Lagavulin 11 Offerman Edition Guiness Cask Finish – Drops

Drops são nossos posts menores, de análise ou curiosidades do mundo do whisky, e que contam com rótulos indisponíveis no Brasil – mas com alguma particularidade interessante. Para ler outros drops, clique aqui


Eu viajei pelo mundo e experimentei muitas tentativas de criar néctares agradáveis, mas é apenas esta destilação de Islay; uma pequena e carismática ilha escocesa que conquistou meu paladar. Sim, e meu coração junto.” A frase é de Nick Offerman, o ator que vive – ou melhor, que é – Ron Swanson na vida real. Offerman é um fã incondicional da Lagavulin. Tão apaixonado que criou e produziu uma série de curtas sobre sua paixão – o que, pra falar a verdade, não é tão estranho assim, eu faria o mesmo.

Ocorre que Offerman é uma celebridade. E, como uma celebridade, há a possibilidade de exercer sua paixão de uma forma pouco acessível para pessoas normais. Como, por exemplo, lançar sua própria série de whiskies em parceria com a Lagavulin. E é daí que surgiu o Lagavulin Offerman Edition: Guiness Cask Finish, tema desta prova.

Na verdade, o Lagavulin 11 Offerman Edition: Guiness Cask Finish não é a primeira colaboração entre Offerman e a destilaria de Islay, mas sim, a segunda. A primeira edição – um Lagavulin 11 anos – foi lançado em Outubro de 2019. Daquela vez, sem finalizações especiais. Apenas um single malt de uma das melhores destilarias da Escócia, produzido com todo cuidado, escolhido e curado por Nick.

O storytelling aqui é bem elaborado. Um curta-metragem estrelado por Offerman e seu pai (no mundo real!) ilustram os dois tomando Guiness. Nick recebe uma ligação emergencial da Lagavulin, que lhe explica que acabaram os barris. O entusiasta, então, resolve o problema de uma forma pouco ortodoxa – considerando a paixão do pai pela Guiness, encomenda barricas daquela cervejaria para que envelheçam seu single malt favorito. Recomendo assistir o vídeo – que leva uns dez minutinhos – e é bem melhor que esta descrição com spoilers.

Tá, talvez seja um pouco estranho ter um telefone de disco na mesa do bar.

Como você já deve ter presumido, o Lagavulin 11 Offerman Edition: Guiness Cask Finish é um Lagavulin com 11 anos de maturação, finalizado em barris de cerveja Guiness. Mais especificamente, barris utilizados pela Guiness em sua Open Gate Brewery, localizada em Baltimore, Maryland. De acordo com a Lagavulin, o single malt é uma rica combinação das “notas intensas de turfa e madeira carbonizada” provenientes do whisky, com notas mais doces de café, chocolate escuro e caramelo dos antigos barris Guinness.

Sensorialmente, o Lagavulin Offerman Edition é, curiosamente, quase um whisky didático. Todas as notas que deveriam estar lá, estão. É como se Nick pegasse em sua mão, com sua tradicional delicadeza, e explicasse. Agora, você vai perceber fumaça. Iodo e sal, com um pouco de medicinal. Agora você vai começar a sentir um sabor de chocolate, café, malte. Mais um pouquinho de fumaça, pimenta do reino – agora vá lá e faça uma cadeira de marcenaria. É incrível como a complexidade deste malte está distribuída ao longo da prova.

Infelizmente e como você já deve ter presumido, o Lagavulin 11 Offerman Edition: Guiness Cask Finish não está à venda no Brasil. Nem qualquer Lagavulin, para falar a verdade. Mas, caso você tenha a sorte de pescar um destes peixes raros – outro passatempo de Nick e seu pai – não deixe de prová-lo. É sim, um single malt endossado por uma celebridade. Mas, não daquele jeito que conhecemos. É um whisky incrível, com um storytelling capitaneado por um verdadeiro entusiasta.

LAGAVULIN 11 ANOS OFFERMAN EDITION GUINESS CASK FINISH

Tipo: Single Malt com idade definida – 11 anos

Destilaria: Lagavulin

Região: Islay

ABV: 46%

Notas de prova:

Aroma: carvão, esparadrapo, chocolate, café.

Sabor: bastante defumado e rico. Os sabores se sucedem como em uma fila: fumaça, iodo, esparadrapo, chocolate e café. Final defumado e apimentado.

Whisky gentilmente oferecido e provado em companhia do amigo Nilo. Obrigado!

Bowmore 12 anos – Renúncias

O filósofo existencialista Jean-Paul Sartre escreveu que somos livres porque podemos escolher. Mas que cada escolha é uma renúncia. Já o dinamarquês Søren Kierkegaard – aliás, não faço a menor ideia de como se pronuncia um ó cortado – delineou que é o ato de fazer escolhas que traz significado à vida. O que é bem curioso vindo de um cara cujo sobrenome é uma variação de Kirkegård, que significa cemitério em sua lingua, e que morreu aos quarenta e dois anos de idade. Mas deixemos o senso deturpado de ironia de lado.

Pela doutrina da dupla sertaneja do existencialismo Søren e Sartre, somos a soma de nossas escolhas. Não das pequenas, claro, porque você pode escolher comer um dogão um dia, miojo na outra e depois uma pizza, e isso não fará muita diferença na sua existência, exceto se continuar se alimentando estupidamente por um longo prazo. Mas, das maiores. Escolher um ofício significa renunciar a todos os outros, por exemplo. Deixar de escolher algo também, porque não tomar qualquer decisão é, na verdade, decidir pela passividade.

Nem comecem com o “te tornas…”.

Entretanto, as escolhas são limitadas por nossas possibilidades. A liberdade, para eles, na verdade não está em poder ser YOLO e sair correndo pelado no meio da Avenida Paulista cantando a música da fazendinha do Bita e os Animais. Mas de ter arbítrio, e se responsabilizar por aquilo que escolheu – e saber que correr nu em lugares públicos entoando canções infantis traz consequências. A liberdade carrega uma boa carga de responsabilidade. Por isso, algumas escolhas são terrivelmente angustiantes. Eu, por exemplo, não tive muitas dúvidas quando decidi que queria aprender violoncelo aos quatorze anos, porque não tinha muito a perder. Mas refleti por um bom tempo antes de seguir a profissão de advogado – algo que, pensando em retrospectiva, não adiantou muita coisa.

Desde que comecei a me interessar por whiskies, até agora, já fui algumas vezes indagado sobre minha destilaria favorita. E, por muito tempo, deixei de escolher. Talvez porque elegendo um, sentisse que excluiria os demais. Mas, pensando bem, o fascínio que tenho pelo destilado resida, em boa parte, nisso. Eu posso escolher um preferido – isso não me impede de apreciar os outros. É uma escolha sem muitas consequências. Então, está aí. Pela primeira vez, escrito aqui, neste Cão Engarrafado, notícias de ontem. Minha destilaria favorita é Bowmore. E ela acaba de desembarcar no Brasil com seu Bowmore 12 anos – o tema desta prova.

O Bowmore 12 anos é maturado principalmente em barricas de carvalho americano que antes contiveram bourbon whiskey. E ainda que a influência vínica pela qual os Bowmore sejam admirados não esteja lá – ao menos não escancarada – o Bowmore 12 anos traz a mesma genética de sofisticação de seus irmãos mais maturados. A palavra de ordem, aliás, parece ser sofisticação, e não intensidade. Ele é indiscutivelmente um single malt de Islay. Todas as credenciais estão lá: enfumaçado, medicinal e iodado. Mas, há também espaço para que o barril brilhe, e um equilíbrio que perigosamente te convida para o próximo gole.

O malte usado no Bowmore 12 anos é produzido em boa parte na própria destilaria. Ela é uma das únicas da Escócia que mantém ativos seus malting floors. E ainda que não seja autossuficiente em seu processo de malteação – parte dele é comprado da Port Ellen Maltings – aproximadamente 40% de toda cevada utilizada é malteada sob seu teto. O malte é turfado a a 25 partes por milhão de fenóis – quase cirurgicamente no meio do caminho entre Ardbeg e Laphroaig e os amenos Bunnahabhain e Bruichladdich.

Vamos a alguns fatos para geeks. A fermentação da Bowmore leva entre quarenta e sessenta horas, e produz um wash (mosto fermentado) com 7% de graduação alcoólica. Os alambiques de primeira destilação são carregados com 65% de sua capacidade. Já os de segunda destilação – à moda da Lagavulin – são quase inteiramente preenchidos: 92% de sua capacidade total. A destilação é rápida (7 horas). O corte começa aos 74% e termina aos 61,5%. Os braços dos alambiques são retos, com pouco refluxo. Tudo isso contribui para um destilado bastante oleoso, e com um caráter vegetal que este Cão absolutamente idolatra.

Washbacks da Bowmore

A fermentação da Bowmore acontece até hoje em washbacks de pinho. São cinco ao todo. Cada um, batizado com o nome de um fundador da destilaria. Na década de oitenta, a Bowmore tentou trocar seus washbacks por versões de aço inox. Mas, notando que havia uma sensível diferença de sabor, voltaram aos tradicionais tanques de fermentação. Diz-se que parte do caráter frutado e vegetal presente no new-make da Bowmore advém, justamente, da maturação em tais washbacks.

O Bowmore 12 anos começa a ser vendido no Brasil em Agosto de 2021, e o preço proposto é de R$ 420,00 (quatrocentos e vinte reais). O que parece um valor razoável, considerando o preço dos demais single malts de Islay disponíveis em nosso mercado. Seja como for, experimente o Bowmore 12 anos. Afinal, de acordo com Kierkegaard , são essas escolhas que trazem (um excelente) significado à vida.

BOWMORE 12 ANOS

Tipo: Single Malt com idade definida – 12 anos.

Destilaria: Bowmore

Região: Islay

ABV: 40%

Notas de prova:

Aroma: turfado, defumado e iodado. Aroma vegetal.

Sabor: Início defumado e seco, com caramelo e baunilha. Herbal, com pimenta do reino, fumaça e esparadrapo.

A venda no Caledonia Whisky & Co. em dose e garrafa.

Old Parr 18 anos – Iguaria

Recentemente, um grupo de comensais elegeu uma iguaria islandesa, conhecida como hákarl, como a pior comida do mundo. Um dos corajosos provadores inclusive, disse que aquilo era “a pior coisa que eu já coloquei na minha boca“. Sem julgamentos de valor aqui. Ainda que eu nunca tenha provado, as descrições menos sintéticas fazem alusão a palavras pouco convidativas à mesa, como podre, ácido, putrefeito, urina e – brilhantemente em minha opinião – cocô. O que não é surpreendente. Hákarl faz parte do Þorramatur – o prato nacional da Islândia – e é feito de tubarão podre. Mais especificamente, o tubarão-da-groenlândia. Que possui carne venenosa devido à alta concentração de ácido úrico. É este processo de putrefação e cura que o torna (discutivelmente) consumível.

O tubarão-da-Groenlândia não é lá um bicho muito aprazível quando preparado como alimento. Mas, é menos ainda quando encontrado vivo. Suas barbatanas são pequenas, atrofiadas e cheias de marcas. O couro é áspero e irregular. O maxilar protuberante faz com que os dentes fiquem à mostra, e parasitas asquerosos se penduram em seus olhos e se alimentam de sua córnea – que aliás não servem para muita coisa além de reforçar já um ar repulsivo. Mas, apesar de tudo isso, o tubarão da Groenlândia é um bicho espetacular. Especialmente, por conta da longevidade.

Eu imagino um islandês dizendo “nossa, isso deve ficar uma delícia podre”. Gente.

Cientistas já sabiam que o tubarão-da-groenlândia era um bicho bem longevo. Mas, depois de um estudo aprofundado – com mais de vinte indivíduos – fizeram uma descoberta extraordinária. Ele é, provavelmente, o animal com maior expectativa de vida do mundo. O estudo mediu o nível de carbono-14 nas fibras das lentes oculares destes animais e descobriu que o maior deles – uma fêmea – tinha meio milênio de idade. E como se só isso não fosse incrível o suficiente, aprenderam que estes tubarões atingiam a idade reprodutiva apenas aos cento e cinquenta anos. Gente, sério, imagina esperar cento e cinquenta anos para, bem, enfim. Esqueçam.

Tudo bem que números como estes prescindem explicações. Mas, a história fica ainda mais esquisita quando pensamos que Thomas Parr – um homem conhecido por ser o mais longevo da história – faleceu aos cento e cinquenta e dois anos e nove meses. Se fosse um tubarão-da-Groenlândia, Parr esbarraria apenas na maioridade. Mas, como um homem, teve uma vida incrivelmente longa. Diz-se que seu segredo – assim como o dos tubarões – era a de ter poucas restrições alimentares. E tomar pouco banho, que lhe trazia um aroma próximo àquele do hákarl. O que não o impediu de ter um caso extraconjugal ao fazer um século de idade.

Por conta de sua longevidade, Thomas Parr – outrora um camponês comum – tornou-se uma celebridade. Logo antes de falecer, viajou para Londres, para conhecer o rei Charles I e foi tratado como um espetáculo. Adquiriu tamanha notoriedade que, após seu (cada vez mais improvável) falecimento, foi sepultado na abadia de Westminster – reservada para pessoas de grande proeminência na história britânica, como monarcas, primeiros-ministros, atores e cientistas. Parr também recebeu diversas homenagens. Dentre elas, uma de singela significação para os apaixonados por whisky. O blended scotch Old Parr – da qual o Old Parr 18 faz parte.

Depois de 152 anos, por que parar?

O Grand Old Parr foi lançado em 1871 pelos irmãos James e Samuel Greenlees, conhecidos comerciantes de bebida do século dezoito. Batizar seu mais importante blended whisky de Old Parr ressaltaria o tempo de maturação do produto, algo que, na época, era considerado sinônimo de qualidade – o que hoje é bem discutível. Após uma série de fusões e aquisições, o Grand Old Parr passou a fazer parte do portfólio da Diageo, a gigante por trás também da Johnnie Walker. Que mais tarde estendeu a linha e lançou o Old Parr 18 anos – antes conhecido como Old Parr Superior.

Em 2019, o Old Parr Superior passou por um rebranding, perdeu sua alcunha e colocou a idade em evidência. A garrafa, antes fosca, passou a ser a mesma de seu irmão mais jovem, o Old Parr 12 anos, e ganhou uma textura mais brilhante. O whisky passou a ser conhecido simplesmente como Old Parr 18 anos. O perfil do blend, entretanto, de acordo com a informação oficial, permaneceu inalterado – inclusive pelos seus malts base, que são Cragganmore e Glendullan. A diferença ficou por uma discreta redução na graduação alcoolica, de 43% para 40% – algo que, convenhamos, é uma tendência absolutamente natural do mercado de whiskies atual.

Em 2007 um importante jornalista internacional especializado em whisky escolheu o Old Parr Superior como whisky do ano, atribuindo-lhe uma nota de noventa e sete pontos. Nas palavras do especialista, o whisky era capaz de “incorporar muitas características distintas e criar algo único (…). Ele tem complexidade incrível, e é exatamente isso que um blend deve ser“. Outros, definiram o whisky como “extremamente enfumaçado“. Se este for o caso, e com toda vênia, meu olfato canino é pior que a visão do tubarão-da-Groenlândia.

Old Parr Superior

O Old Parr 18 me pareceu um whisky complexo – tudo bem – mas com defumação extremamente discreta. Ele é menos defumado e agressivo, inclusive, que seu irmão mais novo – o Old Parr 12 anos. E ainda que a complexidade esteja lá, ela advém, especialmente, da madeira. A maturação está claramente em evidência no Old Parr 18 anos, em detrimento de quaisquer características sensoriais trazidas pelo new-make. Inclusive a turfa. A nota predominante é a de nozes, com frutas cristalizadas e açúcar mascavo. O final que é apenas sensivelmente enfumaçado.

Um ponto importante a respeito do Old Parr 18 anos, e que não deve ser olvidado, é seu preço. O whisky custa, em média, 300 reais (em Agosto de 2021). É um preço espetacular para um blend com essa maturação. Quase tão espetacular quanto um bicho horroroso que vive meio milênio. E um custo-benefício excepcional para quem busca um whisky bastante maturado, complexo e fácil de ser bebido. Nada de notas improváveis e sabores desconcertantes e escatológicos. Ao contrário de hákarl, apenas um blended scotch whisky de perfil sensorial agradável e perfeito para quase qualquer situação.

OLD PARR 18 ANOS

Tipo: Blended Whisky
Marca: Old Parr
País/Região: Escócia – N/A
ABV: 40%
Idade: 18 anos

Notas de prova:

Aroma: caramelo, frutado e amadeirado.

Sabor: Nozes, madeira, frutas cristalizadas. Final longo e levemente enfumaçado.

Affinity Cocktail – Semelhança

Você já reparou como às vezes dois filmes praticamente idênticos estreiam quase ao mesmo tempo? Às vezes, isso é maravilhoso, porque os dois são ótimos. Tipo Failsafe e Doctor Strangelove. Outras vezes, um é melhor que o outro, como Braveheart – que é um clássico – e Rob Roy. Que não é realmente ruim. Mas podia focar menos no Liam Neeson satisfazendo sua esposa na grama, e mais na história da Escócia.

E em outras situações, todos são ruins mesmo. Muito provavelmente porque a ideia era péssima já no começo, e a turma entrou numa espécie de delírio e esforço coletivo para tornar a vida dos cinéfilos um pouco mais miserável. Como com O Inferno de Dante com Volcano. Ou Striptease e Showgirls (desculpa, Verhoeven, você é ótimo!). Ah, e aqueles quatro – sim, gente, quatro – filmes sobre meteoros que ameaçam acertar a Terra. Num deles todo mundo morre, no outro o Bruce Willis explode o asteroide por causa da Liv Tyler e nos outros eu nem lembro o que acontece. Só vem, meteoro.

O fenômeno, aliás, tem nome. Twin Movies, ou, Filmes Gêmeos. E não é coincidência, transmissão de pensamento ou uma espécie de reiki aplicado ao cinema. Mas o resultado de espionagem, conversas entre pessoas de diferentes estúdios ou distribuição de um mesmo roteiro para várias empresas. O que resulta em uma corrida para produzir e distribuir o filme para o público. Ou, simplesmente, são filmes iguais baseados no mesmo filme anterior. Porque o que mais tem na indústria do cinema é originalidade.

No shit, Sherlock.

O coquetel Affinity é, de certa forma, como um desses filmes. Ele é parecido com uma porção de outras misturas, como o Rob Roy e o Perfect Manhattan. Aliás, é bem provável que você, querido leitor e entusiasta de coquetelaria, tenha numa noite de ébria criatividade reinventado o Affinity. Eu sei, porque eu já fiz isso. Lá, depois do segundo coquetel, a gente fica criativo, e começa a pensar poxa, e se eu fizer um Perfect Manhattan com um scotch docinho, deve ficar bom. Em nome de Thomas, Baker, Coleman e Dale, vou virar uma lenda quando divulgar isso daqui.

Acontece que – assim como o cara que em 2018 resolveu filmar a história de Robin Hood pela enésima vez – estamos pouco mais de um século atrasados. O primeiro registro é uma matéria do Washington Post de 1907, que dizia “Há um novo coquetel na Broadway. Eles o chamam de Affinity. Depois de beber um, os provadores sobreviventes declararam que o horizonte adquire um tom rosado; já o segundo traz Wall Street para frente e para o centro, oferendo a você uma quantidade de lã reluzente de cordeiro (seja lá o que significar isso…); e quando você termina o terceiro, a grama cresce ao seu redor, passarinhos começam a cantar nas árvores de figo e a afinidade aparece.

Mas, a parte mais interessante vem depois. Que é a receita original “esta nova ambrosia contém os seguintes ingredientes: uma colher de chá média de açúcar de confeiteiro, uma pitada de bitters de laranja, uma dose de uísque escocês e meia dose de vermute italiano. Estes são batidos em gelo picado, como um coquetel, até ficarem bem misturados e resfriados, então coados e servidos rapidamente.” Essa receita – e perdão pela ironia cretina – tem pouca afinidade com a atual. Que, se baseia naquela divulgada por Harry Craddock no clássico The Savoy Cocktail Book de 1930. E que, por sua vez, deve ter bebido (gente, estou muito criativo hoje mesmo!) da mesma fonte, ou inspirado, a receita de David Embury, divulgada em seu “The Fine Art of Mixing Drinks“.

Não é mais uma versão do médico de Frankenstein. É Craddock.

A diferença principal entre a receita de Craddock e Embury é a proporção. O primeiro sugere partes iguais dos três ingredientes principais. Já o segundo, uma (caprichada) prevalência de scotch. O que sugere, na realidade, que o equilíbrio deve ficar por conta do paladar do bartender por impromptu. Caso prefira um coquetel com a base mais aparente, aumente a proporção do whisky, como fez Embury. Entretanto, se preferir navegar para longe dos dois clássicos e testar algo mais vínico e licoroso, vá de partes iguais – à moda de Craddock.

Bem, sem mais plot twists, vamos à receita. De Craddock – porque ninguém precisa de mais uma versão filmada de Guerra e Paz.

AFFINITY COCKTAIL

INGREDIENTES

  • 30ml de scotch whisky – escolha um scotch adocicado, como um Chivas Regal 12 anos.
  • 30 ml de vermute tinto
  • 30 ml de vermute seco
  • 2 dashs de angostura
  • zest de laranja (isso é uma fatia da casquinha da laranja)
  • Parafernália para misturar (mixing glass, bailarina etc.); ou
  • parafernália para bater (shaker, strainer etc.)

PREPARO

Batido, e não mexido? Aqui a máxima do espião menos secreto do mundo (aliás, quanto filme que copia ou satiriza Bond, não?) faz sentido. O Affinity pode ser batido ou mexido. A técnica usada dependerá, essencialmente, de seu gosto. Ainda que faça mais sentido mexer – afinal, você vai aerar bebidas que não se beneficiam muito disso – talvez, apenas para dar contraponto, faça sentido batê-lo. Só para ficar um pouquinho diferente. Este é o conselho também dado pelo Difford’s Guide.

  • Batido: adicione tudo na coqueteleira (menos a parafernália para misturar) e bata com bastante gelo. Desça em uma taça coupé previamente refrigerada e decore com o zest de laranja.
  • Mexido: adicione tudo num mixing glass (menos a coqueteleira, gênio) e mexa, com bastante gelo. Com o auxílio de um strainer, ou coador, desça em uma taça coupé previamente refrigerada e decore com o zest de laranja.

Como (não) escolher um whisky – Do Storytelling

Este, talvez, seja o post mais metalinguístico já escrito neste blog. Há alguns anos, uma marca conhecida de sorvetes recebeu um puxão de orelha abstrato por conta da história estampada em suas embalagens. História que, para usar um eufemismo, eram uma versão alternativa da verdade, com personagens fictícios. Tipo aqueles filmes como Rain Man e American Hustle – que aconteceram mais ou menos daquele jeito, mas com gente mais feia. Só, que no caso da tal fabricante de picolés, não tinha a Amy Adams e o Tom Cruise.

Enfim, aconteceu que, após a revelação de haver poucos pontos de tangência entre a realidade e a história do antepassado do fundador, a empresa achou melhor tirá-la do ar. Apagou a memória do velhinho que jamais existiu, deu uma explicação semelhante àquela que minha filha quando tenta explicar por que não fez a lição de casa e seguiu em frente. Mas, do caso, extrai-se uma lição óbvia – contar uma história, de preferência uma com lampejos de verdade, é importante. E não só com picolés. Em tudo, na verdade. Quando enrolo você, querido leitor, por três breves parágrafos com algum assunto aleatório antes de falar sobre determinado whisky, quero, na verdade, afinar o tom da prova por meio daquela analogia.

Ou isso.

Com whiskies, este storytelling é importante também. Não se trata apenas de uma historinha bonitinha, romantizada, que irá lubrificar seu interesse e fazer com que escolha uma garrafa em detrimento de outra. Bem, é isto também, e o resultado final é este. Mas, na verdade, é bem mais. É a coisa mais essencialmente humana que há – identificação. Quando você escolhe uma garrafa de Bruichladdich porque eles são obcecados por terroir – mas assumem que padronização não é o forte – ao invés de um The Macallan, que fala sobre padrão de qualidade e luxo, há um julgamento de valor. Ou não também, porque às vezes você é só um maluco que pensa que degustar é um numbers game.

Na maioria das vezes, há um juízo. Um juízo baseado em conhecimento ou identificação. A paixão por whiskies raramente é algo racional – fosse assim, beber qualquer coisa funcionaria bem. Pelo contrário, ela trata de experiências e conceitos. Você pode gostar de The Glenlivet por ter sido uma das destilarias pioneiras da Escócia, ou dos blends da Suntory por terem introduzido o whisky no Japão. Pode gostar de Bruichladdich pela transparência, e de Springbank pela autenticidade e ligação com os métodos mais artesanais e tradicionais de produção. Storytelling pode ser um papo vazio de marketing, claro. Mas, pode também, transmitir valores reais, que contextualizam aquilo que está no seu copo.

E há, também, aqui, a faceta pessoal. Você pode ser apaixonado por determinada destilaria por algum episódio significante em sua vida. Eu, por exemplo, tenho uma leve queda por Lagavulin, por ter sido o whisky que fez minha cabeça rodar – literalmente – e consolidou minha paixão por whiskies. E Bowmore, claro, como vocês sabem, que me surpreendeu absurdamente durante uma visita à destilaria, e, mais tarde, se mostrou um dos maiores ícones do meu estilo favorito de whisky. Os vínicos e turfados.

A história pode ou não envolver submarinos.

E é por isso também – veja bem, este não é um sofismo – que degustações às cegas geralmente não funcionam. Degustações às cegas servem para remover preconceitos infundados. Como, por exemplo, que whiskies sem idade declarada são todos engodos, ou que blends são piores que single malts. Mas, por focarem totalmente no líquido, removem boa parte da paixão. Um whisky de oito anos maravilhoso é muito mais admirável do que um single malt de três décadas sensorialmente incrível. Na verdade, é como gente – ninguém assistiria aquele programa do Raul Gil cheio de criança se isso fosse mentira.

Simplificando (mas não muito): há um discurso que justifica aquilo que você está para beber. Um whisky no copo é muito mais do que uma combinação de congêneres, etanol, água e talvez E-150. É a culminação do trabalho, conhecimento e posicionamento de todo um grupo. O storytelling, ouso dizer, é metade de toda a importância. Jamais uma história inflamada de qualquer entusiasta começou ou terminou com “eu bebi um whisky extraordinário outro dia em casa, mas, não faço a mais rasa ideia do que ele seja, de onde ele veio ou de seu sabor.” É a pesquisa, o conhecimento e o interesse que valem.

Há, entretanto, uma ressalva. Assim como no caso dos whiskies sem idade declarada (NAS) e quase tudo na vida, o discurso pode ser usado para o bem ou para o mal. Produzir um single malt turfado, sem filtragem a frio e cuja cevada e barris podem ser rastreados até a última gota é algo extraordinário. Assim como manter a qualidade e padrão sensorial de um blend com mínimo de vinte e um anos de idade.

Calma!

O que não é nem um pouco extraordinário é inventar uma historia qualquer que não tenha qualquer relação com a verdade – ou utilizar artifícios linguísticos como “premium” e uma porção de outros que não vem ao caso. Estampar atores ou fazer garrafas em forma de submetralhadora também. A não ser que, claro, o artista seja um grande entusiasta de determinado whisky, como o Nick Offerman com Lagavulin.

Resume, por favor.

Na verdade, tudo se resume a uma única palavra. Autenticidade. O storytelling é importantíssimo. Ele é a razão pela qual escolhemos uma garrafa, e, muitas vezes, o motivo de nossa admiração. Mas, ele, sozinho, não vale. O argumento deve se sustentar sob escrutínio. Todos nós conhecemos a história daquele bourbon que foi criado pelo bisavô de certo empresário, mas na verdade o bisavô sequer existiu – quer dizer, existiu, porque todo mundo tem bisavô, mas não daquele jeito. Ou o rye whiskey feito numa destilaria que não existe, porque é comprado da MGP.

Assim, meu caro leitor, deixe-se levar pela emoção. Ou pela razão, claro. Não escolha apenas pelo sabor. Escolha com base em sua experiência, em seu conhecimento, e em seus valores. Escolha pela afinidade – seja ela qual for. Não há nada mais esclarecido do que isto.

Union Pure Malt Extra Turfado Wine Cask Finish Autograph Series

Uma vez me disseram que, quando explico meu amor por whiskies para uma pessoa normal, pareço um pouco um entusiasta de metais de banho justificando as maravilhosas inovações de um chuveiro recém-lançado. Realmente, me parece um tanto sonífero ouvir sobre os grandes avanços tecnológicos da nova Lorenzetti. E eu devo ser muito chato, porque whiskies não são minha única paixão impopular e inexplicável. Tenho outras também. Como, por exemplo, dirigir. Eu amo dirigir.

É inexplicável, mas eu vou tentar. Ainda que uma extensão de asfalto livre seja essencial, não é nem dirigir rápido que eu gosto. São as pequenas coisas. Trocar a marcha na rotação exata para que o automóvel deslize sem qualquer balanço perceptível. Frear e acelerar precisamente no traçado de determinada curva. E ouvir música. Não há momento melhor para ouvir a discografia inteira da sua banda preferida do que ao fazer uma longa viagem dirigindo. É quase catártico.

Exceto quando a natureza chama.

Aliás, recentemente me vi voluntariamente obrigado a fazer um percurso relativamente longo. Quase nove horas num bate-volta para uma cidade do interior de São Paulo – totalmente sozinho, sem cã e cãezinhos. Como trilha sonora, escolhi uma banda a altura da peregrinação – Rolling Stones. É óbvio, eu sei, mas poucos grupos teriam um repertório tão extenso e variado. É quase como – transportando a analogia para minha paixão etílica – a destilaria Union, com seus três lançamentos da série Autograph Wine Cask.

E a idade da banda também é bem comparável àquela da destilaria. A Union tem mais de sessenta anos na produção de destilados. Atualmente, sua linha permanente conta com quatro whiskies. Um blend e três single malts – Pure Malt, Pure Malt Turfado e Pure Malt Extra-Turfado. Em 2020, lançaram também uma edição limitada, precursora da linha Autograph – o Union Virgin Oak . E, agora, acabam de divulgar mais três – limitadas a 1.100 garrafas cada. Versões finalizadas em barris de vinho de seus whiskies de linha. Dentre eles, está o Pure Malt Extra Turfado Wine Cask Finish.

Os new-make que compõe a linha dos Wine Cask Finish foram destilados na unidade de Veiranópolis da Union – a nova unidade, de Bento Gonçalves, começou a produção somente em 2015. De acordo com Luciano Borsato, diretor executivo da Union os “malte turfado e extra-turfado (que são usados de base para os whiskies) são importações que fazemos do norte da Escócia, sob especificação”. Para o Pure Malt Extra Turfado Wine Cask Finish, a medida de fenóis no malte é de quarenta partes por milhão (40ppm), intermediária entre a especificação da Talisker (20ppm) e Ardbeg (55ppm) – a mesma do Extra-Turfado de linha.

O processo de maturação e finalização do Pure Malt Extra Turfado Wine Cask Finish ocorre em barris de carvalho americano. Primeiro, o new-make matura em barris second-fill de ex-bourbon. Depois, é transferido por um prazo não especificado pela Union para barris de carvalho americano de ex-vinho tinto. A idade estampada no rótulo é a do componente mais jovem. Oito anos. Este processo de finalização – transferência do whisky para um barril de natureza distinta – aumenta a complexidade sensorial do whisky. O whisky é engarrafado com 46% de graduação alcoólica – três por cento a mais do que o Extra-Turfado de linha.

Sensorialmente, o Union Pure Malt Extra Turfado Wine Cask Finish é enfumaçado, com notas de frutas vermelhas e pimenta do reino. E ainda que o malte turfado esteja em primeiro plano, a influência vínica é notável. O whisky é mais leve, frutado e arredondado que o Pure Malt Extra-turfado tradicional, e menos salino também. A finalização é mais longa – justamente ai que o emprego das barricas de vinho fica mais evidente. É um whisky que traz uma complexidade surpreendente, ainda mais considerando sua idade e país de origem.

Extra-Turfado

Eu poderia, aqui, recomendar a compra do Union Pure Malt Extra Turfado Wine Cask Finish. Mas sei que isto é uma redundância. É como o mais singelo prazer de dirigir e ouvir boa música. Para entusiastas como nós, querido leitor, este é um lançamento que prescinde quaisquer explicações.

UNION PURE MALT EXTRA TURFADO WINE CASK FINISH (AUTOGRAPH SERIES)

Tipo: Single Malt

Destilaria: Union Malt

País: Brasil

ABV: 46%

Notas de prova:

Aroma: enfumaçado, adocicado e maltado. Frutas vermelhas.

Sabor: defumado, medicinal e frutado. Corpo médio. O final é progressivamente menos enfumaçado e mais frutado.

Onde encontrar: Caledonia Whisky & Co.

Glen Scotia 15 anos – Darwinismo

Você provavelmente já ouviu falar de Charles Darwin. Charles Darwin foi um naturalista britânico, que fez uma longa expedição a bordo de um navio chamado HMS Beagle, comendo tudo de exótico que encontrava pela frente. Aliás, um de seus traços era justamente a curiosidade para saber o gosto de tudo vivo que encontrava. Durante sua viagem no Beagle, Darwin se esbaldou em bichos como iguanas, tatus (sem piadinhas com os Mamonas, por favor) e tartarugas gigantes. Darwin foi o primeiro hipster gastronômico.

Mas não foi por conta de seu gosto excêntrico que Darwin ficou famoso. Foi porque ele que cunhou a teoria da evolução. De acordo com sua teoria – que, convenhamos, é uma certeza – todas as espécies de organismos se desenvolvem por meio da seleção natural. Essa seleção faz com que apenas os organismos mais capazes de sobreviver conseguissem se reproduzir. O que garante mais chances de manutenção daquela espécie, em um meio ambiente selvagem e desafiador.

O exemplo clássico é a girafa. A girafa parece um bicho desajeitado e pescoçudo, mas é, na verdade genial. Por conta de sua altura e pescoço, ela é capaz de alcançar os frutos mais altos das árvores, impossíveis para espécies – ou mesmo outras girafas – mais baixas. De acordo com a teoria de Darwin, ao longo de milhares de anos, girafas progressivamente mais pescoçudas foram selecionadas, porque mais comida estava disponível para elas. O mesmo se aplica ao leão com sua força, e ao ornitorrinco. Ainda que eu não saiba bem qual o talento do ornitorrinco.

Suar leite, talvez?

Mas a teoria da evolução (ou melhor, a seleção natural) não funciona apenas para animais. Ela poderia perfeitamente ser aplicada a destilarias. Em especial, aquelas de Campbeltown. É que a região outrora fora conhecida como a capital mundial do whisky. O vilarejo chegou a contar com trinta e quatro destilarias, mas, atualmente, possui apenas três. O maior responsável foi o Volstead Act, mais conhecido como a Lei Seca Norte-Americana da década de 20.

Ocorre que naquela época, um dos mercados consumidores mais importantes de scotch whisky eram os Estados Unidos. E com a proibição, as destilarias de Campbeltown se viram, da noite para o dia, com estoque enorme de scotch whisky e nenhum comprador. Endividadas e sem ter muito para onde correr, a vasta maioria fechou suas portas. Apenas um par delas sobreviveu até os dias de hoje. As mais fortes: Springbank e Glen Scotia.

E ao provar o Glen Scotia 15 anos, é fácil entender o porquê. Ele é um whisky pungente, mas com complexidade e equilíbrio incríveis. Há um sabor frutado, de laranja e damasco, que vai se desenvolvendo para baunilha e caramelo, provenientes da maturação em barricas de carvalho americano que antes contiveram bourbon whiskey. Não é um whisky demasiadamente pesado, a ponto de ser intimidador. Mas não é leve e delicado a ponto de carecer de personalidade.

Assim como o Victoriana e Double Cask,  já revistos nestas páginas caninas, o Glen Scotia 15 faz parte do portfólio permanente da destilaria. Recentemente outras expressões foram introduzidas, como o 16 anos, 18 anos (talvez a Glen Scotia queira ter uma expressão para cada idade?) o incrível 25 anos e o defumado Campbeltown 1932. Todas são parte de uma reformulação na linha da Glen Scotia, que mudou drasticamente sua identidade visual e seus maltes.

O Glen Scotia 15 anos recebeu uma miríade de prêmios desde seu lançamento. Entre eles, medalha de ouro na San Francisco World Spirits Competition na World Whiskies Awards e IWSC, todas em 2016. Em 2017, recebeu outro ouro pela Scotch Whisky Masters. E, se você me perguntar, direi que foram merecidas. Se a teoria da seleção natural fosse aplicada aos whiskies, seria fácil entender como a Glen Scotia sobreviveu.

GLEN SCOTIA 15 ANOS

Tipo: Single Malt com idade definida – 15 anos

Destilaria: Glen Scotia

Região: Campbeltown

ABV: 46%

Notas de prova:

Aroma: frutado, um pouco de cereais, cítrico.

Sabor: açúcar mascavo, baunilha, compota de frutas. Final levemente seco, com pêssego e especiarias (canela, pimenta do reino).

Quatro coquetéis de whisky para o frio

Eu adoro o frio. Poucos pequenos prazeres são tão grandes em sua singeleza como sentir o ar gelado nas têmporas. Perceber aquela deliciosa letargia nos dedos ao digitar. Contemplar o aveludado formigamento na ponta do nariz ao franzi-lo. E o vapor. Eu devo ser completamente maluco, mas a fumacinha que sai do nariz ao respirarmos no frio é uma lembrança contundente de que estou vivo.

Trabalhar, tomar café, ler. Pra mim, até fazer exercício é melhor no frio, porque não tenho que beber o correspondente à vazão das cataratas do Iguaçu para repor o líquido perdido com o suor. Aliás, quase tudo fica melhor no frio. Inclusive, uma das minhas atividades preferidas, que não é a que você tá pensando. Ou talvez seja, se me conhecer bem: beber. Porque na verdade beber é meio como se vestir. Você faz o ano inteiro, mas o frio abre um leque muito maior de possibilidades.

O que, claro, não significa que você deva beber qualquer coisa. Pelo contrário. Aqui no Brasil, a temporada de frio é uma rara oportunidade para você se esmerar em novas experiências. Ou aproveitar para revisitar aquele raro clássico, que pareceria até incivilizado em qualquer outra época do ano. Como os coquetéis dessa lista. E se reclamarem, já sabe – você só está tentando ficar mais aquecido.

Irish Coffee

Não dá para começar essa lista de outra forma. Mesmo que o Irish Coffee não esteja entre meus drinks preferidos, ele é o coquetel de frio por excelência. Até o mito ao redor de sua criação envolve frio. Reza a lenda que ele foi criado na década de quarenta por Joe Sheridan, um chef de cozinha responsável por um restaurante e café localizado no terminal aeroportuário de Foynes, na Irlanda. O restaurante de Joe era conhecido naquela época como um dos melhores do país.

O coquetel teria sido concebido quando um grupo de passageiros americanos desembarcou de um hidroavião, em uma manhã de inverno, em 1940, naquele condado. Sheridan, prestativo e criativo, adicionou whiskey irlandês ao café, para aquecer ainda mais aqueles pobres viajantes. Quando indagado se aquilo era café brasileiro – uma iguaria na época – Sheridan simplesmente respondeu “é Café Irlandês”.

Para a receita e mais curiosidades, clique aqui.

Hot Toddy

Outro coquetel quente com a melhor bebida do mundo, o Hot Toddy é basicamente um quentão aprimorado. Aprimorado porque leva whisky, claro. O drink chegou a ser recomendado, durante o século dezenove, como uma panaceia para crianças. ““se sua criança começar a fungar, ter olhos vermelhos ou perder um pouquinho da audição, se sua pele ficar seca e quente, e se o halito estiver febril – você agora terá a oportunidade de agir muito mais rapidamente do que antes (…) dê a ela drinques estimulantes e quentes, sendo o hot toddy o melhor deles

Um século e tanto mais tarde, adquirimos razoabilidade, conhecimento e bom senso (mais ou menos). E sabemos que isto é um absurdo. A mistura, no entanto, continua sendo um ótimo remédio para aquecer o corpo, se tomado com moderação. As receitas para sua preparação variam muito, mas você pode conferir uma delas aqui.

Rob Roy

Frio combina com lareira. Nem que a lareira esteja dentro do seu copo. E é esta a experiencia que o Rob Roy oferece, especialmente se produzido com whiskies defumados, como Johnnie Walker Double Black e Talisker. Ainda que não seja um coquetel quente – ele é servido gelado – a força alcoolica, aliada ao sabor enfumaçado são perfeitos para aquecer até nos dias mais gelados.

Você pode mexer nas proporções e base do coquetel para criar um que lhe agrade. Para mais dicas sobre ele, leia nossa matéria completa , meu caro.

Scaffa

Scaffa não é exatamente um coquetel, mas uma classe. São drinks servidos à temperatura ambiente, e tem ganhado bastante popularidade recentemente. Eles podem ou não ter diluição, e não necessariamente usam whisky de base. Mas, óbvio, que se você for beber um coquetel à temperatura ambiente, escolherá como base algo que faz algum sentido ser bebido sem refrigeração. Whisky é uma escolha óbvia.

É importante notar que nossa percepção de sabor muda de acordo com a temperatura do líquido. Um manhattan devidamente gelado terá um sabor bem diferente de um à temperatura ambiente – que ressaltará seu dulçor. Assim, o equilíbrio dos scaffas deve ser bem minucioso. Não há como se esconder atrás de um iceberg de gelo.

Para começar, sugerimos uma receita desenvolvida no balcão do Caledonia, num papo entre Rodolfo Bob e Marcelo Sant’Iago, do Difford’s Guide Brasil. É o Sant’iago Scaffa, que leva vermute, fernet, whiskey e bitters. Simples, direto, pequeno e perfeito para os dias de preguiça gelada que você não quer nem passar do lado do freezer.

INGREDIENTES

  • 50 ml rye whiskey (Jim Beam Rye)
  • 5ml Fernet Branca
  • 5ml vermute tinto (Carpano)
  • 5ml Fernando de Castilla vermute – esta parte é importante. O Fernando de Castilla usa como base vinho jerez. O perfil sensorial muda. Mas, se for absolutamente necessário, use 10ml ao todo de algum vermute que tiver.
  • 1 dash de cocoa bitters (no Caledonia, fazemos um artesanal. Mas pode usar o novo da Angostura)
  • zest largo siciliano.
  • spray (ou 5ml) de whisky turfado – Laphroaig 10.

PREPARO

  1. Junte todos os ingredientes em um mixing glass e misture. Sem gelo.
  2. Descarte o zest de limão siciliano.
  3. transfira o conteúdo para um copo, e prepare um novo zest, adicionando-o ao copo em seguida.
  4. finalize com um spray ou algumas gotas de whisky turfado.

Johnnie Blonde – Katsuobushi

Katsuobushi. Katsuobushi é a mais nova adição ao meu léxico de alimentos esquisitos que tanto aprecio. Num jeito bem rudimentar de explicar, katsuobushi é peixe seco ralado. Ou, mais especificamente, uma conserva seca, desidratada, às vezes defumada, de carne de peixe – geralmente atum-bonito – em finíssimas fatias, quase transparentes. E, como a descrição sugere, sozinho, tem o mesmo sabor de uma meia úmida utilizada por quatro horas para atravessar um manguezal. Mesmo que eu nunca tenha comido meia suja de manguezal.

Só que, em conjunto com outros ingredientes, katsuobushi é incrível. Em sopas orientais fica fantástico, no sanduíche de gravlax – aliás, temos isso em nosso bar – é maravilhoso. O tal ingrediente oriental faz parte daquele conjunto incrível de ingredientes que não faz o menor sentido puro, mas, quando misturado, ganha vida e profundidade. Como também coisas bem mais elementares, como farinha, sal, e tofu. Se bem que tofu continua ruim, mesmo depois de misturar com quase qualquer coisa. Mas, enfim, são ingredientes que foram concebidos para serem combinados.

Nham.

No mundo das bebidas alcoólicas, há elementos assim também – bitters, normalmente. Mas whisky, por convenção, não. Até hoje, pouquíssimos whiskies foram criados e desenvolvidos especialmente para misturas. É necessário uma boa dose de coragem para subverter o costume, embarcar na nova onda da coquetelaria, e declarar que determinado produto – que faz parte de uma classe usualmente bebida sozinha – foi criado para ser misturado. Mas é justamente isso que acontece com o novo Johnnie Blonde, lançado recentemente pela Johnnie Walker no Brasil.

O Johnnie Blonde foi concebido pelo blender George Harper para ser utilizado em coquetéis de baixa graduação alcoólica, como collins e highballs. O site oficial da marca declara que “para os apaixonados por whisky curiosos, ou os que não bebem whisky, Johnnie Blonde é uma doce surpresa que irá confundir seus sentidos. Feito para ser misturado, ele desabrocha para vida com a intensidade cítrica de uma limonada, combinada com uma fatia de laranja“.

De acordo com a Johnnie Walker, numa declaração um pouco lacônica “O Johnnie Blonde é feito usando trigo e whiskies de malte com perfil frutado. Maturado em carvalho americano doce, o resultado é um whisky cheio de sabores vívidos e vibrantes“. A declaração, ainda que interessante, explica pouca coisa sobre a real natureza do Johnnie Blonde. E nós sabemos que você, querido leitor, veio até o Cão Engarrafado para saber mais. Apenas sua sede de conhecimento supera a sua voracidade pela melhor bebida do mundo. E, aqui, quero corresponder a esta expectativa. Então, aí vai.

Ainda que não haja informação oficial, o whisky de grão usado no Johnnie Blonde é, provavelmente, Cameronbridge – uma das maiores destilarias de whisky de grão do mundo. É ela, atualmente, a grande fornecedora de grain whisky para a linha Johnnie Walker e também de outros rótulos da Diageo, como White Horse e Black & White. A destilaria também produz alcool neutro para o gim Tanqueray e a vodka Smirnoff. Ao todo, são mais de 130 milhões de litros por ano – quase oito vezes a The Macallan. A suspeita que o Johnnie Blonde leva Cameronbridge como seu grain whisky ganha força considerando que a receita clássica de mosto da destilaria é 91% trigo e 9% cevada maltada.

A maturação dos componentes do Johnnie Blonde acontece em barris de carvalho americano. É isto, somado ao whisky de grão utilizado, que traz suavidade e dulçor para o blend. Aliás, este é um ponto interessante. O Johnnie Blonde não traz o clássico perfil enfumaçado e amendoado da maioria dos whiskies da linha do andarilho. Ele está mais próximo do que é o Gold Label Reserve. É adocicado, com um fundo de mel e caramelo claros, e com pouca ou nenhuma defumação. A experiência de bebê-lo puro pode ser definida como interessante – não é um whisky complexo, mas, surpreende por não apresentar as arestas pontudas de álcool que blends em sua faixa de preço costumam ter.

Mas é na hora de misturar que o Johnnie Blonde realmente mostra a que veio. A versatilidade para coquetelaria é inegável. Além do “hero drink” acima descrito, este Cão tem mais uma sugestão – um collins com ginger ale e limão. Rodolfo Bob, consultor de nosso querido Caledonia Whisky & Co., no entanto, vai além. Ele criou o J. Bardot, um coquetel que leva  xarope de demerara, creole bitters, Angostura bitters, licor de flor de sabugueiro e espumante brut – numa incrível fusão franco-escocesa, baseado no clássico French 75′.

J, Bardot

Para os apaixonados por coquetelaria, para aqueles que nunca provaram scotch whisky na vida, ou para os bebedores experientes que gostam do perfil adocicado e caramelado, o Johnnie Blonde é uma recomendação certeira. Prove-o em um highball clássico, à moda oriental, ou teste sua mistura favorita – só não vá colocar katsuobushi. Criatividade tem limite.

JOHNNIE BLONDE

Tipo: Blended Whisky sem idade definida (NAS)

Marca: Johnnie Walker

Região: N/A

ABV: 40%

Notas de prova:

Aroma: Doce, com mel e caramelo.

Sabor: creme de baunilha, mel, caramelo, malte. O final é adocicado, com mais baunilha.

Disponibilidade: disponível no Caledonia Whisky & Co (WhatsApp) e mercados selecionados.

Drops – Compass Box The Peat Monster Arcana

Drops são nossos posts menores, de análise ou curiosidades do mundo do whisky, e que contam com rótulos indisponíveis no Brasil – mas com alguma particularidade interessante. Para ler outros drops, clique aqui


Expectativa é uma coisa engraçada. Há whiskies que, só de ler, me dão nervoso para experimentar. Mas que são decepção do momento de abrir o lacre a dar o primeiro – e algumas vezes o último – gole. Há outros que são o oposto. Não provocam nem um arquear de sobrancelhas durante a leitura. Mas, ao primeiro gole, me deixam acenando positivamente com a cabeça – depois, claro, de dizer algum palavrão de enaltecimento qualquer.

E há aqueles que são os dois. O Compass Box Peat Monster Arcana está nesta classe. Aliás, a Compass Box Whisky Co. quase gabarita esta classe. A empresa foi fundada em 2000 por John Glaser, ex executivo da Diageo, como uma espécie de produtora boutique de whiskies de altíssima qualidade. A maioria de seus rótulos possui alguma invencionice, ou iconoclastia. A empresa procura sempre trazer inovações, e expandir as fronteiras da produção de whisky – e claro, com um storytelling perfeito.

O Compass Box Peat Monster Arcana é, de certa forma, a conjunção de duas dessas histórias. O Peat Monster e o Spice Tree. Para ser mais preciso – parte do blend do Peat Monster, e as criativas barricas do Spice Tree. De acordo com a própria Compass Box “uma combinação de barris cujo corpo é de carvalho americano, e as tampas de carvalho europeu tostado, nossos barris customizados geram um sabor que nos agrada. Entretanto até 2016, os efeitos destes barris em whiskies defumados permanecia um mistério.”

Proporções dos barris do Arcana. Clique abaixo para baixar.

O blender responsável pelo Peat Monster Arcana foi James Saxon, parte do time da Compass Box. O whisky partiu de uma versão cask strength do peat monster tradicional. O whisky foi colocado em três barricas híbridas – com corpo de carvalho americano e tampas de carvalho europeu tostado – e deixado para maturar por mais de dois anos. Aquelas barricas, aliás, já tinham sido utilizadas pela própria Compass Box para maturar seu “highland blend”, um dos elementos que compõe parte de sua linha. Depois, o whisky foi misturado com outros três single malts.

A composição do Compass Box Peat Monster Arcana é abertamente divulgada pela Compass Box. Ele contém 72,9% de Talisker, 10,6% de Miltonduff e 6,9% de Ardbeg, além de 9,6% daquele Peat Monster experimental, que fora colocado nos barris customizados da Compass Box. O resultado foi um blended malt que ainda mantém o DNA do Peat Monster, mas, mais refinado, menos medicinal e pungente, e mais equilibrado e frutado.

Infelizmente – e como acontece com todos os nossos Drops – o Peat Monster Arcana não está à venda em nosso país. O que torna esta prova quase um exercício de maldade gratuita. Porque você, querido leitor, agora terá sentido exatamente o que senti. Deve ser o feitiço dos grandes whiskies.

COMPASS BOX PEAT MONSTER ARCANA

Tipo: Blended Malt sem idade definida

Marca: Compass Box Whisky Co.

Região: N/A

ABV: 46%

Notas de prova:

Aroma: fumaça de bacon, levemente cítrico, iodo. Frutas vermelhas.

Sabor: Frutas vermelhas, pimenta do reino. O final é longo e vai se tornando progressivamente enfumaçado. A sensação de trazida pela turfa é menor do que no tradicional Peat Monster. As barricas estão mais evidentes.

Disponibilidade: apenas lojas internacionais.