação térmica e umidade criam condições favoráveis à maturação – Yamazaki é mais quente que a média escocesa. Isso acelera a maturação, e faz com que os whiskies cheguem ao ponto de equilíbrio mais cedo.

Dose no copo, dei meu primeiro gole. Indiscutivelmente, um whisky intenso e bem acabado. O new-make spirit da yamazaki usado em seus single malts é oleoso e bem congenérico. Mas, nem sempre é essa a regra. A destilaria possui dezesseis alambiques, de sete diferentes formatos e tamanhos – algo quase sem paralelo na Escócia. A ideia é que a destilaria possa, sob o mesmo teto, criar diversidade sensorial para antender tanto a indústria dos blends quanto dos single malts. Para o Yamazaki Distiller’s Reserve, parte dos alambiques, inclusive, utiliza aquecimento por fogo direto. Uma técnica também bastante rara nos dias de hoje, por conta da alta manutenção.

Os alambiques da Yamazaki

Além disso, a Yamazaki utiliza dois diferentes processos de fermentação, com washbacks de madeira e de aço inoxidável de cinquenta mil litros. A fermentação leva em torno de 65 horas. Por fim, a Yamazaki conta com mais de quinhentos mil barricas em maturação (trinta mil delas, na própria destilaria), de tipos distintos. São principalmente barris de carvalho americano de ex-bourbon, puncheons de carvalho americano de produção própria, hogsheads, barricas de carvalho europeu de ex-jerez e vinho tinto e, claro, o tal Mizunara, acima mencionado. Ficar preso na Yamazaki, ao contrário de um elevador, me parece uma dádiva!

Definir o Yamazaki Distiller’s Reserve como um single malt de entrada não me parece correto, ainda que seja o whisky mais acessível da destilaria atualmente. O conceito pressupõe que o produto seja simples, o que, certamente, é um equívoco. A complexidade de seu processo de maturação demonstra claramente isto, bem como seu preço. O mais correto, talvez, seja uma recomendação. Para aqueles que procuram entender a essência do whisky japonês, ou procuram uma primeira experiência com o destilado nipônico, o Yamazaki Distiller’s Reserve é uma excelente escolha. E claro, para todos aqueles que desejam desfrutar do tempo justamente como deveriam.

YAMAZAKI DISTILLER’S RESERVE

Tipo: Single Malt

Destilaria: Yamazaki

País/Região: Japão

ABV: 43%

Notas de prova:

Aroma: Frutado, com maçã, coco e baunilha.

Sabor: Frutas cristalizadas, coco, pimenta do reino e baunilha. Oleoso e intenso, mas bastante equilibrado. Final longo e floral, com coco e baunilha.

Disponibilidade – A venda em varejistas selecionados e no Caledonia Whisky & Co.