Você talvez não saiba o que é Brassica Oleracea. Mas provavelmente já colocou na boca. Colocou na boca e mastigou. É que Brassica Oleracea é o nome científico da mostarda selvagem, uma pequena planta que cresce em rocha vulcânica, especialmente na costa do mediterrâneo e é muito apreciada por nós.
Pode parecer uma descrição meio vaga de alguma erva que é obtida à margem da lei. Mas não é. A mostarda selvagem é na verdade a espécie original de uma boa variedade de vegetais que comemos hoje em dia, como o brócolis, a couve-flor, o repolho e a couve de Bruxelas. Estas variações – ou subespécies, para ser mais preciso – foram obtidas ao longo de centenas de anos, por cruzamento seletivo. Artificialmente selecionando mostardas selvagens de folhas cada vez maiores, ou mais suculentas, por exemplo.
O engraçado – na verdade, o mais estranho – é que apesar de parecerem vegetais completamente diferentes, inclusive com gostos muitos distintos, eles dividem uma (desculpe pela ambiguidade besta) raiz comum. Por outro lado, há vegetais que são bastante semelhantes, mas cuja origem é completamente diferente. Mandioca e batata doce, por exemplo, ou coentro e salsa. E, no mundo dos whiskies, o mesmo acontece com o Jack Daniel’s Honey, que não é bourbon. Nem Tennessee Whiskey.
Então explica….
Explico. De acordo com o Code of Federal Regulations, title 27, part 5, subpart C. (i) para que uma bebida possa ser considerada bourbon, ela (ii) deve ser feita com ao menos 51% de milho; (iii) o destilado deve ir para os barris tostados (charred) e virgens de carvalho com o máximo de 62.5% de graduação alcoólica (normalmente diluído com água, para que se alcance essa quantidade limite de álcool); e (iv) deve ser engarrafada com no mínimo 40% de graduação alcoólica.
As mesmas regras acima se aplicam ao Tennesse Whiskey, conforme a House Bill 1084 de 2013. Porém, além delas, o destilado deve passar pelo conhecido Lincoln County Process, ou Charcoal Mellowing – a tão alardeada filtragem por carvão de bordo, característica da Jack Daniel’s. Mas há um detalhe importante. De acordo com Code of Federal Regulations, caso haja a mistura de quaisquer frutas, flores, plantas ou substâncias que proporcionam sabor, a bebida será um cordial ou licor.
Como sabemos, o Jack Daniel’s Honey utiliza mel e especiarias em sua composição. Além disso, sua graduação alcoolica é de 35% – inferior ao mínimo legal para que algo seja considerado tennessee whiskey ou bourbon. E por isso, ele é, na verdade, um licor ou bebida composta. Nenhuma surpresa aqui. A própria embalagem do Honey diz isso – honey liqueur blended with Jack Daniel’s Tennessee Whiskey. Ou seja, licor de mel misturado com Jack Daniel’s Tennessee Whiskey.
Cê jura?
Mas vamos parar com a discussão nerd para passar para a parte mais, diremos, pragmática. A prova. O Jack Daniel’s Honey é uma bebida bastante adocicada – nenhuma surpresa aqui também – e levemente apimentada. O característico sabor de baunilha do Jack Daniel’s está lá, e complementa bem o adocicado do mel. Relembra bastante uma calda de bordo (maple) a ponto de quase me fazer derrubar em panquecas ou waffles. Mas eu não sou americano, então não vou me auto-indulgenciar.
Puro e em temperatura ambiente, o Jack Daniel’s Honey é uma bebida fácil, pouco desafiadora e sem muita complexidade, mas – dentro de sua proposta – bem equilibrada. Ele não é demasiado doce a ponto de esconder o whiskey, o que é ótimo. Na opinião deste Cão, a experiência melhora bem quando o licor está gelado. Ou ao misturá-lo com outros ingredientes – algo que, aliás, também está sugerido no site da Jack Daniel’s.
Sinceramente, é impossível – e injusto – julgar o Jack Daniel’s Tennesse Honey sob as mesmas bases que se julgaria um bourbon ou um whisky escocês. Simplesmente porque sua essência é diferente. Você não sairia por aí difamando brócolis só porque eles não tem sabor de couve. E olhe que a semelhança é bem mais próxima no caso vegetal. O mais acertado, no caso do Jack, será compará-lo com outros licores de whiskey no mercado. E, dentro desta classe, ele se sai muito bem.
JACK DANIEL’S TENNESSEE HONEY
Tipo: Licor
Destilaria: Jack Daniel’s
ABV: 35%
Notas de Prova:
Aroma: mel, própolis, baunilha.
Sabor: doce, mas não tão doce quanto se esperaria. Própolis. Final adocicado com mel e um pouco picante.
Todos nós temos projetos secretos. É como disse uma vez alguém, que não sei quem é. As chances de sucesso de um projeto são inversamente proporcionais ao número de pessoas que sabem dele. Com isso em mente, desde que lancei O Cão Engarrafado, me envolvi em um projeto ambicioso. Treinar meu querido Maverick – o cãozinho que aparece aí no cabeçalho da página – a identificar, pelo olfato, o maior número de aromas de whisky.
Levou mais de três anos. Os primeiros meses foram especialmente difíceis, porque o Maverick apenas me olhava com um semblante lhano, sem qualquer expressão. Às vezes ele se interessava por algum aroma – o carnudo, presente no Clynelish era seu preferido. Mas muitas outras apenas me ignorava, coçava a orelha, lambia suas partes ou corria atrás do rabo, numa postura passiva-agressiva demonstrando seu total desdém pelo meu projeto.
Após um ano de treinamento – envolvendo mais de duzentas amostras e dois kits de aroma – o cãozinho começou a mostrar alguns sinais de que eu estava no caminho certo. Toda vez que colocava um whisky no copo, ele me olhava com antecipação, aguardando sua chance de sentir o delicioso cheiro da bebida.
Como Maverick não fala, a comunicação se mostrou um problema. Eu sentia que ele sabia identificar o aroma, mas não tinha como expressá-lo. Assim, ao longo do tempo, fomos desenvolvendo códigos. Essa parte foi especialmente estressante, porque eu tinha que adivinhar o que ele sentia. Mas deu certo. Os primeiros aromas foram os mais básicos: patinha direita levantada é jerez oloroso, patinha esquerda, PX. Pata traseira direita, medicinal, pata traseira esquerda é defumado. Rabo levantado, herbal, rabo pra esquerda, floral.
O maior problema aconteceu aos dois anos e três meses de projeto. Maverick virou um esnobe do whisky. Ele só queria sentir aroma de single malts e se negava a chegar perto de qualquer garrafa de blend, por mais exclusiva que fosse. Bourbons então, nem se fala – milho não era para ele. Ele começou a se interessar por The Macallan – apesar de não saber quase nada sobre a destilaria – e passava boas horas admirando uma garrafa fechada de Oscuro que tenho em minha coleção.
Nunca bebi, mas amo!
Naquele momento, achei que tinha falhado. Mas com o tempo, ele percebeu que tinha sido tolo. Voltou a cheirar os blends, e desenvolveu um carinho especial pelos Compass Box e Dewar’s. Resolvi mostrar para alguns amigos. Victor Marinho, sócio da Cervejaria Dádiva, ficou especialmente admirado “o trabalho dele é realmente incrível. Fiquei tão admirado que vamos desenvolver uma cerveja apenas com base em sua opinião sensorial lá na Dadiva. Vai ser uma colaborativa com o pessoal do Cateto“. Já Edu Jarussi, sócio do Cateto, quase lhe ofereceu uma vaga de emprego “é uma pena que ele é um quadrúpede e não tem polegares opositores, porque senão poderia me dar uma mãozona (digo, pata) aqui no Catetinho”
Depois de três anos, sinto que ele está finalmente pronto. E por isso, resolvi anunciar a conclusão deste projeto no blog. Hoje Maverick consegue identificar mais de oitenta aromas. É mais do que a Chivas Regal diz que tem em seu Chivas 18. O Cãozinho consegue identificar aromas como cera, umami, ruibarbo, couve-de-bruxelas, amaranto e calafate. Aromas que apenas os hipsters sabiam que existiam, e que até hoje, não faço a mais rasa ideia do que são.
Assim, a partir de hoje, todas as provas lançadas no Cão terão duas análises. A primeira será a minha, da forma que sempre fiz, com meu talento limitado para sentir aromas. A segunda, muito mais detalhada, será a de Maverick. Com isso, teremos também uma riqueza muito maior, porque seu olfato e opinião canina poderá ser diferente da minha, e presenteará o leitor com um espectro muito mais detalhado e analítico de cada bebida.
Se amor à segunda vista existe no mundo do whisky, então, para mim, ele é a Bowmore. Antes de conhecer pessoalmente a destilaria, não tinha qualquer fascínio pelos seus maltes. A maioria deles me parecia uma tentativa defumada de agradar aqueles que não gostam do sabor enfumaçado. Seus nomes, como Darkest, Black, Tempest, Sea Dragon – soavam pretensiosos, e uma forma de demonstrar poder onde não havia nenhum. Mas, para falar a verdade, nunca havia me interessado pela Bowmore.
Bem, isso até visitar a destilaria e realmente enxergar de perto a meticulosidade na elaboração dos Bowmore. Da defumação da cevada até a escolha e mistura das barricas, tudo é detalhadamente pensado. Soma-se a isso o armazém de whisky mais antigo de toda Escócia – os famosos No. 1 Vaults – e mais de duzentos e trinta anos de experiência na produção de whisky. A Bowmore é a destilaria mais antiga da ilha de Islay, conhecida por produzir incríveis maltes enfumaçados. E o Bowmore Tempest é um perfeito exemplo do melhor que Islay tem a oferecer.
A maturação do Bowmore Tempest acontece em barricas de carvalho americano que antes contiveram bourbon whiskey. São barricas de primeiro uso – ou seja, é a primeira vez que são utilizadas para maturar scotch whisky. Apesar disso, a influência da madeira é coadjuvante. O protagonista aqui é o destilado, com seu inconfundível sabor enfumaçado e iodado. Com sua graduação alcoólica de 55,1%, há uma certa agressividade – nada mais justo para uma garrafa batizada de tempestade.
Algo bem comum em Islay, aliás.
O Bowmore Tempest foi uma edição limitada, lançada em lotes. Ao todo, foram seis deles. Havia diferenças sensoriais bastante perceptíveis de um lote para o outro – algo feito propositalmente – mas todos giravam em torno do tema da fumaça e sal. O Tempest ilustrado na foto é o de lote No. 4.
A master blender da Bowmore é Rachel Barrie. Ela é a primeira mulher a ocupar a posição de master blender da indústria do whisky. Rachel é formada em química, e possui mais de vinte e um anos de experiência na criação de whiskies extraordinários. Em 1991, Barrie foi admitida no Scotch Whisky Research Institute depois de, durante sua entrevista de emprego, ter identificado perfeitamente mais de vinte fragrâncias diferentes, de piche a zimbro. De lá pra cá, trabalhou na Glenmorangie, e hoje capitaneia a criação dos whiskies das três destilarias sob o comando da Morrison Bowmore.
O Tempest é um single malt relativamente oleoso, extremamente enfumaçado, com pouca maturação e graduação alcoólica elevada. Uma combinação que poderia dar terrivelmente errado para a maioria dos whiskies, mas que funciona maravilhosamente bem para os single malts defumados daquela ilha. E ainda que o talento da Bowmore seja equilibrar o sabor de vinho jerez com a influência defumada da turfa, o Tempest é um whisky que não deve ser ignorado. Para os apaixonados por whiskies enfumaçados e picantes, o Bowmore Tempest será amor à primeira vista.
BOWMORE TEMPEST
Tipo: Single Malt com idade definida – 10 anos.
Destilaria: Bowmore
Região: Islay
ABV: 55,1%
Notas de prova:
Aroma: turfado e defumado. Sal, algas marinhas, fumaça.
Sabor: Início defumado e seco, bastante picante, com caramelo e madeira no fundo. O final é picante, turfado e enfumaçado.
Com Água: Adicionar água torna o whisky menos agressivo e deixa que a madeira fique mais aparente.
Hoje vou começar o texto com um conceito basilar da economia. A lei da oferta e da procura. É um princípio da microeconomia, que postula que o preço de um bem será determinado pelo equilíbrio entre a quantidade procurada e a oferecida. Assim, se há muita demanda por algo, mas poucos exemplares, o preço tende a subir. Porém, se o produto está largamente disponível, mas poucas pessoas têm interesse nele, seu preço diminuirá. O conceito clássico dessa teoria foi cunhado por Adam Smith e, mais tarde, aprimorado por estudiosos e economistas.
Mas deixe-me ilustrar com algo mais concreto. Minha filha de três anos, brócolis e brigadeiros. Brigadeiros são produtos de altíssimo interesse para ela. Se minha filha tivesse dinheiro, pagaria uma grana preta por brigadeiros. Mas ela tem apenas três anos e só umas duas ou três moedinhas que demos para ela colocar no cofre de dinossauro. Brócolis, no entanto, não exercem o mesmo fascínio. Se ela pudesse, jamais comeria brócolis novamente. Numa economia regida pelas regras da cãzinha, brigadeiros custariam uma fortuna, mas brócolis seriam terrivelmente baratos.
Sua demanda por brigadeiros é muito maior do que a minha oferta. Mesmo porque a demanda dela por brigadeiros quase não tem limite. Acontece que, como eu disse, ela não tem dinheiro. Então, para conseguir brigadeiro, deve usar outras moedas de troca. Afeto e obediência, por exemplo. Para conseguir brigadeiro, ela está disposta a comer aquele brócolis, ir dormir na hora certa e escovar os dentes.
Até aí, beleza. O cenário microeconômico do bri-bro (economistas adoram neologismos) aqui em casa está em perfeito equilíbrio. Às vezes, para conseguir que ela faça algo bem difícil, até mesmo ofereço uns quatro brigadeiros de uma vez só, com a condição que ela coma apenas um por dia. Uma espécie de poupança de brigadeiros. O problema – que a cãzinha não percebe – é que há aqui um elemento crucial. O tempo. Brigadeiros não valorizam. Não há brigadeiros edição limitada, nem colecionismo de brigadeiros. Ter brigadeiros de reserva é bom até certo ponto, porque brigadeiros são produtos efêmeros. Um brigadeiro velho não vale mais afeto ou obediência do que um brigadeiro novo. Aliás, muito pelo contrário. Brigadeiros são um péssimo investimento, por serem perecíveis.
Quer dizer, a não ser que você tenha uma brigaderia
Whisky, no entanto, não. Whisky – ainda que não seja o melhor investimento do mundo – é algo que pode trazer dinheiro. E o melhor tipo de dinheiro, aquele que une o prazer com a rentabilidade. De acordo com matéria do website Great Drams, essa união de entusiamo e investimento traz enorme satisfação para os investidores em whisky. Pela matéria, desde 2008 o valor de whiskies raros, medidos pelo índice Rare Whisky 101 Apex 1000 aumentou 361.09%. Para a próxima década, estima-se que o retorno será de aproximadamente 41%. Ainda de acordo com a matéria, em 2015, os whiskies raros superaram outros investimentos históricos, como vinho e ouro. E certamente mais do que brigadeiros.
Investir em whisky, porém, possui seus riscos. Há muitos brigadeiros e brócolis no mundo do whisky. Uma garrafa guardada há décadas de um produto muito comum antigamente talvez não tenha valorizado tanto. É, novamente, a lei da oferta e da demanda. Não há uma grande demanda por blended whiskies de entrada que eram largamente comercializados e consumidos no passado. Não é um item colecionável para a maioria das pessoas. Além disso, há muito mais garrafas do que colecionadores interessados em adquiri-las. É o caso, por exemplo, das centenas de Chivas 12, White Horses (até certa idade), Buchanan’s, Ballantine’s, Johnnie Walkers Black Label e Pinwinnies antigos à venda por aí.
Pois é. Não vale dois mil reais.
É, porém, um investimento de baixo risco. De acordo com Markus Stadlmann, CIO do Lloyds Private Banking, namatéria veiculada no Great Drams “normalmente ativos tangiveis, como whisky, retém seu valor e não são desvalorizados pela inflação. A longo prazo, estes ativos não se correlacionam de perto com outras ações ou ativos mais tradicionais, e oferecem oportunidade de diversificação. Investir em algo que você gosta é uma forma excelente de tornar seu portfólio especial para você“.
Como tudo, o importante é escolher o whisky correto. Regra geral, single malts valorizam muito mais do que blends. E produtos de certas destilarias tendem a valorizar mais do que de outras. Ardbeg, Macallan e Lagavulin são bons exemplos. São destilarias consagradas, que, ao longo do tempo, galgaram o difícil caminho da confiança. Os consumidores confiam, admiram e até mesmo cultuam estas destilarias. Seus lançamentos – em especial os mais limitados ou mais maturados – então tem maior procura. O que, claro, elevam seus preços.
Permitam-me mais uma digressão. Diamantes, vassouras, teorias econômicas, Jevons e Walras. A teoria clássica da economia diz que o valor das coisas é determinado pelo custo de produção dessas coisas, a qual se aplica um pequeno percentual, que é o lucro do produtor. Este é seu valor intrínseco, justo. Assim, uma vassoura, que é barata de se produzir, será barata para ser adquirida. Marx complementou a teoria, cunhando o conceito da mais valia – o percentual do lucro que fica com o capitalista, e não o produtor. Mas vamos deixar isso para outra oportunidade.
O problema é quando pensamos em diamantes. O processo de extração, limpeza e lapidação de um diamante não é exatamente caro. Mas diamantes são raros e desejados. Bem mais raros e desejados do que vassouras. E é aí quem entram Jevons e Walras. Segundo eles, há itens que não são valorados apenas por seu valor intrínseco. Mas por sua raridade e o desejo em adquiri-los. O custo de produção de um diamante é infinitamente inferior ao seu preço, justamente por conta desse desejo e escassez. O mesmo acontece com whiskies. Especialmente aqueles de destilarias inativas ou demolidas.
Aposto que se fosse um diamante, seria mais barato.
Destilarias inativas ou demolidas são uma enorme tendência. Muitos tem um interesse meio geek em experimentar whiskies que não serão mais produzidos. É mais ou menos o que ocorre com alguns artistas plásticos após a sua morte. Com a perspectiva – causada pela morte ou pela demolição, no caso de artistas e destilarias, respectivamente – da interrupção de produção, os produtos (ou quadros) já produzidos se valorizam. Foi o que ocorreu com a Brora, Port Ellen e Rosebank.
Mas talvez o seu negócio não seja capitalizar na morte de algo ou alguém, mas sim na aurora da vida. Por sorte, o atual mercado de whisky está crescendo bastante. E com a alta demanda, novas destilarias tem surgido. É o caso da Arran há alguns anos e, mais recentemente, da Wolfburn. A primeira edição lançada por uma destilaria pode ter uma enorme valorização. Afinal, ela é a liquefação de um marco histórico. Há, porém, um risco maior aqui. Aquela destilaria pode se revelar como um fracasso. Ou como uma destilaria capaz de produzir apenas maltes medíocres. Nestes casos, o valor do whisky não se elevará tanto. Mas também, na pior das hipóteses, você pode beber seu investimento.
Com dinheiro aposto que não não é tão gostoso.
Aliás, falando em beber, às vezes a resposta sobre a perspectiva de valorização de uma garrafa está na ponta da língua. Literalmente. É que whiskies mais bem avaliados, ou que foram elogiados por críticos ou consumidores tendem a ser mais bebidos. Quanto mais garrafas bebidas, menor é a oferta de garrafas disponíveis. E com a fama crescendo – mais pessoas elogiando – e o número de ampolas se reduzindo, o preço, obviamente, tende a se elevar. É o caso do Kavalan Solist Vinho Barrique e do Yamazaki Sherry, por exemplo, eleitos pelo Jim Murray como melhores whiskies do mundo há alguns anos. É óbvio que há aqui o fator raridade, já explicado acima – note que o Crown Royal Northern Harvest Rye não valorizou muito.
Por fim, séries costumam valorizar bastante, especialmente se forem bastante limitadas. Um exemplo são os Macallan Decades – um kit com quatro expressões da The Macallan, prestando homenagem a algumas décadas do século XX. Ou, mais recentemente, os Glenfiddich Experimental Series, que apresentam formas pouco tradicionais de produzir ou maturar whisky, utilizando elementos como barricas de cerveja IPA e Ice Wine.
Na hora de vender, note que o mercado de colecionismo de whisky depende muito de cada país. Algumas expressões possuem cotação internacional e são muito valorizadas na Escócia, mas possuem pouca liquidez no Brasil. Pesquise o melhor mercado e avalie todos os custos. Lembre-se que uma garrafa mais cara lhe trará mais dinheiro no futuro, porém, o investimento inicial também será maior e a liquidez menor. Certos colecionadores brasileiros vêem mais vantagem em enviar as garrafas para o Reino Unido e leiloá-las lá do que vender em nosso mercado, justamente por conta da falta de liquidez em nosso mercado. No entanto, esta não é a única alternativa – o contato com um colecionador brasileiro ou uma casa de leilões podem auxiliá-lo por aqui.
Seja como for, investir em whisky demanda paciência e leitura. É necessário acompanhar o mercado e tentar prever tendências. Porém, nada disso importa sem a paixão. Acompanhe sua destilaria preferida, busque seus lançamentos e crie uma coleção que não apenas poderá valorizar, mas te trará orgulho toda vez que olhar para ela. E não esqueça, claro, de se divertir. Compre garrafas que lhe parecem deliciosas para abrir e beber. Afinal, às vezes o melhor investimento que um whisky pode trazer nem é financeiro. É mesmo em sua felicidade.
Pense na Suíça. O que lhe vêm a cabeça? Vacas malhadas em campos verdejantes com montanhas salpicadas de neve ao fundo. Bancos, muito dinheiro, concentração insana de contas offshore. Obsessão por neutralidade e esportes de inverno.
Leite e derivados do leite. Chocolate, queijo suíço. O recém-redescoberto pelas redes sociais queijo raclette. Canivetes. Relógios. Livros infantis sobre crianças, alpes, bodes, e avós. Eu poderia continuar esta lista por bons quatro parágrafos, e, provavelmente, jamais chegaria em whisky.
E ainda existe o filme sobre o livro.
Acontece que a Suíça também produz whisky. E ele é bem bom. Há mais de vinte destilarias no país, produzindo bebidas com a qualidade característica e atenção as detalhes daquele povo. Uma delas é a Locher, que produz os whiskies Säntis.
Em 1886 a família Locher comprou uma cervejaria, localizada em Appenezell, que produzia cervejas desde 1830. Na época, era proibido que fosse produzido destilado na Suíça – em grande parte por conta da febre do absinto. Porém, em 1999 a proibição foi revogada. Então Karl Locher, proprietário da cervejaria naquele ano, passou a produzir whisky de malte, maturando-o nas barricas previamente utilizadas para sua cerveja. A primeira expressão da destilaria chegou ao mercado em 2002.
O whisky da foto é provavelmente a mais conhecida e renomada expressão da Locher. É o Säntis Malt Edition Dreifaltigkeit (tive que copiar e colar esta palavra) Cask Strength Peated. O nome gigante é, na verdade, a descrição de algo fantástico. Um whisky defumado e engarrafado na graduação alcoólica que saí do barril, sem qualquer diluição.
Barricas na Locher
Säntis Malt Edition Dreifaltigkeit é triplamente defumado. Seu malte é defumado em duas madeiras diferentes – fagus e carvalho – e depois re-defumado utilizando turfa. A maturação ocorre em barricas muito antigas que antes contiveram cerveja produzida pela própria Locher.
O resultado é um whisky adocicado, com bastante sabor de caramelo – aliás, quase próximo de um rum bastante maturado. O aroma é adocicado mas quase completamente tomado pela fumaça, e lembra uma espécie de embutido defumado, ou, se você preferir uma referência no mundo das cervejas, uma Schlenkerla Rauchbier.
Esqueça os queijos, bancos, bodes, vacas e alpes. Esqueça os canivetes. O Se você – assim como eu – é apaixonado por whiskies defumados, o Säntis Malt Edition Dreifaltigkeit é o que a Suíça tem de melhor.
Quando era criança, não ligava muito para modinhas. Nunca encostei em um tazo e nunca colecionei mini-coca-colas. Mas havia uma coisa que me pegava sempre. Kinder Ovo. Pensando friamente, talvez eu nem gostasse tanto do chocolate. O que mais queria era mesmo a surpresa. Porém, o engraçado é que se eu pudesse encontrar a surpresa sem o tradicional envolvimento de seu delicioso recipiente, eu provavelmente não me interessaria por ela também.
O genial do Kinder Ovo é a combinação daqueles elementos. As duas coisas juntas, aliadas à expectativa daquilo que está dentro da capsula o tornam algo irresistível para qualquer criança, tenha ela três ou sessenta anos. Ninguém consegue ficar indiferente e não esboçar, nem que seja a menor curiosidade, ao abrir um Kinder Ovo. Ele é a perfeita fusão entre a obsessão gastronômica e a sede acumuladora.
Na coquetelaria, um caso muito parecido é o do Moscow Mule, a versão tradicional do coquetel tema deste post. O Whiskey Mule. O Moscow Mule é a reunião de três elementos que ninguém prestava atenção. Mas que, reunidos, resultaram em um dos coquetéis mais famosos do mundo.
Sua história começa na década de 30, com um senhor chamado John Martin, presidente da G.F. Heublein & Brothers, uma empresa de importação e exportação de gêneros alimentícios. Martin havia comprado uma pequena destilaria de vodka canadense que talvez você já tenha ouvido falar. A Smirnoff. Seu plano era popularizar o destilado nos Estados Unidos. O problema é que aqueles eram tempos um pouco obscuros para qualquer coisa que tivesse relação com a Russia. Os Estados Unidos lutavam o comunismo, e o consumo de vodka era encarado como um hábito inegavelmente bolchevique – tipo comer criancinhas, sodomizar pessoas na rua e tudo aquilo que os americanos achavam que os comunistas russos, homicidas e bárbaros, faziam.
Mais de uma década depois, Martin, frustrado e esgotado, teria comentado para seu amigo Jack Morgan, proprietário do bar Cock ‘n Bull de Los Angeles, sobre sua dificuldade em vender a bebida. Jack, por sua vez, apontou que tinha problema parecido com sua ginger beer artesanal, que produzia com tanto carinho. Uma terceira pessoa que também frequentava o bar – que jamais fora identificada – queixou-se que possuía centenas de canecas de cobre e que também não estava nada fácil vendê-las.
Pra ninguém…
Jack e Martin, então, fizeram o que todo bêbado em um bar faria. Juntaram as três coisas. Assim, conceberam um coquetel que levava vodka, ginger beer e limão e que era servido naquela elegante caneca de cobre. Uma enorme campanha publicitária foi organizada – inclusive com a participação de famosos como Woody Allen e Monique Van Vooren. A criação foi batizada de Moscow Mule, em referência à vodka e à intensidade do sabor do gengibre, comparável ao coice de uma mula. O coquetel tornou-se um sucesso instantâneo, e até hoje é reconhecido por sua característica caneca de cobre.
O Whiskey Mule, por sua vez, é a versão melhorada do coquetel. Mas dessa vez, melhorada não apenas porque leva whiskey ao invés de vodka – Mas porque substitui a ginger beer por uma incrível espuma de limão e cardamomo, originalmente criada pelo bartender Marcelo Serrano, e depois adaptada por uma talentosa bartender para este coquetel. Que, na opinião deste Cão, é uma das mais incríveis emulsões do mundo, ainda que eu não fique por aí categorizando e classificando emulsões. É como disse Dave Wondrich uma vez”A vodka é o peito de frango desossado e sem pele da coquetelaria – tudo tem a ver com o tempero“. Aqui, não foi só o tempero que melhorou. O frango também foi substituído. Por bourbon.
Preparar o Whiskey Mule não é exatamente simples. O problema não é bem o coquetel. Mas a espuma de gengibre. Para o melhor resultado, é preciso ter um sifão de culinária – uma peça não muito segura, um tanto cara e bem específica. No entanto, é possível fazê-la no liquidificador. O problema deste método é que a espuma tende a diminuir com o tempo. Então, para cada coquetel, seria preciso um novo preparo. Seja como for, e sem mais protelações, aí vai a receita da versão melhorada de um dos mais icônicos coqueteis de todos os tempos. O Whiskey Mule:
WHISKEY MULE
INGREDIENTES
30 ml de sumo de limão tahiti
50 ml de bourbon
15 ml de calda de açucar
Espuma de gengibre com cardamomo*
Noz mocada
folha de hortelã para finalizar
PREPARO
Em uma coqueteleira, adicione a calda de açúcar, o bourbon e o sumo de limão.
Desça o conteúdo em uma caneca de cobre (tá, isso é meio específico, pode usar uma caneca qualquer, ou mesmo um copo baixo, eu não vou te repreender)
Complete com espuma de gengibre com cardamomo.
rale noz mocada sobre a espuma
Para a espuma:
Descasque 100 gramas de gengibre fresco.
No liquidificador, coloque 100 ml de água, 200 ml de sumo de limão siciliano e 100 ml de xarope de açúcar, o gengibre, 3 unidades de cardamomo e bata rapidamente.
Coe para outro recipiente e, em seguida, volte o líquido para o liquidificador.
adicione 1 colher de chá de goma xantana
Bata novamente e deixe resfriando na geladeira
Se você tiver um sifão de creme, coloque a emulsão no sifão para usar na preparação do coquetel. Bata um pouco antes de servir.
Se você gosta de carros, deve já ter ouvido falar do Nissan GT-R. O Nissan GT-R é o herdeiro do Skyline, um superesportivo japonês ora produzido pela Prince Motor Company. Em 2009, o GT-R entrou para o Guinness como a aceleração mais rápida de 0-100km/h (0-60mph) por um carro com quatro lugares. Mas isso não é importante. O importante é que o GT-R (e seu progenitor, o Skyline) é um dos carros mais desejados e defendidos por qualquer auto-geek.
Talvez seja porque o carro tenha sido vedete de algum jogo de videogame, ou tenha ganhado fama ao desbancar carros bem mais caros quando o assunto é performance. Mas fale mal de um GT-R para algum entusiasta, e você estará em maus lençóis. O GT-R é a versão automobilística daquela piada do dry martini. Se algum dia estiver sozinho, perdido em um deserto, ou terrivelmente sozinho, simplesmente recite com determinação. O Porsche Carrera é melhor que o GT-R. Algum apaixonado pelo último sairá de dentro de um buraco ou pulará de trás de uma pedra para provar o contrário.
No universo do whisky, a Springbank é o Nissan GT-R. Um single malt muito bom, mas cuja fama o torna além de irrepreensível. A Springbank possui status de malte cult entre os entusiastas, e suas edições limitadas praticamente sublimam das estantes, quase instantaneamente depois de terem sido lançadas.
Tamanho sucesso raramente possui um único motivo. Este Cão, porém, suspeita que seja uma conjuntura de dois. O primeiro, a indiscutível qualidade e regularidade dos lançamentos. Ainda que nem todos sejam extraordinários, é praticamente impossível encontrar um que seja ruim. E, em segundo, porque a Springbank é uma das únicas destilarias independentes de toda Escócia, e também uma das poucas que realiza todo o processo – da maltagem ao engarrafamento – totalmente em casa. Há uma certa sensação romântica em saber que aquele malte é produzido de forma artesanal, em um mundo cada vez mais automatizado e dominado por grandes conglomerados.
A Springbank é uma das únicas três destilarias sobreviventes de Campbeltown, cidade que fora, por muito tempo, considerada a capital mundial do whisky. A região, que chegou a contar com trinta e quatro destilarias durante a década de cinquenta, hoje possui apenas três delas. As outras duas são Glengyle e Glen Scotia.
Campbeltown
Apesar do ar artesanal, a destilaria possui uma boa variedade de whiskies. São três linhas distintas. A primeira, homônima – Springbank, da qual o tema desta prova faz parte – é muito levemente turfada. Já a segunda, Hazelburn, não possui qualquer defumação, e é triplamente destilada, dando origem a um whisky adocicado e extremamente leve. Já a terceira – batizada de Longrow – é o oposto da segunda. É um whisky bastante defumado e relativamente oleoso.
O Springbank 15 é, antes de qualquer coisa, extremamente equilibrado. É um whisky complexo, oleoso, frutado e levemente defumado, com final achocolatado e amadeirado. É indiscutivelmente bom. Porém, e na polêmica opinião deste canídeo, não é nada que mudará seus paradigmas alcoólicos para sempre e estragará a experiencia de beber qualquer coisa que não venha da destilaria. É um malte correto, acima da média e produzido com muito esmero. Mas – assim como o GT-R – está longe de se impor sobre outros maltes excelentes.
Seja como for, o Springbank 15 anos – ou, para falar a verdade, qualquer Springbank – é uma passagem necessária para todo entusiasta de whiskies. E é uma belíssima demonstração de como os métodos tradicionais de produção de uma bebida secular como o whisky ainda tem espaço nos dias de hoje. Enfim, é um malte que emana admiração e respeito ainda que, na maioria dos dias, prefira os Porsches.
SPRINGBANK 15 ANOS
Tipo: Single Malt com idade definida – 15 anos
Destilaria: Springbank
Região: Campbeltown
ABV: 46%
Notas de prova:
Aroma: Levemente enfumaçado. Frutado, com uvas passas e nozes.
Sabor: Frutas secas, ameixa seca. Final levemente enfumaçado e longo. Oleoso e bastante complexo.
Se você for um engenheiro ou metereólogo, provavelmente conhece a Teoria do Caos. Mas se não, eu explico. A Teoria do Caos postula que em sistemas complexos, onde há grande número de variáveis, a sensibilidade torna certo resultado imprevisível a longo prazo, devido a ação e iteração, ainda que haja recorrência destas variáveis, ou elementos.
Se não entendeu, permita-me exemplificar com um singelo objeto. O guarda-chuvas. Decidir se levará ou não um guarda-chuvas depende de muitos fatores. A temperatura, a quantidade de nuvens no céu, a umidade do ar, entre outros. E talvez você acerte. Mas talvez você erre e fique terrivelmente molhado. Ou esqueça aquele equipamento absolutamente inútil em um restaurante, durante um belíssimo dia ensolarado de verão. A verdade é que impossível prever o tempo com certeza absoluta, porque há muitas variáveis.
Mas a teoria do Caos não serve apenas para explicar fenômenos meteorológicos. Ela pode ser aplicada a tudo em nossa vida. E a indústria do whisky não é exceção. Um bom exemplo é a história da Glenkinchie e de sua finada – e agora renascida – irmã Rosebank. É que no começo do século XVIII, quando ambas foram fundadas, nunca alguém imaginaria que a eutanásia de uma dela se daria por um fator tao frívolo quanto sua beleza. Mas foi justamente o que aconteceu.
A Rosebank foi fundada em meados do século XVIII, apenas algumas décadas após sua irmã Glenkinchie. Ambas ficavam na região das Lowlands. A Rosebank, no entanto, ficava em um lugar mais ou menos feio próxima ao canal Forth & Clyde. O fluxo de água do canal chegou a ser interrompido, muitos anos mais tarde, devido ao acúmulo de detritos. Já Glenkinchie se localiza até hoje no vale de Kinchie Burn (daí Glen-Kinchie), um lugar belíssimo, próximo à – também bonita – vila de Pencaitland.
Feio para os padrões escoceses, claro.
Acontece que em 1914 a Rosebank, Glenkinchie e mais três outras destilarias da região resolveram fundar um grupo comercial, chamado Scottish Malt Distillers. Este grupo foi comprado em pela Distillers Company Limited em 1919, que mais tarde se tornou a gigante Diageo. Reza a lenda que em 1993, o grupo resolveu que fecharia uma de suas destilarias das Lowlands, para concentrar o investimento na outra. A Rosebank era considerada a rainha de todas as destilarias daquela região. Seus whiskies estavam entre os melhores da Escócia. Os da Glenkinchie, porém, eram considerados apenas bons. A lógica teria sido fechar Glenkinchie, e manter a coroa sobre a metafórica cabeça da Rosebank.
Mas eu não teira começado este texto falando sobre a Teoria do Caos, se isso tivesse ocorrido. Como havia dito, a Rosebank ficava em um canal feio. A Glenkinchie, em uma paisagem escocesa de cartão postal. Além disso, alguns anos antes, a Glenkinchie fora escolhida para fazer parte dos Classic Malts of Scoland, um grupo de destilarias da Diageo representativas de suas respectivas regiões (que conta com Talisker, Lagavulin e Oban, entre outros). Aliás, um dos projetos da Diageo seria construir um belo centro de visitantes, para que turistas pudessem conhecer de perto os processos de suas destilarias mais importantes. E nesse assunto, não havia qualquer discussão. O destino da Rosebank foi selado por sua aparência, algo que jamais poderia ter sido previsto.
É claro que há outros fatores em jogo. A Glenkinchie era uma destilaria mais conhecida, graças à sua inclusão no seleto grupo dos Classic Malts. Sua capacidade produtiva também era superior. A Rosebank, por sua vez, tinha papel apenas coadjuvante, fornecendo maltes para blended whiskies. Sua única expressão fazia parte da – um tanto obscura – linha Flora & Fauna. Já a Glenkinchie possuia expressões próprias, como sua espinha dorsal na época, o Glenkinchie 10 anos. Este, que foi recentemente substituído pelo Glenkinchie 12 anos, tema deste post, e único representante das Lowlands que chega oficialmente ao Brasil.
O Glenkinchie 12 anos é um whisky com corpo leve, e bastante delicado. Muitos atribuem isso à tripla destilação, prática comum nas Lowlands em um passado não muito distante. Porém, a Glenkinchie emprega apenas dupla destilação – a praxe da indústria escocesa. O pouco corpo se deve ao tamanho e ao formato de lâmpada de seus alambiques, que incentivam o refluxo. Os condensadores em forma de serpentina ajudam a trazer um certo sabor de enxofre ao malte.
Alambiques da Glenkinchie
A destilaria não divulga com clareza o processo de maturação de seu Glenkinchie 12 anos. Porém, pelas características sensoriais, o palpite educado deste Cão é que seja inteiramente feito em carvalho americano que antes contivera bourbon whiskey. Isso faz sentido, se pensarmos que a outra expressão de seu portfólio – o Glenkinchie Distiller’s Edition – é finalizado em barricas de carvalho europeu de ex-jerez, e possui a mesma idade.
No Brasil, uma garrafa do Glenkinchie 12 anos custa, em média, R$ 250,00. Sensorialmente, o Glenkinchie 12 anos é floral e levemente amargo, com final um pouco sulfúrico e curto. Ainda que não seja um malte muito complexo e (discutivelmente) caro pelo que oferece, é também um whisky muito fácil de ser bebido, e que agradará à maioria dos paladares. Um daqueles whiskies que dispensam a Teoria do Caos e podem ser bebidos a qualquer hora e em qualquer situação, faça chuva ou faça sol.
GLENKINCHIE 12 ANOS
Tipo: Single Malt com idade definida – 12 anos
Destilaria: Glenkinchie
Região: Lowlands
ABV: 43%
Notas de prova:
Aroma: sulfúrico e floral (vegetal).
Sabor: levemente amargo e picante, com uma nota vegetal bastante clara. O final é seco e curto, com quase nenhuma fumaça.
Com água: o whisky se torna ainda mais seco, e final mais curto.
Quando era criança, fazia todo tipo de atividade inútil. Não academicamente inútil, como aprender sobre nematelmintos e platelmintos, mas realmente inútil. Como, sei lá, tentar não pensar numa coisa que eu acabei de pensar. Ou adivinhar a cor do próximo carro que passaria pela janela. Ou – uma das minhas preferidas – repetir uma palavra um zilhão de vezes até que a impressão de seu significado se esvaísse completamente, restando somente a sonoridade.
À medida que cresci, essas atividades se sofisticaram. Uma das mais elaboradas envolve uma lombada eletrônica quase em frente ao meu prédio. Toda vez que passo por ela de carro, tento chegar o máximo que posso perto do limite de velocidade, que é de quarenta quilômetros por hora. É um joguinho legal, especialmente quando marco trinta e nove ou trinta e oito. Sorrio por dentro em reconhecimento de minha precisão com o pedal do acelerador. Mas é tão legal quanto inútil, porque, quando eu venço, eu não ganho nada. Mas quando eu perco, levo uma multa.
Outra atividade da mesma natureza é tentar relacionar coisas quase não relacionáveis. Encontrar pontos de tangência entre John Lennon e papel higiênico ou entre McRib e loucura. Ou ainda filmes e whiskies. E foi justamente essa prosaica atividade que fiz pela primeira vez em 2017, quando falei sobre os filmes do Oscar de 2017. E que, para minha surpresa, teve uma repercussão bem positiva. Então, resolvi retomá-la para a festa deste ano.
Escolhi quatro indicados ao prêmio de melhor filme, que assisti e relacionei com suas almas gêmeas do mundo da melhor bebida do mundo. Então, caros leitores, preparem-se para um texto tão inútil quanto tentar encontrar padrão nas placas dos automóveis no trânsito ou – este mereceria o Oscar de atividade mais ridícula – tentar engolir a própria língua.
THREE BILLBOARDS OUTSIDE EBBING, MISSOURI
Three Billboards Outside Ebbing, Missouri, traduzido como Três Anúncios para um Crime (sério, quem inventa esses nomes?), é uma espécie de comédia-negra-dramática-policial dirigida por Martin McDonagh. O mesmo cara que dirigiu também as comédias-negras-dramáticas-policiais In Bruges e Seven Psicopaths. Mas, ao contrário destas, o humor é bem mais sutil. A película conta a história de Mildred, uma mãe que desafia a polícia da cidade de Ebbing a solucionar o assassinato de sua filha de uma forma bastante improvável – colocando uma mensagem em três outdoors de uma estrada que leva à cidade.
O filme, a princípio, parece um drama. Mas há um certo humor casual, irônico e pouco espalhafatoso. Ele se constrói sobre personagens que percorrem o longo caminho entre pontos opostos. Como vingança e conformismo, violência e passividade, resiliência e esgotamento, impulsividade e reflexão. E aí talvez esteja seu maior valor – certas atitudes levam a outras, e influenciam na vida de todos. O filme até explica demais isso, com a piadinha “anger begets more anger” (assista para entender). O roteiro é bem construído, ainda que, algumas vezes esteja um pouco ao sul da sanidade. As atuações de Frances McDormand e Sam Rockwell são irretocáveis.
A alma gêmea de Three Billboards Outside Ebbing, Missouri no mundo do whisky é o Woodford Reserve. Um bourbon relativamente complexo, equilibrado, acessível e bem construído.
TRAMA FANTASMA
Phantom Thread, ou Trama Fantasma, em português, se passa na década de 50, em Londres. Reynolds Woodcock – estrelado por Daniel Day Lewis- é um famoso costureiro, amargo e metódico, que se apaixona por Alma, uma jovem voluntariosa. Descrevendo dessa forma, parece a versão dramática adaptada de Melhor Impossível. Mas não é. Phantom Thread se assemelha muito a um Hitchcock, com a diferença de que o mistério é substituído por um frágil equilíbrio de poder, que está na relação entre os dois protagonistas.
A relação deles, aliás, já começa meio estranha. Woodcock conhece Alma durante um café da manhã, em um hotel no interior do Reino Unido. Alma é sua garçonete desajeitada, que por alguma razão que me foge à lógica fica terrivelmente encantada por aquele velho esquisito que pede mais da metade do menu. Woodcock galanteia Alma lhe pedindo suas anotações sobre sua refeição, e a convida para jantar consigo. O primeiro encontro dos dois ocorre no mesmo dia, quando Reynolds à leva para sua casa e fala de sua mãe. Enfim, um cara esquisito, num encontro com assuntos meio constrangedores. Mas o amor tem dessas, eu acho.
Apesar dessa passagem – que, aliás, é a premissa para o filme acontecer – a película é belíssima. A direção de Paul Thomas Anderson nos coloca no apaixonante e insular mundo da alta costura e da elite financeira de Londres, ambos de friezas encantadoras. Na singela opnião deste Cão, isso, aliada à atuação de Day Lewis, torna a Trama Fantasma um dos mais envolventes filmes a concorrer ao Oscar deste ano.
Se Phantom Thread fosse um whisky, seria provavelmente um Glenfiddich 26 anos. Um whisky que parece delicado, mas extremamente complexo, sutil e, claro, aristocrático.
LADY BIRD
Lady Bird, o segundo filme sob direção de Greta Gerwin, conta a trivial história de uma garota comum. Saoirse Ronan vive uma adolescente de dezessete anos, que inventa uma alcunha – Lady Bird – para parecer menos ordinária. O filme cobre seus últimos meses antes de se tornar maior de idade e, naturalmente, trata de imaturidade e amadurecimento. Fala sobre as complexas relações familiares e sobre tudo aquilo que não é dito, mas que é sentido. Lady Bird é indiscutivelmente autobiográfico – Greta nasceu na mesma cidade em que o filme se passa, e trilhou boa parte das mesmas experiências. Aliás, aí está uma atividade inútil para se fazer ao ver o filme: tentar adivinhar o que realmente aconteceu e o que foi inventado.
A película tem pouco mais de uma hora e meia. Os trechos que exploram a relação entre Lady e sua mãe são, de longe, os melhores. Mas o resto não passa muito de uma versão bem melhorada de algum seriado de high school. Veja bem, não é que o filme é ruim. Mas ele também não é nada genial. E, na humilde opinião deste Cão, o problema está justamente em sua premissa – ele é um longa metragem comum, sobre uma adolescente banal. Não há nada de extraordinário na protagonista. E a gente sabe que toda adolescente comum é chata e infantil, então, o filme adquire exatamente o mesmo tom. A salvação acontece nos últimos vinte minutos, que compensam os outros setenta de marasmo e prosaísmo. Quer dizer, se você tiver filhos.
Para este Cão, Lady Bird é um White & Mackay the Thirteen. Um whisky razoável, mas com uma finalização meio inesperada.
A FORMA DA ÁGUA
Shape of Water, no original, é uma versão anfíbia de A Bela e a Fera. A película conta a história de Eliza Esposito (Sally Hawkins), uma faxineira sem voz, que trabalha em uma organização supersecreta (OCCAM) e se apaixona por um monstro antropomorfo anfíbio, levado para lá e mantido em cativeiro para ser estudado.
Mas o filme não é apenas isso. Para este Cão, seu tema principal não é amor, mas preconceito. De muitos tipos. Contra o amigo gay de Eliza, brilhantemente estrelado por Richard Jenkins, a colega de trabalho negra, Zelda, funções de trabalho consideradas triviais e a criatura em si – que apesar de se assemelhar muito com uma pessoa, é tratada como um animal e objeto de estudo. Há um paralelo longínquo mas bem interessante com uma película que talvez já tenha sido esquecida: Coisas Belas e Sujas, de Stephen Frears. Ainda que, neste último, o único anfíbio seja um coração humano.
A direção de A Forma da Água é de Guillermo Del Toro, que constrói um mundo todo de fantasia ao redor da história. Enquanto ele tenta nos lembrar constantemente que estamos no mundo real – com notícias sobre a guerra fria ou a cena das mangueiras molhando manifestantes na televisão, por exemplo – o universo de Shape of Water é indiscutivelmente mágico, a ponto de superar o realismo fantástico. É como se a fantasia assistisse o mundo real pela televisão. O equilíbrio funciona, mas cria um certo ar de estranheza.
Se a Forma da Água se liquefizesse (viram o que eu fiz aqui?) em whisky, ele provavelmente seria um Johnnie Walker Blender’s Batch Red Rye. Um whisky que fica entre o centeio norte-americano e o blended whisky escocês, mas que funciona relativamente bem para os dois papéis.
Uma vez falei aqui do Ariel Atom, um automóvel que quase não poderia ser considerado um automóvel. Não há rádio, nem pára-brisas, tampouco ar-condicionado. Não tem teto também, nem portas. Bagageiro, nem pensar. O Ariel Atom é tipo aquela casa muito engraçada da musica infantil, que não tinha nada. E assim como a casa, não tem pinico para fazer xixi. Mas deveria ter, porque dá um medo desgraçado. O Atom possui um volante, um motor violento e o poder de arrancar a pele da sua cara ao acelerar, ao estilo motoqueiro fantasma.
O Atom acelera de 0-100 em menos de três segundos. É muito rápido. Mas como para alguns loucos isso não parece o suficiente, a empresa resolveu que lançaria um carro ainda mais forte. O Atom 500, com um motor V8 com 507 cavalos, capaz de sublimar o carro até cem quilômetros por hora em 2,3 segundos. Além de aumentar a potência, a Ariel o deixou ainda mais leve – para compensar o bloco mais pesado – e adicionou uma asa, para aumentar o downforce. O carro ficou a cara de um brinquedo de criança. Um brinquedo muito rápido e absolutamente insano.
No mundo do whisky, talvez o paralelo perfeito para o Ariel Atom seja o Laphroaig 10 anos Cask Strength. Ele é a versão turbinada de um whisky que já não tem nada de delicado. A versão tradicional – o Laphroaig 10 – é bastante defumada e medicinal, com sabor de iodo e couro. Sensorialmente, não é lá o whisky mais acessível. Mas como o desafio de bebê-lo parece fácil para muitos, a destilaria possui também uma edição limitada – O Laphroaig 10 anos Cask Strength. É o mesmo monstro enfumaçado, mas com graduação alcoólica de mais de 55%, ao invés dos tradicionais 40%.
Laphroaig
O Laphroaig 10 anos Cask Strength é uma edição limitada anual. A cada ano, um lote é lançado. Cada um deles é o resultado da mistura de barris cuja maturação mínima é 10 anos. Maturação que ocorre principalmente em barricas de carvalho americano, que antes continham Bourbon whiskey. No caso específico da Laphroaig, a vasta maioria das barricas deste tipo vêm da Maker’s Mark, famosa produtora de whiskey dos Estados Unidos. O whisky não sofre qualquer diluição antes de ir para a garrafa. Por isso, a graduação alcoólica de um lote para outro varia. O whisky da foto é do lote 007, lançado em 2015, e sua graduação é de 56.3%.
A Laphroaig já foi extensamente revista neste blog. Como sabem – ou não – seus whiskies têm caráter defumado por conta do processo de secagem da cevada maltada utilizando uma fogueira abastecida por turfa (peat). Ela foi fundada em 1815, pelos irmãos Donald e Alexander Johnston, e comemora em 2015 seu ducentésimo aniversário. Atualmente, pertence à Beam-Suntory, juntamente com a Maker’s Mark, Bowmore, Auchentoshan, e, claro, os japoneses Hibiki, Hakushu e Yamazaki.
Como você já deve ter presumido, o Laphroaig 10 anos Cask Strength não está disponível em nosso país. E, para falar a verdade, ele está quase indisponível no mundo. A Laphroaig é uma das mais queridas destilarias da Escócia, e suas edições especiais são bastante concorridas. É possível, porém, com alguma sorte ou pesquisa, encontrar garrafas em certas lojas europeias ou americanas, ou diretamente no website da destilaria. Mas se tudo isso para você parecer um exagero, procure o Laphroaig 10 anos tradicional, à venda em nosso país por aproximadamente R$ 350,00. Não é uma pechinha, mas se você me perguntar, direi que correria mais rápido que um Atom para comprar um.
LAPHROAIG 10 ANOS CASK STRENGTH BATCH 007
Tipo: Single Malt com idade definida – 10 anos.
Destilaria: Laphroaig
Região: Islay
ABV: 56.3%
Notas de prova:
Aroma: turfado e defumado. Muito picante, com iodo.
Sabor: Início defumado e seco, salgado e medicinal. Final progressivamente mais enfumaçado.
Com Água: Adicionar agua torna o whisky mais adocicado, o torna menos picante e permite que as notas de iodo e medicinais se intensifiquem.