Os seis melhores filmes do mundo e os whiskies para acompanhar

Há algumas semanas, publiquei um texto sobre o Lagavulin 16 anos. Na matéria, comparei-o ao filme 12 homens e uma sentença. Uma película que tinha tudo no mundo para ser impopular, mas tornou-se uma das mais importantes da história do cinema. Um sucesso de crítica e público. Uma unanimidade. Que, convenhamos, nos dias de hoje em que todo mundo tem opinião sobre tudo, é bem difícil.

Daí, alguns leitores me sugeriram um exercício curioso. Algo na linha do que já tinha feito com os filmes do Oscar, mas muito mais pretensioso. Escolher cinco dos melhores filmes do mundo e encontrar-lhes almas gêmeas etílicas. Aceitei o desafio imediatamente. Porque, claro, nada seria mais divertido do que um exercício de futilidade tão grande quanto relacionar coisas sem qualquer propósito como este. A internet, afinal, vive disso.

Antes de prosseguir, preciso fazer uma ressalva. Estes não são os seis melhores filmes do mundo. É, eu sei que eu disse isso no título, mas não são, me desculpem. Estes são, na verdade, os seis filmes mais bem avaliados do site internacional Internet Movie Database. A avaliação destes filmes é feita pelos usuários, num sistema de média ponderada, que ninguém sabe bem como funciona. Mas isso não importa. O que importa é que vox popoli, vox dei, e estes são os melhores filmes do mundo para um sem fim de gente. Além disso, eu tinha que encontrar algum critério, não é mesmo?

A pitoresca ideia deste texto é relacionar cada uma destas – discutivelmente – obras primas da sétima arte com algum whisky. Como uma espécie de harmonização, mas entre película e destilado. Assim, se você é apaixonado por certo whisky, é bem provável que irá gostar do seu filme correspondente. Você até poderá assisti-lo na companhia de uma ou duas doses daquele seu eleito. Mesmo porque ele poderá melhorar bastante sua experiência cinematográfica.

1. Um sonho de liberdade

Um Sonho de Liberdade (Shawshank Redeption, no original) conta a história de Andy Dufresne (Tim Robbins) um famoso banqueiro que é condenado à prisão perpétua. Na cadeia, ele conhece o Morgan Freeman, e entre eles rola o mais célebre caso de bromance da sétima arte. O filme – apesar de parecer bem simples – fala de uma forma relativamente sutil sobre culpa, mudança, amizade e altruísmo. Mas o mais incrível mesmo é que ele foi escrito por Stephen King, que resistiu à tentação de colocar alguma aranha gigante controladora de mentes ou enguia extraterrestre no roteiro.

Shawshank Redeption é um filme muito bom. Ele consegue dialogar de uma forma bem competente com qualquer nível de expectador, o que é um mérito indiscutível. O ritmo também é incrível – apesar das quase duas horas e meia, ele parece ter menos de cinquenta minutos.

Porém, na opinião deste Cão, dizer que ele é o melhor filme do mundo é pura hipérbole. Como, aliás, qualquer coisa que é considerada a melhor do mundo, não importa qual seja o critério de avaliação. Assim, para este Cão, o whisky que mais se assemelha a ele é o Johnnie Walker Blue Label. Sabor agradável, boa complexidade e absurdamente supervalorizado.

2. O Poderoso Chefão

The Godfather (traduzido de uma forma cretina para O Poderoso Chefão), dirigido por Francis Ford Coppolla, é um filme como poucos. Ele narra a ascensão de Michael, filho de Vito Corleone, um dos mais importantes Dons da máfia italiana na década de vinte. A película é detalhadamente construída para se tornar envolvente. Os momentos de afeição da famiglia Corleone são entremeados com maestria por cenas de violência gráfica e crueldade. Porém, tudo que é repugnante em relação à máfia foi elegantemente excluído do mundo de O Poderoso Chefão. Como disse o crítico Roger Ebert, a história é contada inteiramente de um mundo fechado. Não há vítimas civis do crime organizado, nem vidas arruinadas pelo jogo, fraude ou extorsão.

Na opinião deste Cão, porém, o maior mérito de O Poderoso Chefão é a identificação. Qualquer expectador – por mais pacífico e bondoso que seja – consegue se identificar com Michael. Seu percurso – ainda que pontuado por morte e traição – é o mesmo de muitos de nós. A tenaz luta contra nossa própria natureza, que, invariavelmente, como no labirinto de Creta, nos coloca novamente de onde partimos, independente de quantas voltas descrevermos.

Se o Poderoso Chefão fosse um whisky, ele certamente seria um Macallan Rare Cask. Sofisticado, elegante e cruel (no preço). E impossível de não ser adorado.

3. O Poderoso Chefão II

Coppolla conseguiu emplacar como terceiro melhor filme do mundo a sequência de sua obra prima. Mas pelo bem da diversidade, vamos pular este, ok? Favor fazer referência ao item 2. acima.

4. Batman: O Cavaleiro das Trevas

Talvez o título dê uma dica de leve. Mas Batman: O Cavaleiro das Trevas, é mais um filme noir do que sobre um super-herói. Um filme noir cujo protagonista – ao invés de um clássico detetive fumante, alcoólatra e de sobretudo – é um milionário vestido de morcego. Os elementos estão lá. Há o jogo de luzes. Há o conflito psicológico, onde o homem-morcego se vê na posição de vilão frente à manipulação o Coringa. Há a decadência e a descrença no herói. Primeiro, por parte do povo de Gotham, depois, pelo próprio Batman. É sim, um filme sobre um personagem dos quadrinhos, mas é também uma película sobre tragédia e dano – muitas vezes, infligido por si mesmo.

Ainda que este Cão considere que o filme está bem longe de assumir a quarta posição no ranking histórico do cinema, Batman: O Cavaleiro das Trevas possui uma surpreendente profundidade para seu estilo. Neste sentido, é muito semelhante a um Ballantine’s 17 anos. Blockbuster, sem dúvida, mas relativamente complexo e muito bem feito.

5. 12 homens e uma sentença

Este é o filme que deu origem a este texto, e o preferido de dez entre dez professores de ética das faculdades de direito. O que, de certa forma, traumatiza e estraga toda a experiência para muita gente. Porque, claro, todo mundo quer cabular a aula de ética. Especialmente quando ela é sobre um filme cult dos anos cinquenta, filmado em preto e branco, que se passa totalmente em uma única sala, onde os personagens discutem princípios éticos e valores sociais sem parar por uma hora e meia.

Apesar do descritivo torná-lo tão tentador quanto passar três dias na companhia do Tony Ramos ouvindo apenas Björk a capella (eu mudei a tortura) o filme é bem bom. E ainda que não seja um filme fácil, 12 Homens e Uma Sentença possui uma legião de fãs ao redor do mundo. O paralelo com o whisky é quase inescapável. O filme é o irmão gêmeo para tela do Lagavulin 16 anos. Um malte cult, amado como poucos.

6. A Lista de Schindler

A Lista de Schindler é um filme recessivo. Ele é dirigido por Steven Spielberg, mas não há qualquer efeito especial ou momento pirotécnico. Apenas uma narrativa bem construída, dramática e belíssima. E é estrelado pelo Liam Neeson, que, incrivelmente, não salva nenhum avião prestes a explodir e nem mata quinhentas e dezenove pessoas com uma única pistola enquanto viaja por cinco nações diferentes.

A película conta a história real de Oskar Schindler, um executivo alemão que transforma secretamente sua fábrica em um refúgio para os judeus, durante o nazismo. Durante suas mais de três horas de tela, não há alívio cômico ou momento jocoso. Apenas severidade.

Não é muito fácil encontrar um malte que possa se relacionar a Lista de Schindler. Talvez algo próximo seja o belíssimo Glenfiddich 18 anos. Um malte sisudo, para se beber silenciosamente e com extrema atenção.

7 (eu pulei o n.3). Pulp Fiction

Eu tenho que assumir uma coisa aqui. Pulp Fiction já foi meu filme preferido por muito tempo. Hoje, porém, reconheço que ele não é tudo isso. Okey, o filme é divertidíssimo e os diálogos são absolutamente geniais. Todos os personagens parecem falar apenas digressões e sempre têm observações inteligentíssimas. E sério, não tem como não rir quando o Christopher Walken conta onde escondeu o relógio, ou quando o Samuel L. Jackson discute preferências alimentares com o John Travolta.

Mas é isso aí. Pulp Fiction é a estética da violência somente pela estética. É um mundo completamente surreal, onde todo mundo parece agir normalmente. Nada é encarado como surpresa, seja o cérebro espalhado no banco de trás do carro, seja o homem vestido com roupas sadomasoquistas dentro de um baú de madeira. Tudo é cool.  Pulp Fiction é uma paródia do cinema mainstream norte-americano. Ou seja, é uma auto-paródia.

Este é outro filme que possui uma alma gêmea no mundo do whisky. O Jack Daniel’s Sinatra Select. Um ícone pop que homenageia outro ícone, mas da música norte-americana. O Sinatra Select é a destilação dos Estados Unidos.

 

Especial Escócia – Visita à Bunnahabhain

O diferente é o destaque. Atualmente, buscamos sempre uma experiência nova. Algo que fuja do usual, que seja criativo, ou que desponte por algum motivo. Somos compelidos a experimentar o novo, ou destoante. Numa sociedade que valoriza a experiência, ser diferente compensa.

A Bunnahabhain é a exceção dentro da exceção, e o exemplo perfeito disto. Em uma ilha conhecida por produzir predominantemente whiskies turfados e medicinais, a maioria dos single malts da destilaria não tem qualquer traço de turfa. São leves, florais e pouquíssimo desafiadores. Se Ardbeg é bravura; Bruichladdich, inovação e Lagavulin, nobreza; entao Bunnahabhain é sutileza.

Bem menos desafiadores do que este texto. Preparem-se.

Em um passado próximo, quase tudo produzido na Bunnahabhain era dedicado à industria dos blended whiskies. Ele era um dos componentes chave do conhecido Cutty Sark, bem como do Famous Grouse – pertencentes ao Edrinton Group, que também detinha a destilaria. A mudança veio na década de oitenta – após quase vinte anos praticamente inativa, quando os primeiros single malts da Bunnahabhain começaram a surgir no mercado. Por fim, em 2003, a destilaria foi vendida pelo Edrinton Group para a Burns Stewart, que, por sua vez, a vendeu para o grupo Distell em 2013.

Atualmente, aproximadamente trinta por cento da produção da destilaria é engarrafada como single malt. Quase todo o restante, porém, é dedicada ao Black Bottle, um blended whisky com perfil sutilmente enfumaçado, leve e adocicado.

Durante a visita, pudemos aprender uma série de detalhes sobre a produção da Bunnahabhain, explicados com certa pressa por nossa guia. A destilaria funcionava normalmente durante nossa visita, permitindo que tivéssemos uma ideia bem prática de como os conhecidos Bunna são feitos.

Vamos ao tradicional whisky-geeking. A água utilizada pela Bunnahabhain é a única de Islay proveniente de uma fonte. As demais destilarias utilizam água de lagos ou rios. O mash tun – onde a cevada maltada triturada é cozida com a água para preparar o malte – é o maior da ilha. Aproximadamente 12,5 toneladas de malte são feitos por vez. Mas o maior destaque são os washbacks, de madeira, com seu tempo de fermentação bastante prolongado. Quase cem horas – bem mais do que a média das destilarias escocesas.

Dentro do Mash tun

Perguntei à nossa guia se a madeira dos washbacks impactava em alguma coisa no sabor dos single malts. A mesma pergunta que havia feito a nosso guia na Ardbeg. Ela, curiosamente, respondeu que não, claro que não. Mas que as coisas sempre foram assim, e que não havia uma boa razão para mudá-las agora. Acenei com a cabeça, um pouco contrariado.

Seguimos para os alambiques, também em funcionamento. No Brasil, me sentiria totalmente à vontade naquela temperatura. Porém, na Escócia, portando uma indumentária com várias camadas, senti que vagarosamente me destilava por dentro. Me concentrei na explicação.

Todo new-make spirit produzido na Bunnahabhain provém de dois pares de alambiques. Um de primeira destilação e outro de segunda. Parece pouco, mas não é. Os spirit stills – de segunda destilação – têm capacidade de quinze mil litros por vez. Os de primeira são ainda maiores. Trinta e cinco mil litros. Todos possuem um formato semelhante a uma pera, com braço reto – o que incentiva o contato com o cobre, e produz um whisky pouco oleoso.

Alambiques

A graduação alcoólica após a segunda destilação é de incríveis sessenta e nove por cento. Porém, o whisky é levemente diluído antes de entrar nas barricas, para um número que, aparentemente, é ouro para os produtores de islay. Sessenta e três e meio por cento.

Tive a oportunidade de provar uma edição especial da Bunnahabhain, o Feis Isle 2017 – que ilustra este post – produzido especialmente para a festa anual da ilha. É um whisky sem turfa, com um incrível aroma floral e de caramelo.

Por fim, e enquanto nossa guia se despedia apressadamente de nós, provamos o Toiteach, versão enfumaçada da Bunnahabhain. Defumado e seco, e uma clara mensagem de retorno à realidade. A exceção, dentro da exceção da exceção.

Armazém. Eu poderia morar aqui.

Rusty Compass – Drink do Cão

Vou começar o texto dizendo algo que pode soar pretensioso. Mas juro que não é. Me considero uma boa companhia para mim mesmo. Para os outros, bom para os outros não. Para os outros eu sou bem chato, meio antisocial, e bem calado. Especialmente quando estou sóbrio.

Mas quando estou sozinho, não tenho muitos momentos de aborrecimento. Consigo preencher o tempo livre de minha agenda com banalidades sem a menor dificuldade. Coisas como ver algum filme, ler alguma coisa, inventar algum coquetel – que normalmente fica horrível e alcança imediatamente o oblívio – ou mesmo visitar algum bar recém-inaugurado. Quando menos percebo, o dia já acabou.

Mas às vezes, muito raramente, fico terrivelmente entediado. Nenhum filme para ver ou livro para ler. Zero de criatividade para misturar coisas e vontade de sair. Bússola mental quebrada, apontando para todos os lados, mas sem tomar qualquer rumo certo. Se minha mente pudesse ser observada em uma tela, a única coisa projetada seria energia estática.

Semana passada tive um dia desses. Sentei-me na frente do computador e comecei – sei lá por que – a pesquisar receitas em um famoso website de coquetelaria. Sem qualquer objetivo, apenas vendo as figurinhas e receitas passarem sem dar muita importância. Passei uma boa meia hora lá, até chegar a um que quase magneticamente, atraiu minha atenção. O Rusty Compass.

O Rusty Compass é quase um híbrido entre o Rusty Nail e o Blood and Sand. Seus ingredientes são Cherry Heering, Drambuie e – a razão de minha repentina atenção – whisky enfumaçado. É um coquetel que une o dulçor do Drambuie com o azedo e seco do Heering, elevado pelo uso do único ingrediente do mundo que torna tudo incrível. Whisky defumado.

Você disse whisky defumado?

Não há muitas referências sobre a história deste coquetel. O único fragmento que este Cão conseguiu encontrar foi no Difford’s Guide. Segundo eles, o nome Rusty Compass é uma união entre Rusty Nail – por conta do uso de Drambuie – e o blended malt Compass Box Peat Monster, originalmente utilizado na receita. Sua origem, porém, permanece um mistério. A nós, resta especular. Talvez tenha originado das mãos de outra pessoa terrivelmente entediada, em um dia de ócio criativo.

O Rusty Compass é especialmente interessante não apenas por ser delicioso. Mas porque há nele uma provocativa quebra de dogma. A receita tida como original utiliza um blended malt whisky premium, caro e respeitado. A receita do Difford’s Guide, porém, vai além. Ela recomenda que se misture algum single malt defumado de Islay. Ela demonstra que se utilizado de forma correta e com propósito, single malts podem participar de coquetéis.

Reticente com a recomendação, este Cão fez diversos testes com os whiskies disponíveis no Brasil. Mas depois, entendeu. A combinação de Heering e Drambuie trazem um dulçor quase surreal, considerando as proporções do coquetel. Para equilibrá-lo, é necessário um whisky claramente enfumaçado. O melhor resultado obtido – na opinião deste amante de fumaça – foi com Ardbeg 10. Com ele, o drink ganha um incrível final de carvão e fogueira, apesar da primeira impressão adocicada. O Johnnie Walker Double Black, uma aposta que parecia razoável, foi eclipsado pelos demais ingredientes. A combinação dos dois, porém, funcionou bem.

Assim, caro leitor, ajuste sua bússola mental e prepare seu mis-en place. Aí vai a melhor coisa que você pode fazer na sua próxima meia hora. Especialmente se você não tinha mais absolutamente nada pra fazer. O misteriosamente incrível Rusty Compass.

RUSTY COMPASS

INGREDIENTES

  • 3/4 dose de Drambuie (leia mais sobre ele no post sobre o Rusty Nail)
  • 1/2 dose de Cherry Heering (já explorado quando falei sobre o Blood and Sand)
  • 1 e 1/2 dose de whisky defumado (Ardbeg 10 foi o melhor resultado obtido por este Cão. Porém, experimente algo como 3/4 de Johnnie Walker Double Black e 3/4 de Ardbeg, para algo menos dolorido financeiramente, mas ainda equilibrado. É uma medíocre tentativa de simular o sabor do Compass Box Peat Monster).
  • zest de limão siciliano (isso é um corte da casca)
  • gelo
  • mixing glass
  • colher bailarina
  • strainer
  • Taça Coupé (é a da foto). Há uma outra versão que leva uma pedra grande de gelo em copo baixo. Vale testar.

PREPARO

  1. Adicione todos os ingredientes com gelo em um mixing glass.
  2. Mexa um pouco e desça o coquetel coado na taça coupé.
  3. Adicione o zest de limão siciliano

Teacher’s 12 Golden Thistle – Refinamento Áureo

Esses dias fui almoçar em um restaurante novo que abriu aqui perto de casa. Tudo muito bonito, bem diferente daquele que lá funcionara antes dele. Cadeiras de latão, lâmpadas de filamento carbono, mesas de madeira de demolição. Olhei o menu. Comida orgânica, café fairtrade, cerveja artesanal. Pratos com ruibarbo e sobremesa com regaliz.

Um rapaz se aproximou da minha mesa e estendeu a mão. Contemplei aquele indivíduo que ostentava um curioso bigode a la Dali e uns mullets que poderiam fácil ter sido usados pelo Mel Gibson na década de oitenta. Camisa xadrez, suspensório, all-star. Levei uns bons trinta segundos observando aquela figura até perceber que ele era o mesmo dono do restaurante antigo, só que fantasiado. Não sei do quê. Apertei sua mão.

Contratamos um consultor. Ele disse que a gente devia mudar para alcançar outra faixa do mercado. E vou te falar que tá indo bem. Vai ter um parklet lá fora com cobertura, e a gente vai prender as bicicletas no teto. Acenei com a cabeça. Tá tudo mudando mesmo. Mas escuta, e preço? Bom, o preço mudou também. Mas como disse lá o pessoal do Porta dos Fundos, agora o que se vende é a experiência. O menu vai ser sazonal. Quando todo mundo já souber o que gosta, a gente muda. É para ser cool antes de ser cool, entendeu?

Acho que…

…não, não entendi. Mas não importa, porque na mesma semana recebi de um amigo um lançamento que me deixou bem curioso. O Teacher’s 12 Golden Thistle. Recém chegado ao Brasil, o Golden Thistle possui a mesma genética de nosso velho conhecido Teacher’s Highland Cream, mas bem mais sofisticado. A começar pela declaração de idade – 12 anos. E pela maturação, que ocorre me barricas de single malt defumado, os Laphroaig.

O paralelo era quase inescapável. A garrafa do Golden Thistle se sentiria tão à vontade no novo restaurante quanto o clássico Cream se sentiria no antigo estabelecimento. A ampola remonta a um frasco de remédio de um apotecário clássico. O rótulo duplo dourado, com alto relevo e plastificado, tem pouca relação com a (quase) folha A4 grudada no Teacher’s tradicional. Um visual que não deve nada aos melhores blends premium do mercado.

O sabor remonta, de longe, o Teacher’s Highland Cream. Porém, o whisky é menos agressivo e mais bem acabado. Há um certo sabor adocicado de laranja lima. O final é médio e quase imperceptivelmente enfumaçado. Segundo a marca, sua base é o single malt Ardmore, proveniente das highlands e indiscutivelmente defumado. Este Cão, porém, suspeita que a receita original do Teacher’s foi modificada para esta expressão, e que uma boa dose de Auchentoshan – também pertencente à Beam Suntory – foi utilizada.

Acontece que o Teacher’s 12 Golden Thistle é bem menos defumado que seu irmão mais novo. O que não deixa de ser uma quebra de expectativa, ainda que talvez positivamente surpreendente. Considerando seu DNA e a anunciada finalização em barricas de Laphroaig, esperava encontrar algo tão enfumaçado quanto um Bowmore ou, talvez, um Johnnie Walker Double Black. Mas não é o que acontece. O Golden Thistle é um whisky bem mais contido, civilizado e amável que seu irmãozinho caçula. É o irmão mais velho responsável.

O Teacher’s tem uma reputação a zelar por aqui. É – por uma larga margem de diferença – o whisky mais consumido no Brasil. São oitenta e quatro milhões de doses consumidas por ano. Pernambuco é o estado que mais bebe o rótulo. Por lá, uma em cada duas garrafas vendidas é dele. Introduzir um whisky como o Golden Thistle neste cenário é uma bela responsabilidade – ao mesmo tempo que se deve agradar à enorme legião de convertidos, é preciso também converter novos correlegionários. Responsabilidade, esta, que foi cumprida com sucesso, na opinião deste canídeo.

O Teacher’s 12 em seu evento de lançamento. Será que essa planta do lado é ruibarbo? (foto: Charles Johnson)

Aliás, o primeiro mercado a receber o Golden Thistle foi, justamente, o Brasil. Mais especificamente, os estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará, Rio Grande do Norte e Alagoas. Depois, o whisky também será comercializado na Índia – outro país que é apaixonado pelo velho professor. Walter Celli, presidente da Beam Suntory Brasil comentou sobre o whisky em seu evento de lançamento, que aconteceu em Recife sob a batuta de Cesar Adames: “Nosso 12yo vem para somar ao portfólio de Teacher`s, o whisky mais vendido do Brasil, fortalecendo ainda mais nossa liderança e ampliando as possibilidades de mercado, com a entrada para o segmento super premium”. 

Por aqui, o Teacher’s tem preço médio de R$ 99,00 (noventa e nove reais). É um preço que o coloca em combate direto com concorrentes de peso, como o Famous Grouse Finest, Grant’s Family Reserve, Whyte & Mackay Special e o todo poderoso Johnnie Walker Red Label. Não é uma briga fácil. Mas é uma também que o Teacher’s 12 Golden Thistle está totalmente pronto para enfrentar. Ele não deve nada a qualquer um deles.

Se você é um apaixonado pelo Teacher’s Highland Cream e está pronto para dar um passo de sofisticação, ou se gosta de whisky e não consegue ver um lançamento sem experimentar, procure o Golden Thistle. Não importa se você usa coque, alargadores na orelha, camisa xadrez e bigodes sofisticados. Ou se aprecia um menu com itens que ninguém sabe bem o que são. Experimente o Teacher’s 12 Golden Thistle. Mesmo que ele já seja cool.

TEACHER’S 12 GOLDEN THISTLE

Tipo: Blended Whisky com idade definida – 12 anos

Marca: Teacher’s

Região: N/A

ABV: 40%

Notas de prova:

Aroma: mel, frutas vermelhas, sucrilhos (sério, o cereal matinal mesmo).

Sabor: frutas vermelhas, mais cereais matinais, um certo apimentado suave. Final curto e muito levemente enfumaçado. Corpo leve.

 Preço: em torno de R$ 99,00 (noventa e nove reais)

Fogo da paixão – Lagavulin 16 anos

Se você gosta de filmes antigos, talvez já tenha assistido a 12 Homens e Uma Sentença (12 Angry Men). Não é muito fácil descrevê-lo positivamente com base somente em seu roteiro. É um filme cult dos anos cinquenta, baseado em uma peça teatral. Ele é filmado em preto e branco e se passa totalmente em uma única sala, onde os personagens discutem princípios éticos e valores sociais sem parar por uma hora e meia.

Apesar do descritivo torná-lo tão tentador quanto ficar nu e levar uma surra de um pé de cabra enferrujado ao som de Katy Perry, o filme é bem bom. O ritmo é excelente e os diálogos incrivelmente engajadores para o tema. Ele trata da relativização das normas, da justiça e da inegável diferença entre o mundo do ser e do dever ser.

Mas o mais incrível sobre 12 Homens é que, pelo jeito, todo mundo gosta dele. Ele está entre os cinco melhores filmes do mundo no website IMdB, e possui cem por cento de aprovação no Rotten Tomatoes. Além disso, foi listado como um dos melhores filmes do mundo pelo crítico Roger Ebert, e eleito um dos 100 mais inspiradores pelo American Film Institute. De certa forma, 12 Homens e uma Sentença é como o Lagavulin 16 anos. Amado por todos.

Você disse Lagavulin?

A experiência de se beber Lagavulin 16 anos pode ser definida, com certo exagero, como inefável. Mesmo porque – assim como o filme – descrevê-la de uma forma que pareça deliciosa é bem difícil. É que a maioria dos whiskies pode ser resenhado como algo perfumado, agradável, floral, frutado. É como disse George Bernard Shaw: whisky é o brilho do sol líquido.

Mas não o Lagavulin 16. O Lagavulin 16 é um dia tempestuoso. É como mastigar uma poltrona de couro. Uma poltrona de couro em chamas, forrada de esparadrapos e salpicada com sal grosso. Não há nada condescendente em relação à experiência. Mas, mesmo assim, é um dos maltes mais apaixonantes que conheço. Isso fica bem claro ao lermos as provas da mídia especializada sobre ele. Não há um único comentário negativo. É curioso como um whisky tão desafiador pode ser tão unânime.

Antes de mais nada, preciso pedir desculpas ao leitor pela falta de imparcialidade aqui. É que há um laço emocional forte com este whisky. O Lagavulin 16 anos não foi meu primeiro whisky – este feito pertence ao Chivas 18. E nem aquele que despertou meu interesse por single malts (foi o Glenfiddich 18 anos). Mas foi o primeiro que fez minha cabeça rodar – literalmente – e consolidar minha paixão pela bebida nacional escocesa. O Lagavulin 16 anos foi, por muito tempo, meu single malt preferido.

Todos os elementos de produção do Lagavulin 16 anos contribuem para sua pungência. Os alambiques de primeira destilação (wash stills) são carregados com 85% de sua capacidade total. Já os de segunda – que possuem braços descendentes – praticamente transbordam, com 95% da capacidade total. A destilação leva em torno de dez horas – bem mais do que a média da Escócia. Por fim, o coração dos Lagavulin começa com 72% de álcool e termina em 59%. É um corte bem largo.

 

Alambiques da Lagavulin (fonte: whisky.com)

A maturação do Lagavulin 16 anos ocorre principalmente em barricas de carvalho americano de ex-bourbon. Ainda que a destilaria não assuma expressamente, este Cão possui fortes suspeitas que utilizem também ex-jerez para padronização de sabor. É, porém, um uso muito tímido. Muito mais tímido do que aquele de seu irmão gêmeo, o Distiller’s Edition. Também com dezesseis anos, a diferença primordial entre as duas expressões é que este passa seus últimos anos em barricas de ex-jerez.

Por falar em expressões, o portfólio da Lagavulin é bem restrito. Durante a década de oitenta, havia apenas o 16 anos. Em 1990, a destilaria resolveu, em um arroubo de coragem, dobrar seu portfólio. Passou de um para dois whiskies diferentes, ao lançar seu Distiller’s Edition. Dois anos depois, o 12 anos Cask Strength – uma edição limitada anual – foi disponibilizada. Além destas, a Lagavulin costuma lançar edições especiais, bastante concorridas. Algumas delas são a Jazz Festival (em homenagem ao festival de jazz de Islay), Feis Ile, 25 anos e 8 anos.

O Lagavulin 16 faz parte do (nem tão) polêmico grupo Classic Malts of Scotland, criado em 1988 pela gigante Diageo. A ideia do grupo é apresentar os mais icônicos – segundo eles – whiskies de seu portfólio, de acordo com a região produtora. O problema é que a Diageo, apesar de possuir mais de vinte destilarias sob seu comando, não tem nenhuma de Campbeltown. Além disso, não conseguiu se decidir por apenas um malte das Highlands – teve que desmembrá-la em West Highlands, Islands e Highlands. Por conta dessa história, a empresa criou uma variação das famosas regiões da Escócia, antes mapeadas por Michael Jackson. Assim, além do Lagavulin 16, que representa Islay, os Classic Malts originais eram Oban (West Highlands), Cragganmore (Speyside), Glenkinchie (Lowlands), Dalwhinnie (Highlands) e Talisker (Islands).

Os Classic Malts originais

O Lagavulin 16 anos é praticamente a ilha de Islay em uma garrafa. Até mesmo Georgie Crawford, gerente da destilaria, fala apaixonadamente sobre o whisky “não há qualquer outro produto por aí que você possa realmente fechar seus olhos enquanto bebe e ser transportado para o seu ponto de criação em sua mente. Quando bebo Lagavulin, sou instantaneamente transportada para o final do pier, observando a baía“.

Infelizmente, por algum motivo que foge à lógica deste Cão, o Lagavulin 16 anos não está à venda em nosso país. Sua proprietária, a Diageo, prefere trazer whiskies com preço de combate e sabor amável, por talvez imaginar que, nós, brasileiros, possuímos paladar doce e pouco desenvolvido para single malts. Assim, maltes bem menos louvados e conhecidos internacionalmente transbordam nossas lojas – como Glen Ord, Glenkinchie e Cardhu. Porém, outros, renomados e concorridos, somente podem ser comprados fora de nosso país, como Mortlach e Lagavulin. E nem adianta argumentar sobre o preço. Se há um whisky capaz de se vender sozinho, independentemente de seu valor, é o Lagavulin.

Neste ponto, eu poderia recomendar o Lagavulin 16 anos para certo tipo de leitor. Dizer que se você gosta de whiskies enfumaçados e medicinais, se apaixonará por ele. Porém, dessa vez, não farei isso. Serei bem mais aventureiro. Experimente o Lagavulin 16 anos independentemente de seu gosto pessoal. Mesmo se você gosta de bourbons, blends, ou se sua preferência for pelos florais, ou frutados, ou vínicos. Mesmo se você não suportar fumaça e tiver ódio de bacon. Mesmo assim, experimente o Lagavulin 16. Ele é indescritivelmente apaixonante.

LAGAVULIN 16 ANOS

Tipo: Single Malt com idade definida – 16 anos

Destilaria: Lagavulin

Região: Islay

ABV: 43%

Notas de prova:

Aroma: Predominantemente carvão, com aroma de esparadrapo e iodo.

Sabor: bastante defumado e rico, levemente frutado e com amargor acentuado. Final medicinal, com esparadrapo e carvão. Amargo, levemente salgado e bastante prolongado.

Com água: o aroma fica quase totalmente defumado. Na boca, o amargor fica menos evidente e um sabor de frutas secas fica evidente.

Preço: £55,00 (cinquenta e cinco libras)

 

 

 

Especial Islay – Visita à Bowmore

O poeta James Russell Lowe uma vez escreveu que apenas os tolos e os mortos nunca mudam de opinião. Platão, por sua vez, disse que a opinião é a mediatriz entre a ignorância e o conhecimento. Se James Russel Lowe e Platão pudessem saber de minha experiência na destilaria Bowmore, em Islay, certamente ficariam ainda mais orgulhosos de suas frases, agora elevadas a aforismos.

Antes de visitar a Bowmore, seus whiskies não eram, para mim, nada demais. Havia expressões ótimas, claro, como o dezoito anos. Mas havia também muitos single malts desequilibrados que na minha irascível opinião não passavam de honestos. Era o caso do Bowmore Darkest ou o Enigma, por exemplo. Achava que a Bowmore colhia os frutos do passado, mas que atualmente havia sido rebaixada para uma destilaria que produzia maltes defumados para todos aqueles que não suportavam maltes defumados.

Bem, durante a visita, minha opinião não se sustentou por mais de quinze minutos. Se Bruichladdich é inovação, Ardbeg é bravura e Lagavulin é aristocracia, então Bowmore seria detalhismo. Todos os processos, da maltagem à maturação, são pensado nos mínimos detalhes.

A destilaria está localizada dentro da cidade de Bowmore, e seu armazém colado na costa da ilha. Há uma incrível vista da destilaria, a partir de um dos píeres do porto da cidade. Ela possui também um hotel próprio – o Harbor Inn, onde este Cão ficou confortavelmente hospedado. Por conta da localização, a Bowmore é a destilaria  de Islay que mais recebe visitantes por ano. E por isso todos seus espaços são muito bem cuidados e organizados.

Lugar feio (Foto: Diego Muller)

A Bowmore possui três enormes andares dedicados à maltagem de sua cevada. Ainda que a destilaria compre cevada maltada de terceiros, aquela produzida in-loco corresponde a aproximadamente quarenta por cento de toda sua produção. É um número bem alto para uma destilaria nos dias de hoje – ainda mais porque a maioria delas nem mesmo possui malting floors.

O moinho Porteus que produz o grist (a cevada em pó) está no último andar. O foro de turfa – que seca e impregna a cevada com o delicioso aroma defumado – ocupa uma das laterais do prédio onde estão os malting floors. A construção inteira, apesar de sua latente idade, foi pensada para reduzir os tempos de produção e transporte dos elementos necessários para produzir o malte. Malte que, aliás, é defumado a 25 partes por milhão de fenóis – quase cirurgicamente no meio do caminho entre os monstros enfumaçados Ardbeg e Laphroaig e os amenos Bunnahabhain e Bruichladdich.

Há duas curiosidades interessantíssimas sobre a Bowmore, ao menos para os whisky geeks. A primeira é que a destilaria, lá pela década de 80, trocou seus washbacks de madeira por aço inox. Porém, houve uma notável mudança no sabor. Assim, a destilaria voltou a usar o equipamento de pinho. São cinco washbacks, cada um batizado com o nome de um dos antigos proprietários da destilaria. A segunda curiosidade é que no passado, os alambiques da Bowmore eram diferentes dos atuais. Não apenas em tamanho, o que seria normal. Mas também em formato. Havia, inclusive, um interessantíssimo alambique com dois braços – algo impensável nos dias de hoje.

Washbacks da Bowmore

A fermentação da Bowmore leva entre quarenta e sessenta horas, e produz um wash (mosto fermentado) com 7% de graduação alcoólica. Os alambiques de primeira destilação são carregados com 65% de sua capacidade. Já os de segunda destilação – à moda da Lagavulin – são quase inteiramente preenchidos: 92% de sua capacidade total. A destilação é rápida (em torn de 7 horas). O corte começa aos 74% e termina aos 61,5%. Os braços dos alambiques são retos, com pouco refluxo. Tudo isso contribui para um destilado bastante oleoso, ainda que, por conta da defumação mais tímida, isso não fique tão aparente quanto nos Lagavulin e Laphroaig, por exemplo.

OS FAMOSOS NO.1 VAULTS

Uma das maiores atrações da Bowmore, porém, são seus armazéns. Lá descansam mais de 27.000 barricas. Um deles, conhecido como No.1 Vaults é o mais antigo da Escócia inteira, datado de 1779. O espaço é tão alardeado pela destilaria que seu nome aparece na maioria de suas expressões. Tanto na garrafa quanto na embalagem.

Dentro dos No.1 Vaults (foto: Diego Muller)

Os Bowmore são maturados em uma extensa variedade de barricas. Há carvalho americano, carvalho europeu e até mesmo carvalho japonês, conhecido como Mizunara. A destilaria é bem conhecida por saber equilibrar com maestria o sabor enfumaçado com a influência vínica do porto e jerez. Uma técnica bem difícil, já que o sabor de vinho fortificado briga com o defumado da turfa.

Ao contrário da Lagavulin, o portfólio da Bowmore é extenso. Ele conta com uma expressão sem idade, uma com dez, outra com doze, duas com quinze, duas com dezoito e uma com vinte e cinco anos de maturação. Além delas, há uma série de edições limitadas, como Vault Edition, Mizunara, 26 anos e um incrível 54 anos. Há também uma edição especial limitada, que somente pode ser comprada na destilaria, e que ilustra este post. É o Warehouseman’s Selection, e que faz parte de uma coleção que presta homenagem àqueles que lá trabalham.

Depois de ter visitado a Bowomore e provado um pouco de tudo que me foi oferecido (afinal, não poderia deixar a oportunidade passar), um pouco cambaleante, me vi obrigado a reconsiderar tudo aquilo que pensava saber sobre a destilaria. A Bowmore não é um malte de Islay para aqueles que detestam fumaça. Não, a Bowmore é um malte de Islay para todos aqueles que adoram a dificílima e detalhista arte de se produzir whisky.

 

 

Jim Beam Bourbon – Sobre unanimidades

Talvez muitos dos leitores aqui não saibam disso. Já contei uma vez há algum tempo – sou advogado. Meu primeiro trabalho foi em um escritório relativamente grande de São Paulo, na área de Mercado de Capitais – talvez a segunda especialidade com a maior fauna de estereótipos, depois da famigerada trabalhista. A equipe era formada por quatro pessoas. Ou melhor, quatro personagens, todos com jeitos e gostos diferentes. O que, de certa forma, era enriquecedor, porque sempre conseguíamos abordar os problemas com diferentes enfoques, discutir e chegar à melhor saída. A equipe funcionava muito bem graças à essa diversidade. Quer dizer, quase sempre. Menos no almoço de equipe.

O almoço de equipe era um conflito quase irresoluto. Um era apaixonado por uma hamburgueria tão cara, mas tão cara, que o preço só se justificaria se os hambúrgueres fossem feitos de carne do rebanho de gado do Senhor Todo Poderoso, se o Senhor Todo Poderoso tivesse um rebanho de gado. Outra sempre queria comida japonesa. O sócio, Sr. Roberto, preferia o árabe, por conta das esfirras de ricota. E eu, recém-formado, com minha carteirinha da ordem meramente ornamental, topava qualquer um que não me transformasse em um camponês medieval, preso à terra, trabalhando um dia inteiro para pagar uma refeição.

Colhendo milho pro senhor feudal fazer bourbon.

Havia, porém, uma Suíça nessa história toda. Um restaurante buffet, que servia uma comida bem honesta. Não era o tipo de lugar que você iria para fotografar os pratos para colocar no Instagram. Mas ele tinha de tudo um pouco, e aí que estava sua genialidade. No polarizado mundo dos restaurantes especializados, ele não era nada. Ou melhor, era apenas um restaurante onde esfirras conviviam pacificamente com hambúrgueres e comida japonesa de autenticidade duvidosa. E por conta disso, era sempre o escolhido. Ele não ofendia ninguém.

Há conflito bem semelhante a esse no mundo do whisky. Todos nós temos preferências. Certos indivíduos – com bom gosto – são apaixonados pelos whiskies enfumaçados. Outros preferem aqueles com influência vínica e especiarias. Já alguns gostam daquele convidativo sabor adocicado e floral. Há também aqueles que não gostam muito do destilado puro, e preferem combiná-lo com outros ingredientes em coquetéis.

Encontrar um meio termo não é muito fácil. Porém, na singela opinião deste Cão, se houvesse um bourbon whiskey que pudesse atender a todos os gostos, ao menos minimamente, este seria o Jim Beam. O Jim Beam é um bourbon relativamente simples, sem muita complexidade e com graduação alcoólica baixa. E seu diferencial é justamente este. Por conta de seu perfil de sabor – aliado ao preço de combate – ele é capaz de agradar a quase todos os gostos, não importa quão diferentes. É um bourbon honesto, e não há nada intrinsecamente ruim sobre ele. Por isso mesmo que ele é um enorme sucesso. O Jim Beam é quase a democracia norte-americana em estado líquido.

O Jim Beam White Label – vamos chamá-lo aqui pelo nome completo – é o bourbon whiskey mais vendido do mundo. Atualmente, ele pertence à gigante multinacional Beam Suntory, que também detém marcas importantes como os single malts japoneses Yamazaki e Hakushu e as destilarias Laphroaig e Bowmore. Além deles, o grupo possui uma pletora de whiskeys americanos, com os mais variados perfis de sabor e faixas de preço, como Maker’s Mark, Knob Creek, Basil Hayden’s, Booker’s, Baker’s, Old Grand-Dad e Old Crow.

Apesar do enorme sucesso de hoje, a marca possui origens humildes. Ela foi fundada em 1795 por Jacob Beam, sob o nome de Old Jake Beam e em 1933 foi rebatizado para Jim Beam. A empresa – sempre sob controle familiar – sobreviveu à belle epoque e a duas grandes guerras. Durante os anos da lei seca, foi que encontrou mais dificuldade. Mas mesmo assim, apesar de todas as adversidades e com um empurrãozinho financeiro externo, a empresa cresceu e se estabeleceu como sinônimo da bebida americana. Até hoje a produção ainda é supervisionada por um membro da família de seu fundador, apesar do controle societário nipônico. Atualmente, o Sr. Fred Noe.

A família Beam não é a única a trabalhar na companhia por mais de uma vida. A levedura utilizada no processo de fermentação de seu mosto também. Ela pertence à mesma linhagem desde o final da Lei Seca – ou seja, é uma família que presta serviços ao bourbon por mais de setenta e cinco anos e, facilmente, milhares de gerações. Essa linhagem é tão preciosa à Jim Beam que exemplares são guardados em locais distintos, evitando que fosse perdida em algum acidente ou catástrofe.

Não, não vou falar da Mila Kunis. Esquece.

Como todos os bourbons, o Jim Beam White Label é produzido predominantemente de milho. Sua mashbill conta com 75% de milho, 13% de centeio e 12% de cevada maltada. A maturação ocorre em barris virgens e torrados de carvalho americano, e leva em torno de quatro anos. Se comparado a um whisky escocês, é bem pouco. No entanto, o calor do kentucky acelera bastante seu processo de amadurecimento. A graduação alcoólica de entrada nos barris é de 62,5% – o máximo permitido pelo Code of Federal Regulations.

Como um whisky para se tomar puro, o Jim Beam não é muito além de razoável. Porém, ele funciona bem com gelo, e muito bem para certos coquetéis, especialmente aqueles com perfil amargo ou azedo. É um bourbon whiskey com excelente preço, versátil e despretensiosamente agradável. No improvável caso de você nunca ter provado um bourbon, ou se estiver procurando um whiskey democrático e fácil de beber, o Jim Beam é um bom ponto de partida. Porque – adaptando a frase do grande poeta que inspirou o nome deste blog – whisky também é arte do encontro embora haja tanto desencontro no mundo do whisky.

JIM BEAM WHITE LABEL

Tipo – Kentucky Straight Bourbon

ABV – 40%

Região: N/A

País: Estados Unidos

Notas de prova

Aroma: adocicado, açúcar refinado, baunilha. Muita baunilha.

Sabor: adocicado, com açúcar refinado. Algo frutado. Mais baunilha. Sinto-me mastigando um toco de baunilha.

Com água: A água torna o whiskey ainda mais doce.

O Cão Explica – Whisky estraga depois de aberto?

Desde que o homo sapiens sapiens adquiriu consciência de sua consciência, passou a questionar o mundo ao seu redor. Do mais profundo existencialismo até as coisas mais frívolas. Debruçamo-nos em questões tão complexas quanto a formação do universo com a mesma energia que questionamos as mais simples. Não existe resposta estúpida para a verdadeira curiosidade. Afinal, é sempre interessante saber por que a água da privada gira no sentido horário para nós. Ou se o barulho que os dinossauros do Jurassic Park faziam era parecido com o real.

Há, claro, aquela categoria de indagações que, muito provavelmente, jamais serão respondidas. São todas aquelas que dependem, essencialmente, daquilo que escolhemos acreditar. Ainda que mesmo essa afirmação seja bem polêmica. O sentido da vida e a natureza do tempo, por exemplo. E por fim – não menos polêmica ou mais simples de ser respondida – está a questão que todo apreciador de whiskies faz, ao menos uma vez na vida. Será que o whisky estraga depois de aberto?

A resposta mais acurada é sim, é claro. Porém, determinar o prazo para isso acontecer e – mais importante de tudo – para que se torne notável, dependerá de um sem fim de fatores. Dentre eles está a temperatura, o volume de líquido dentro da garrafa, o diâmetro da garrafa (é isso mesmo!) e quanto a garrafa é mexida. Esses elementos influenciam em um fator bem conhecido pelo pessoal dos vinhos, mas pouco explorado por nós, apreciadores de destilados. É a oxidação. Além dele, há também a evaporação, que não pode ser ignorada.

Uma garrafa de 1894, descoberta enterrada sob a Ruthven Road, na Escócia. Será que já oxidou?

Deixe-me ilustrar com um exemplo. Talvez você já tenha deixado, por um terrível e indesculpável equívoco, uma dose sem beber em algum copo, durante uma noite inteira. Porém, ao perceber o erro, e para evitar o desperdício, resolvera que seria uma boa ideia provar daquele líquido. Quase todos nós já fizemos isso. O resultado da experiência dependerá muito da dose, porém, de forma geral, o que você encontrará será um whisky bem mais monotemático e menos picante. As culpadas são justamente a oxidação e a evaporação. Algo semelhante ocorre, em uma velocidade muito menor, dentro de sua garrafa.

Vamos à primeira razão. A oxidação acontece quando a bebida é exposta ao oxigênio. O oxigênio, presente no ar, reage com certos componentes da bebida. São os ésteres e os tióis, que proporcionam alguns daqueles tão agradáveis aromas em sua dose preferida, e que tendem a perder força com a oxidação.  Com os fenóis a história é um pouco ambígua. Enquanto aqueles responsáveis pelo aroma enfumaçado e medicinal diminuem, a vanilina, que traz aquele incrível aroma de baunilha, aumentam.

Para não tornar o papo muito insuportável, vou simplificar. Ao longo dos meses, o líquido daquela sua belíssima garrafa guardada para momentos especiais mudará. Ele se tornará um pouco mais frutado e a baunilha se evidenciará. Porém, os sabores e aromas defumados e medicinais – se algum dia ele já tiver sido defumado e medicinal – assim como as especiarias e o cítrico, se reduzirão. Outros sabores, como o de borracha queimada e aquele inconveniente sabor metálico serão evidenciados.

O whisky, no entanto, possui algumas vantagens sobre a maioria das outras bebidas. Em primeiro lugar, por conta de sua graduação alcoólica elevada – quer dizer, ao menos bem mais elevada que a de um vinho, por exemplo – este fenômeno demora bastante para acontecer. O álcool tende a conservar melhor os elementos que caracterizam os aromas e sabores da bebida. Além disso, muitos creem que a maturação em barricas também auxilia nesta tarefa. Os óleos essenciais da madeira aumentariam a tensão superficial, reduzindo evaporação e, por consequência, a oxidação.

O tempo que levará para que estas alterações ocorram, como disse, dependerá de certos fatores. Porém, de uma forma bem genérica, quanto maior for o contato com o ar, mais rápido elas acontecerão. Assim, uma garrafa com diâmetro maior e que esteja com whisky pela metade – por possuir mais líquido em contato direto com o ar – oxidará mais rápido, mantendo-se as mesmas condições. Da mesma forma, uma ampola que é frequentemente mexida ou agitada tende a ser aerada, fazendo com que o oxigênio reaja mais rapidamente com o whisky.

O volume do whisky dentro da garrafa também é determinante. Não importa se você é um otimista ou pessimista, a garrafa sempre estará cheia. Em parte de whisky, e, a outra parte, de ar. Quanto mais ar houver em relação à bebida, mais rápida será a evaporação e a oxidação. Assim, não adianta ficar lá guardando aquela última dose daquela tão estimada garrafa. Ela oxidará. Eu sei que você já fez isso. Eu fiz. É estúpido.

Não importa se ele está meio cheio ou vazio, contando que tenha whisky!

A temperatura também é um elemento importante. Quanto mais quente for o ambiente, naturalmente, maior será a evaporação. E quanto maior for a evaporação – de uma forma geral – menor será a graduação alcoólica ao longo do tempo. E como o álcool é justamente um dos fatores que previne a oxidação da bebida, quanto menos álcool, mas rápida será a oxidação. É por isso, aliás, que vinhos oxidam mais rapidamente que whiskies.

Talvez, neste ponto do texto, você já esteja enxergando a oxidação como seu maior inimigo. Calma. Como tudo, a oxidação é multifacetada. Um fenômeno tão indesejado nas garrafas é, na verdade, bastante desejado durante o processo de maturação do destilado. Os whiskies, enquanto passam seu amadurecimento nas barricas, entram em constante contato com o ar, por conta de uma folga (um espaço com ar dentro da barrica, que nunca é enchida até transbordar). E esse elemento influencia diretamente no sabor dos whiskies. Isso é interessantíssimo, porque é um elemento que não pode ser alterado, ainda que outros truques para acelerar a maturação sejam empregados – como, por exemplo, o uso de quarter casks.

Porém, a questão essencial ainda não foi respondida. Quanto tempo leva para que o whisky torne-se impossível de ser bebido por conta da oxidação. Bem, esta é uma resposta que depende de um outro elemento, que é completamente subjetivo. O apreciador. O whisky continuará a ser palatável enquanto seu entusiasta o apreciar. Algumas diferenças sutis podem ser sentidas ao longo de alguns – muitos – meses. Já diferenças realmente relevantes, no entanto, levarão bem mais tempo. Ainda que muitos concordem que o tempo varie entre um e três anos, isso dependerá, essencialmente, das condições de armazenagem da bebida, e de quanto whisky ainda há na garrafa.

Assim, meus caros leitores, não se preocupem muito com este assunto. Apenas peguem aquela garrafa com o último fio da preciosa água da vida, desçam em seus copos e apreciem. E nesta contemplação, aproveitem para refletir sobre todas aquelas perguntas que – assim como esta – provavelmente jamais serão respondidas. A natureza do tempo. O sentido da vida. Ou divirtam-se com as frivolidades. Eu ajudo. É mentira que a água gira apenas no sentido horário. E os grunhidos dos dinossauros na discutível obra prima de Steven Spielberg são, na verdade, de animais copulando. Quem poderia imaginar, não é mesmo?

 

Especial Escócia – Visita à Lagavulin

Bruichladdich é inovação, Ardbeg é bravura. Lagavulin, por sua vez, é aristocracia. A Lagavulin é o representante perfeito de um cavaleiro medieval no mundo dos whiskies. Por fora, elegante, polido e respeitado. Mas, ao mesmo tempo, violento e direto. Ele foi por muito tempo meu single malt preferido, e provavelmente um dos lugares que mais queria conhecer em minha vida. Ter a oportunidade de atravessar os corredores da destilaria e participar de uma degustação lá, onde o líquido é produzido, foi incrível.

Tudo que emana do copo está representado em seus ambientes. As instalações da Lagavulin são o lugar-comum da cultura do whisky. Chão de madeira que range a cada passo, não importa quão leve. Poltronas botonê de couro, lareira e galhadas de cervos penduradas na parede. Luz quente e luminárias verdes. E claro, infinitas cristaleiras, exibindo todas as glórias daquela destilaria. Se uma garrafa de Lagavulin pudesse agir como uma pessoa, sua casa seria decorada justamente daquele jeito.

Ao contrário do que aconteceu com as demais destilarias, não pudemos percorrer os prédios da Lagavulin. Nosso tour permitia apenas a uma degustação em um de seus saguões, acompanhados de uma guia – que aliás, parecia tão apaixonada pela destilaria quanto eu. Mas isso não importava muito, mesmo porque aquela foi uma das degustações mais interessantes que participei.

A PROVA

Ao invés das tradicionais doses servidas em copitas ou glencairns, havia somente uma taça e uma pequena caixa de madeira, semelhante àquela de charutos. Dentro dela, pequenos vidrinhos, contendo seis doses de whisky e alguns aromas – como baunilha, chá defumado Lapsang Souchong e grama molhada. A ideia é que pudéssemos experimentar o quanto quiséssemos de cada um dos whiskies. O que restasse, levaríamos para casa para uma nova prova.

Kit (Foto: Diego Muller)

Durante a degustação, nossa guia explicou alguns fatos sobre a destilaria. A Lagavulin produz, hoje, 1,4 milhões de litros de whisky. A cevada é trazida da irmã Port Ellen Maltings, especificada com 35 partes por milhão de fenóis. A fermentação leva em torno de sessenta horas – a média das destilarias escocesas – e o resultado é dividido em dois alambiques de primeira destilação, com conteúdo de dez mil e quinhentos litros cada. Aí está um diferencial importante da Lagavulin. Os alambiques são carregados com 85% de sua capacidade total. Isso contribui para a oleosidade do destilado final.

Os alambiques de segunda destilação (spirit stills) da Lagavulin são mais baixos que os de primeira e possuem braços descendentes – o que aumenta também a oleosidade da bebida. A segunda destilação leva bastante tempo. Dez horas. A razão disso é muito simples. Os alambiques são carregados quase até transbordarem, a 95% de sua capacidade. Leva bastante tempo para que aquele par de belas peças de cobre deem conta de tudo que está em seu interior. O coração dos Lagavulin começa com 72% de álcool e termina em 59%. É um corte bem largo.  A pungência do whisky – suas notas indiscutivelmente medicinais, defumadas e de cera – provém da união de todos estes fatores.

Nosso kit continha alguns dos aromas essenciais dos Lagavulin. Pudemos provar o último Feis Ile, lançado em homenagem à mais importante festa anual de Islay, bem como a edição especial com 8 anos de maturação, recentemente lançada. A cada taça, éramos estimulados a encontrar semelhanças entre os whiskies e os aromas incluídos na caixa. Tudo muito elegante. Nossa guia explicou que algumas das expressões lá contidas não fazem parte do portfólio permanente da destilaria. Este conta apenas com dois whiskies – o Lagavulin 16 e o Distiller’s Edition, além de uma edição limitada anual – o 12 anos Cask Strength. É um portfólio bem reduzido, mas para produzi-lo, a destilaria funciona quase ininterruptamente.

FUMAÇA DO PASSADO

Mas o que nossa guia deixou de contar é que a Lagavulin nem sempre teve este sucesso estrondoso. Em suas primeiras décadas, aconteceu um famoso caso de animosidade com um de seus célebres vizinhos. A Laphroaig. Ocorre que até 1907 havia um acordo entre Peter Mackie, um dos sócios da Lagavulin – e do famoso White Horse – e a Laphroaig. O contrato previa que Mackie usaria sua agência de distribuição para entregar também Laphroaigs. Era uma situação win-win: Mackie poderia apresentar seu malte para os compradores de Laphroaig, enquanto esta se beneficiava de distribuição terceirizada e bem feita. Porém, em 1907 a Laproaig resolveu andar com as próprias pernas, e criar sua própria rede de distribuição.

Peter Mackie ficou absurdamente enraivecido. Sua raiva foi tamanha que ele, por mais de uma vez, tentou sabotar a destilaria e tirá-la do mercado. Em uma das tentativas, construiu uma barragem entre a Lagavulin e sua repentina inimiga, numa tentativa de impedir o fornecimento de água à destilaria. A Laphroaig foi à justiça e venceu. Não satisfeito, Mackie resolveu que, na verdade, o melhor seria copiar a vizinha. Gastou rios de libras construindo uma cópia em miniatura da Laphroaig, e a batizou de Malt Mill. A destilaria funcionou de 1908 a 1962. No entanto, nenhum dos atuais funcionários da Lagavulin lembram-se do sabor da Malt Mill. O whisky era usado em blends, como o Lammas Brew e Old Highland Whisky.  A Malt Mill foi ressucitada no filme A Parte dos Anjos (“The Angel’s Share”) de Ken Loach. Na película, um barril esquecido da destilaria é encontrado, e leiloado por milhares de libras.

A única garrafa de Malt Mill conhecida (e eu, subliminar).

Mas toda esta história é fumaça do passado. A Lagavulin, hoje, é a liquefação da sofisticação bruta, a nobreza dos maltes de Islay. Parece haver um ritual, uma cerimônia, para tudo. Mesmo que este delicado ritual termine em um violento golpe defumado em nossos paladares. Um golpe que eu tomaria novamente sem o menor esforço.

Drink do Cão – Dramble

Uma pequena mudança ali, uma substituição aqui e pronto. Como já disse uma vez, nada é tão bom que não possa ser melhorado. Um perfeito exemplo disso é a história da maior contribuição do povo norte-americano à gastronomia internacional. Um dos pratos mais polivalentes do mundo. O cheeseburger.

No começo, o cheeseburger, ou melhor, o hambúrguer – um prato tipicamente alemão – não passava muito de uma carne moída temperada. Até que os americanos, mundialmente conhecidos por deixar qualquer comida gorda, o aperfeiçoaram, introduzindo o pão.

Mas o ser humano é inventivo e não tem limites. Não havia qualquer razão para parar por aí. assim, em meados de 1920, um rapaz que trabalhava com o pai em sua loja de sanduíches, chamado Lionel Sternberger, resolveu experimentalmente fritar queijo junto com a carne.

Quase um século depois, o cheeseburger está por toda parte. Naquele restaurante elegante, na padaria da esquina, no foodtruck e na festinha infantil – onde é disputado como a mais incrível das iguarias. Ele é o grande representante da comida rápida, mas que facilmente pode se adaptar à sofisticação da alta gastronomia. Quem diria que a combinação de pão, carne e queijo fosse ficar tão boa.

Uma combinação muito semelhante a essa é a do Bramble, coquetel que leva limão siciliano, gim, calda de açúcar e Crème de Mûre. Ele foi criado nos anos oitenta, pelo bartender Dick Bradsell, no bar Fred’s Club, de Londres.  É um coquetel que equilibra com enorme competência o cítrico do limão siciliano com o dulçor do Crème e as notas herbais do gim. Apesar de ser  relativamente jovem, o Bramble já figura entre os coquetéis oficiais da International Bartender’s Association, e está entre os cem melhores do Difford’s Guide. Aliás, Bradsell possui duas criações dentre os cem. O Bramble e seu Espresso Martini. Se quiser saber mais, leia aqui uma excelente matéria sobre ele produzida pelo Mixology News.

Name is Bradsell, Dick Bradsell.

O Bramble parece irretocável. Só que, assim como o hambúrger, há sempre espaço para aperfeiçoamento. Com uma simples substituição, descoberta por acaso por Jacob Briars, embaixador mundial da Bacardi, temos algo ainda melhor. Quer dizer, ao menos para um apaixonado por whiskies, como este Cão.

De acordo com Fraser Campbell, embaixador mundial dos whiskies Dewar’s, certo dia Jacob brincava de substituir a base de coquetéis famosos por Dewar’s 12 anos. A ideia de produzir um bramble com o whisky não foi exatamente premeditada. Ela foi uma de muitas tentativas despretensiosas naquele dia. A maioria delas, experimentada pela primeira e última vez naquele dia de ócio criativo. Mas ao provar aquela sua criação, Briars percebeu que havia criado algo extraordinário. E assim nascia o Dramble. O nome foi um trocadilho com o do coquetel que lhe inspirou e a palavra “dram” – usada pelos escoceses para referirem-se a uma dose de whisky.

A preparação do Dramble é muito semelhante àquela do Bramble. A única diferença é a substituição do gim por whisky. Neste ponto, eu normalmente diria a você, querido leitor, que teste com sua garrafa favorita. Diria para usar a criatividade, e testar com algo defumado, para depois correr para algo com influência de vinho jerez.

Mas, dessa vez, excepcionalmente, não farei isso. Serei categórico. Use Dewar’s 12 anos. Eu sei que pode funcionar com outros whiskies. Mas é que o coquetel foi concebido utilizando o blend como base. E ainda que a simples substituição de uma base alcoólica por outra – o gim pelo whisky – possa parecer algo trivial, o coquetel somente tornou-se um novo pequeno ícone por conta do Dewar’s e do esforço e talento de Fraser, que tornou o Dramble seu cartão de visitas. E para falar a verdade, O Dramble parece mesmo ter nascido para o Dewar’s. É uma combinação perfeita.

Há outra ressalva que preciso fazer. Quando comecei a preparar este texto, tive uma enorme dificuldade em encontrar Crème de Mûre. Recebi diversas sugestões excelentes, mas uma delas – do prestativo bartender Thiago Crimsom – me pareceu interessante. A de preparar seu próprio Crème, utilizando amoras congeladas. O interessante é que com este método você pode regular o quanto de dulçor exatamente quer no licor, criando um drink absolutamente perfeito para seu paladar. A receita de seu  Crème de Mûre seguirá após a do coquetel.

Assim, queridos leitores, preparem-se para um clássico revisitado como poucos. E claro, para revisitar também o supermercado (ou você, por acaso, estoca amoras e Crème de Mûre em casa?). Agarrem a garrafa de Dewar’s 12 e contemplem este incrível filhote do ócio criativo. O incrível…

…DRAMBLE

INGREDIENTES

  • 50 ml de Dewar’s 12
  • 25 ml de sumo de limão siciliano
  • 12.5 ml de calda de açúcar (ao invés de 1:1, faça na proporção de 2:1 – dois de água para um de açúcar. Veja como preparar a calda aqui)
  • 10 ml de Crème de Mûre (Não é um item muito fácil de se encontrar por aqui. Por sugestão de Fraser Campbell, em sua recente viagem para o Brasil, tente substituir o Crème de Mûre por Crème de Cassis. Pode funcionar)
  • Amora
  • Gelo picado

PREPARO

  1. Adicione todos os ingredientes (menos a amora e o Crème de Mûre) em um copo baixo
  2. Adicione um pouco de gelo picado ao copo, até cobrir o líquido, e mexa com uma colher bailarina
  3. complete o copo de gelo picado
  4. desça com cuidado o Crème de Mûre sobre o gelo, de forma que ele escorra lentamente até chegar ao fundo do copo
  5. Decore com uma amora

PARA O CRÉME DE MURE

INGREDIENTES

  • Pacote de 1kg de amoras congeladas
  • açúcar refinado
  • Vodka (por favor, bom gosto aqui, meus caros)
  • Brandy (não, não precisa ser aquele seu Hennessy XO. Um brandy razoável funciona).

PREPARO

  1. Deixe as amoras descongelarem dentro da embalagem. Depois, congele novamente. Isso formará pequenos cristais de gelo ao redor das frutas. Estes cristais perfurarão as cascas, e extrairão o sumo que utilizaremos a seguir.
  2. Descongele novamente as amoras sobre uma peneira, com algum recipiente embaixo. A ideia é que o sumo atravesse a peneira e caia no recipiente. É impossível determinar quanto de sumo sairá neste processo. Isso dependerá bastante de uma série de fatores. Este Cão extraiu, em suas duas tentativas, aproximadamente 100ml de sumo para 1kg de amoras congeladas.
  3. Prepare um xarope simples, utilizando o sumo de amora no lugar da água (veja como preparar esta calda aqui). Se achar seu licor muito doce na primeira tentativa, procure aumentar a proporção de sumo na segunda. Assim você pode controlar o dulçor do Crème.
  4. Adicione a este xarope a vodka e o brandy, numa proporção de 1 de cada para 3 de xarope (1 parte de brandy e 1 parte  de vodka para 3 partes do xarope).
  5. Guarde na geladeira por até 15 dias.